Analisar e compreender os movimentos sociais e políticos no Brasil, nos últimos dez anos, tem sido uma tarefa árdua e profundamente complexa, pois a variedade e contradições dos eventos são muitas vezes confusos, contraditórios e, por vezes, até inacreditáveis. Minha formação como historiador me instigou a buscar, mesmo que de forma heurística, as raízes dos acontecimentos que temos presenciado nestes tempos tão conturbados.  

Para descortinarmos melhor esse cenário, acredito que seja fundamental resgatarmos os acontecimentos desde as movimentações de junho de 2013.

As chamadas “Jornadas de Junho”, em 2013, marcaram mobilizações populares em centenas de cidades brasileiras. Essas manifestações tiveram uma proporção verdadeiramente nacional, pois ocorreram em todas as regiões do Brasil. Os protestos tiveram origem nas contestações ao aumento das tarifas do transporte público e seu maior articulador foi o “Movimento Passe Livre”.

Convém relembramos que, já no início de junho daquele ano, vários protestos estavam ocorrendo em São Paulo contra o reajuste das tarifas do transporte público e questionando a gestão do então governador Geraldo Alckmin (PSDB) e do prefeito da capital, Fernando Haddad (PT).

Foto: Movimento Passe Livre.

Em 17 de junho de 2013, 11 capitais do país realizaram manifestações que somaram cerca de 250 mil pessoas nas ruas. Em São Paulo, as pressões obrigaram Alckmin e Haddad a se articularem para suspender o aumento das tarifas, no dia 19 de junho. O aumento de R$ 3,00 para R$ 3,20 foi revogado. Porém, mesmo com a revogação as manifestações continuaram ao som das palavras de ordem: “Não são só 20 centavos”.

Em Brasília aproximadamente 40 mil pessoas tomaram a Esplanada dos Ministérios no dia 20 de junho (2013). Os manifestantes ampliaram sua pauta de protestos e se posicionaram não só contra o preço das passagens de ônibus, mas também contra os gastos com a Copa do Mundo, a corrupção e a gestão pública nos setores da saúde e da educação do país.

Manifestação em Brasília em que resultou na ocupação da faixada do Congresso Nacional – 17/06/2013 – Foto: Mídia Ninja

Enquanto a polícia militar tentava reprimir os protestos com bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta, os manifestantes faziam fogueiras no gramado em frente ao Congresso Nacional e rechaçavam a polícia com rojões, sinalizadores e pedaços de pau. O fato é que parte dos manifestantes conseguiu ocupar as rampas do Palácio do Itamaraty, atacaram as vidraças e tentaram forçar a entrada. A polícia conseguiu impedir a invasão, mas os manifestantes conseguiram ocupar a cobertura do congresso nacional e gritavam: “Ih, ferrou, o gigante acordou, o povo acordou”.

Bem, com muito custo esses protestos foram controlados. Mas os recentes acontecimentos parecem demonstrar que aquelas “Jornadas de Junho” deixaram sementes que deram frutos variados. Além disso, marcarem a retomada dos movimentos de massa e trouxeram a novidade da articulação por meio das redes sociais, o que garantiu um nível inédito de mobilização, manipulação e articulação. Atores políticos mais atentos logo perceberiam o poder dessa nova possibilidade comunicacional na condução das massas.

O “Movimento Passe Livre”, que marcou o início das movimentações em 2013, surgiu em 2005 como fruto do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, a partir de grupos  que estavam engajados na luta pelo passe livre estudantil. Esse movimento teve por base mobilizações anteriores, como em 2003 a “Revolta do Buzu”, em Salvador-Bahia, e em 2004 a “Revolta da Catraca”, em Florianópolis.

Em Florianópolis, estudantes foram às ruas em 2004 na Revolta da Catraca. Foto: Mídia Ninja.

O referido “Fórum Social Mundial” foi articulado a partir da associação entre ONGs brasileiras e o jornal francês, Le Monde Diplomatique, de tendência esquerdista. A ideia original do Fórum Social Mundial era fazer clara e absoluta oposição às orientações globalistas e neoliberais do Fórum Econômico Mundial, que se realiza todos os anos em Davos, na Suíça.

Em 2001 a cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, sediou a primeira reunião do “Fórum Social Mundial”. Sob o lema “Um Outro Mundo é Possível”, propunha uma maior distribuição da produção de riquezas, desenvolvimento econômico com sustentabilidade ambiental, empoderamento da sociedade civil e uma perspectiva política baseada na participação de organizações populares apartidárias.

