A equidade de gênero no ambiente de trabalho e na ciência ainda é um desafio no Brasil e no mundo. Apesar dos avanços das últimas décadas, apenas um terço dos pesquisadores no mundo são mulheres, de acordo com a Unesco.
Para debater essa realidade e apresentar caminhos para mudanças, o programa Pauta 2 recebeu a professora e ativista Anita Canavarro, do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Nascida em um bolsão de pobreza no estado do Rio de Janeiro, Ana Maria trilhou um caminho de superação até se tornar professora titular e pesquisadora reconhecida. “A escola é o determinante para esse primeiro conflito social. Eu me mantive firme na escola porque sabia que era um espaço de transformação da vida”, destacou.
Entretanto, as dificuldades foram muitas. Sendo assim, como mulher negra, precisou enfrentar obstáculos adicionais em um meio historicamente masculinizado. “A maior barreira para todas nós ainda é a divisão desigual do trabalho doméstico e do cuidado. Isso reduz nosso tempo disponível para dedicação às carreiras”, afirmou.
A ciência também é lugar de mulheres
A professora é fundadora do projeto Investiga Meninas, que busca incentivar jovens estudantes de escolas públicas, especialmente negras, a seguirem carreiras científicas. A iniciativa trabalha em parceria com escolas periféricas, a Universidade Federal de Goiás e o movimento feminista negro Dandaras no Cerrado.
“O projeto nasce da necessidade de apresentar referências femininas para essas meninas. Muitas delas nunca ouviram falar de cientistas mulheres, muito menos negras. Quem sabe se elas tivessem contato com currículos que valorizassem essas descobertas, se sentiriam motivadas a seguir esse caminho?”, explicou.
O Investiga Meninas promove atividades pedagógicas regulares em disciplinas como Química, Física, Biologia e Matemática, sempre trazendo exemplos de cientistas mulheres. Além disso, quando há financiamento, a equipe convida pesquisadoras renomadas para palestras.
“Já trouxemos cientistas como Luciana, que criou o primeiro teste rápido de câncer de ovário no Brasil, e uma pesquisadora que trabalha no desenvolvimento de laser para cabeças de mísseis, tecnologia essencial para a soberania nacional”, exemplificou a professora.
Desafios e soluções
De acordo com Anita, as mulheres ainda precisam comprovar sua competência o tempo todo. “Nossa presença na academia e no mercado de trabalho é constantemente questionada. No caso das mulheres negras, nosso corpo chega primeiro. Antes de avaliarem nossa produção, nos avaliam fisicamente”, pontuou.
Ela também criticou a diferença salarial entre homens e mulheres. “Mesmo ocupando os mesmos cargos, recebemos em média 30% a menos. Isso precisa mudar”, reforçou.
Questionada sobre o futuro, a professora defendeu a necessidade de políticas públicas eficazes para garantir equidade de gênero e raça. “Sem medidas concretas, não avançamos. Precisamos de políticas que incentivem a participação de mulheres nos espaços de decisão e que considerem fatores como a maternidade na avaliação de currículos”, afirmou.
Apesar disso, Anita acredita que há avanços e vê esperança no futuro. “Hoje posso estar em um programa de televisão sendo entrevistada por duas mulheres. Isso mostra que caminhamos. Ainda não estamos onde deveríamos, mas não estamos mais onde começamos”, concluiu.
Barreiras históricas e estruturais
O Pauta 2 ainda recebeu a socióloga e cientista política Gabriela Peixoto, que analisou as barreiras históricas e estruturais que ainda dificultam o acesso das mulheres a cargos de poder.
A cientista política ressaltou que a baixa representatividade feminina afeta a própria democracia. “Há um mito de que vivemos uma equidade de gênero e uma democracia racial bem estabelecida, mas os estudos comprovam que isso é uma falácia. Quando ocupamos os parlamentos e as esferas de decisão, conseguimos influenciar políticas públicas essenciais, como a equidade salarial e a licença-maternidade”, explicou.
A cientista política também abordou a violência política de gênero e os estereótipos que dificultam a ascensão feminina. “O poder foi construído majoritariamente por homens brancos, e eles estabelecem as normas desse ambiente. Mulheres na política são vistas como sensíveis demais ou pouco adeptas das tradicionais redes de influência masculinas, como os encontros informais que acontecem em bares e clubes”, explicou.
De acordo com ela, essa dinâmica cria um ambiente hostil para as mulheres, tornando a permanência na política um desafio ainda maior do que a chegada.
Futuro
Sobre o futuro da representação feminina, Gabriela demonstrou otimismo, mas alertou para os desafios estruturais que ainda persistem.
“Vejo esperança nas novas gerações de mulheres e na transformação cultural da sociedade. No entanto, ainda vivemos ciclos de avanços e retrocessos. O governo Lula, por exemplo, prometeu mais espaço para as mulheres, mas o sistema político fragmentado e a necessidade de coalizão muitas vezes resultam em perdas para essa representatividade”, avaliou.