Note que apesar desses movimentos terem emanado de uma perspectiva ideológica de esquerda, a partir de 2013 eles começaram a expressar de forma clara que estavam sensivelmente decepcionados com as articulações políticas feitas pelo Partido dos Trabalhadores, bem como com as organizações sindicais. Assim, buscavam se afastar de qualquer vinculação político-partidária.

Assim, tanto o PSDB quanto o PT, não estiveram devidamente atentos para detectarem a gestação de uma realidade de articulação política inteiramente nova que estava em andamento. As reações desses dois partidos foi buscar simplesmente criminalizar as manifestações, identificando-as como puro vandalismo que contrariava a democracia e ordem social. Isso parece ter reforçado a perspectiva de que a população não encontraria nos políticos e seus partidos tradicionais seus legítimos representantes. A partir de então o discurso antipolítica institucional foi ganhando força.

Cabe destacar outro momento marcante de 2013. Os protestos contra a PEC 37, proposta de emenda constitucional que pretendia impedir investigações pelo Ministério Público. Várias cidades do Brasil realizaram manifestações organizadas pelo grupo “Dia do Basta”, movimento que propõe o apartidarismo, o voto parlamentar aberto, a corrupção como crime hediondo e o fim do foro privilegiado. O movimento ocorreu na mesma semana do mês de junho em que Brasília tinha sofrido cenas de vandalismo. O Palácio do Itamaraty, o Ministério da Justiça e Congresso Nacional tiveram segurança reforçada e a manifestação ocorreu pacificamente. A pressão funcionou e a chamada “PEC da Impunidade” foi rejeitada por 430 votos, com apenas 9 favoráveis e 2 abstenções.

Ainda assim, respaldada  em um discurso de manutenção dos benefícios sociais, Dilma Roussef conseguiu sua reeleição em 2014. Mas, o quadro para a sua nova gestão não lhe era nada favorável, pois a polarização política foi a marca das eleições de 2014. O resultado do 2º turno foi muito apertado, Dilma obteve 51,64% dos votos válidos e seu opositor, o senador Aécio Neves do PSDB, ficou com 48,36%.

Foto: Wikipédia.

O ano de 2014 não foi nada fácil para o governo Dilma. A Operação Lava Jato teve início em 17 de março de 2014 e o resultado das investigações desgastavam profundamente a administração petista e, por extensão a classe política. O discurso antipolítica ganhava cada vez mais força.

Os protestos contra a Copa do Mundo de 2014, com palavras de ordem como: “Fifa go Home” ou “Não vai ter Copa”, foram ouvidos principalmente nas cidades que sediariam  o megaevento. Esses movimentos contestavam os elevados investimentos do governo, que contavam com a falta de empenho para a melhoria dos serviços públicos e investimentos sociais. Além disso, categorias de trabalhadores reivindicavam melhorias salariais. A utilização da camisa da seleção brasileira em manifestações começou a ser uma tendência.

Para deixar as coisas mais tensas, Aécio Neves, após ser derrotado na eleição presidencial, por uma diferença de cerca de 3,4 milhões de votos, colocou em dúvida o sistema eleitoral brasileiro e pediu, ineditamente, uma auditoria da votação eletrônica. Não apresentou nenhuma prova ou indício, o principal argumento utilizado para essa alegação foram dúvidas suscitadas nas redes sociais. Apesar de não ter sido comprovada nenhuma fraude, o PSDB fez um relatório no qual propôs o voto impresso, sob o argumento de que isso daria mais segurança ao sistema de votação eletrônica.

Outro aspecto grave e tenebroso foram as postagens contra os nordestinos nas redes sociais. Alguns eleitores, de outras regiões do Brasil, em postagens bastante agressivas e desrespeitosas, marcadas pelo discurso de ódio, acusaram os cidadãos dos Estados nordestinos de serem coniventes com a corrupção e a situação do país, pois seus votos teriam garantido a reeleição de Dilma. 

Todo esse quadro, somado às denúncias de corrupção e a escalada de divulgação de fake News pelas redes sociais, foram minando a confiança, de partes significativas da sociedade, nos políticos e nas instituições governamentais. Sem dúvida um poderoso estímulo para que o cidadão fosse instigado a desconfiar de tudo e de todos que estivessem de alguma maneira relação com o que foi denominado como a “velha política” e, assim, desenvolvesse um sentimento de fazer justiça pelas próprias mãos. A polarização estava definitivamente cristalizada.

Os anos seguintes foram ainda mais atribulados. O impeachment da presidente Dilma Roussef, a prisão do ex-presidente Lula, o governo Temer e a implementação do teto de gastos e as reformas previdenciária e trabalhista. Esses, entre outros eventos, foram um campo fértil para que oportunistas se lançassem como candidatos “não-políticos” e, portanto, supostamente alinhados com os anseios do homem comum, do povo.

Com o afastamento da presidente Dilma, em 2016, governo Temer sofreu forte oposição, inclusive com pedidos para seu afastamento e convocação de novas eleições.

Em 2017, as ruas brasileiras voltaram a ficar agitadas. Dessa vez os protestos tinham como alvo as reformas da Previdência e trabalhista. O mês de março daquele ano foi marcado por paralisações nos transportes públicos e em bancos.

Em maio de 2017 novamente ocorreram várias manifestações articuladas por sindicatos e grupos de esquerda, que pediam o impeachment de Temer e novas eleições diretas. Houve forte repressão das forças policiais. Os atos terminaram em vandalismo e depredação de Ministérios. 

Foi surfando nessa onda de instabilidades e valendo-se da habilidade com os recursos midiáticos independentes das redes sociais, que movimentos como o MBL, o Partido Novo e figuras como o deputado Jair Bolsonaro ganharam ascensão e credibilidade junto a uma parte significativa da sociedade. A crença de muitos desses setores era de que o Brasil precisaria de alguém austero que pudesse colocar “ordem na casa”.

Jair Bolsonaro ao lado de lideranças do MBL e do NOVO (Foto: Reprodução/Facebook)

A esquerda e os partidos políticos tradicionais foram sendo triturados por uma avalanche de postagens, nas redes sociais, que identificavam Bolsonaro e seus aliados como arautos da “Nova Política”, que na verdade não tinha nada de novo, ao contrário, trazia uma espécie de nostalgia de um tempo fantasioso no qual o regime militar, a tradição e a família eram respeitados e a sociedade funcionava.

Agregado a isso estabeleceu-se a ameaça comunista como um terrível inimigo a ser combatido e a imprensa, que estaria à serviço de setores da esquerda e trabalhariam contra os verdadeiros valores da família. O suposto combate à corrupção e a preservação da verdadeira moral foram diretamente vinculados ao antipetismo e à defesa das religiões, destacadamente as de vertente evangélica.

Bolsonaro conseguiu eleger-se presidente em 2018. Mas, ao assumir manteve o discurso e as atitudes que marcaram o seu histórico político. Suas atitudes e falas não contribuíram para pacificar o país. A manutenção de uma acirrada polarização política e social é positiva para seus planos políticos.

Amparado por profunda identificação com os meios militares e pelos benefícios concedidos a esses setores, bem como a algumas importantes lideranças evangélicas, o presidente “mito” simplesmente ignorou os efeitos da pandemia de Covid, questionou a eficácia das vacinas, manteve a perspectiva negacionista em relação à questão ambiental e sempre contestou e continua contestando o sistema eleitoral brasileiro, mesmo o processo tendo sido acompanhado pelas forças armadas e observadores nacionais e internacionais.

Apesar dessas atitudes, estranhamente, sua popularidade conseguiu criar uma espécie de culto político e um grande número de fiéis seguidores, que protagonizaram os violentos eventos que marcaram o dia 08 de janeiro.

Alguns bolsonaristas tentam naturalizar as ações do dia 08 de janeiro, em Brasília, como liberdade de manifestação e tem comparado os recentes protestos que ocorreram na capital federal com as manifestações em 2013 e 2017. Além disso, tem circulado nas redes sociais uma fake News que apresenta a imagem de um incêndio acidental ocorrido em 2005 na sede do INSS como se fosse ação dos manifestantes de esquerda em 2017. Assim, a indústria de fake News continua a pleno vapor.

A lembrança de todos esses importantes e graves eventos, aqui descritos, me leva a concluir que, pelo menos nos últimos dez anos, tem havido a corrosão das instituições e das práticas políticas tradicionais, levando a um sentimento apartidário e um estimula à desobediência civil. Curiosamente a aversão aos políticos tem mobilizado as pessoas na direção da participação política. Porém, as experiências que começaram com uma perspectiva apartidária acabaram desaguando no culto à personalidade de um “mito” político inquestionável, ao apoio às ideias antidemocráticas e a maliciosa confusão entre liberdade de expressão e “licença” para prática de crimes e ofensas.

*Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

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