No Brasil, as mulheres representam quase metade das publicações científicas, com 49% dos artigos assinados por pesquisadoras. No entanto, a presença feminina nos cargos de liderança acadêmica e científica ainda é ínfima, representando menos de 12% dessas posições.
Falta de incentivo
O cenário reflete barreiras estruturais, como a falta de incentivo desde a infância e a desigualdade na divisão das responsabilidades domésticas, além da persistência da chamada “síndrome da impostora”.
Para discutir esse tema, a professora e bióloga Janaína Bumbeer, gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário e integrante da Liga das Mulheres pelo Oceano, destacou a necessidade de mudanças no sistema científico e acadêmico para garantir maior equidade.
“Quando olhamos para cargos mais altos e vemos eles ocupados principalmente por homens, e posso até trazer um recorte maior, normalmente por homens mais velhos e brancos, fica mais difícil se sentir representada e acreditar que também podemos chegar lá”, afirmou.
Falta de estímulo e representatividade
Desde a infância, certos estímulos podem afastar meninas das carreiras científicas. “Se olharmos os livros infantis, vemos que os meninos têm histórias sobre dinossauros, planetas e grandes aventuras, enquanto as meninas são incentivadas a ler sobre princesas e contos mais limitados”, observou Janaína.
Esse fator contribui para a baixa representatividade feminina em áreas como ciência, tecnologia, engenharia e matemática. A dificuldade em atingir cargos de chefia não se limita apenas à falta de incentivo.
De acordo com Janaína, há desafios culturais e estruturais que impactam a trajetória das mulheres na ciência. “A mulher ainda é vista como responsável pela administração do lar. Quando tem filhos, o peso da gestação e da amamentação recai quase exclusivamente sobre ela. E mesmo depois, a divisão do trabalho doméstico e dos cuidados com os filhos ainda é desigual, dificultando o crescimento profissional”, destacou.
Síndrome da impostora e o impacto na carreira
Um dos fatores psicológicos que agravam essa desigualdade é a chamada síndrome da impostora, fenômeno em que mulheres, mesmo com alta qualificação, sentem que não são competentes o suficiente para ocupar determinadas posições. “Isso acontece muito entre pessoas com mestrado e doutorado. Quanto mais você estuda, mais percebe o quanto ainda há para aprender”, explicou Janaína.
Ela enfatizou que esse sentimento é ainda mais comum entre mulheres, pois elas enfrentam a necessidade constante de provar sua capacidade.
“Historicamente, os homens não precisam se provar tanto para obter reconhecimento. Já as mulheres, sim. Elas enfrentam mais barreiras e, como consequência, essa autocobrança excessiva acaba gerando a síndrome da impostora”, ressaltou.
Menos citações e invisibilização do trabalho feminino
Além de estarem sub-representadas em cargos de liderança, as cientistas também enfrentam dificuldades no reconhecimento de suas pesquisas. Embora publiquem em número semelhante ao dos homens, seus artigos são menos citados.
“Tivemos casos em que pesquisadores renomados chegaram a afirmar que mulheres no laboratório são uma distração para os homens. Além disso, quando os sobrenomes aparecem nos artigos, muitas vezes se assume que o autor é um homem”, relatou Janaína.
Ela também chamou atenção para o viés geográfico na ciência, que desfavorece mulheres e pesquisadores do chamado Sul Global. “As publicações do Sul Global já são menos citadas do que as do Norte Global. Se você é mulher e do Sul Global, essa invisibilização é ainda maior”, apontou.
Sororidade e a importância de redes de apoio
Para enfrentar esses desafios, Janaína enfatiza a necessidade de fortalecimento de redes femininas. “Precisamos apoiar outras mulheres, reconhecer e elevar o trabalho umas das outras”, afirmou.
Um exemplo disso é a Liga das Mulheres pelo Oceano, que reúne mais de 2.500 mulheres ligadas à ciência marinha, esportes aquáticos e outras áreas relacionadas ao oceano.
Ela também criticou discursos que perpetuam a rivalidade entre mulheres no ambiente de trabalho. “Muitas vezes ouvimos que ‘mulher puxa o tapete de outra mulher’ ou que ‘trabalhar com mulheres é difícil’. Isso são paradigmas criados ao longo da história para nos enfraquecer. Eu trabalho com muitas mulheres e posso dizer que é incrível. Nos apoiamos, nos ajudamos e buscamos reconhecer umas às outras”, afirmou.
Para Janaína, falar sobre esses temas e garantir que mais mulheres alcancem cargos de liderança é fundamental para mudar esse cenário. “As meninas e mulheres precisam ver que é possível chegar lá. Quanto mais referências femininas tivermos, mais mulheres se sentirão incentivadas a ocupar esses espaços”, concluiu.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 05 – Igualdade de Gênero; ODS 08 – Trabalho Decente e Crescimento Econômico
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