O Alemão que plantou o Ipê roxo, cortado para dar lugar à Igreja da Vila Santa Helena

Do dia em que o Ipê roxo foi cortado. Imagino que tivesse uns seis anos, então deve ter sido em 1966, guardo lembranças. Fui de Jeep, com meus pais à casa do Joãozinho e da Laura, que ficava lá pertinho. Naquele tempo, filho não ficava grudado na saia da mãe nem fazia nada sem o consentimento prévio. Minha mãe me deu autorização e fui ver o tombo da árvore.

Não sei precisar o mês, mas ela estava florida. Tinham vários espaços no caule, já sem a casca: as pessoas tiravam um pedaço para usar de remédio. Ipê roxo é antibiótico natural de efeito inquestionável. Eu mesmo fiz gargarejo do chá de lascas da casca que minha mãe havia trazido da fazenda e minha garganta foi curada.

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Era um domingo de manhã. Tinha uma barraquinha coberta de folha de coqueiro e paredes de bambu numa parte do lote. Na outra estava o Ipê. Muitas pessoas tinham o folheto da missa do dia nas mãos. O padre disse algumas palavras e os dois machadeiros começaram o serviço.

Lembro que um brancão disse para o outro moreno, menor e mais novo, que o corte do seu lado, oposto ao da barraca coberta com folha de coqueiro, teria de ser mais baixo para que o Ipê tombasse para aquele lado. Era lógico: se caísse do outro lado destruiria a barraquinha.

O padre, ainda jovem, cuidou de conduzir as pessoas para o lado oposto de onde a árvore ia cair e os machados foram batidos sem dó no tronco. Demorou… os machadeiros ficaram molhados de suor, mas o Ipê não teve outro jeito que não tombar sobre a Rua Catalão. Os machadeiros foram retirando as cascas do caule e as pessoas pegando para levar pra casa. Basicamente não ficou nenhuma pequena galha. Todas foram arrancadas com as folhas, também para virar remédio.

Foi quando começou a limpeza do lote para a construção da Paróquia São João Evangelista, que continua lá na Vila Santa Helena até hoje.

Da história do Ipê, o que conto foi por ouvir dizer, muitos anos depois de assistir sua queda. Quem mais me falou foi dona Dita Benzedeira, mulher do Milton. Além das rezas de benzer, ela vendia garrafadas medicinais, e o Ipê derrubado foi responsável por muito do que vendeu, enquanto ele se permaneceu no lugar da Igreja.

Goiânia nascia. A Vila Santa Helena era basicamente um matagal, cheia de trilhos nos lotes para passar da rua de baixo, para a de cima e vice versa. Em casa, as pessoas ouviam a notícia da guerra no rádio. Na rua, no trabalho, na barbearia, na igreja e, onde fosse, este era o assunto. Foi então que apareceu um moço branco, quase transparente, alto, forte, com cabelos loiros e barba também, e um boné que nunca saia da cabeça, lá por aquelas bandas. No começo era de poucas palavras, depois passou a falar com os vizinhos. Falava muito enrolado – era alemão.

Ele abriu uma oficina de consertos de máquinas em geral, mas os serviços eram mais em máquinas de costura – naquele tempo cada família tinha uma. Mas também consertava bomba de cisterna, as máquinas das muitas serrarias, serralherias e marcenarias que existiam à época.

A medida que o tempo foi passando, o alemão foi falando menos enrolado e as pessoas o compreendiam melhor. Construiu um torno mecânico, onde fazia a maioria das peças para os reparos das máquinas estragadas. Não tardou e a casa já era das melhores da redondeza, com a oficina na frente.

Nunca se envolveu com ninguém e também não se soube dele nos muitos bordéis da região. Era caseiro e trabalhava todos os dias da semana, até bem depois que escurecia. Her Hanswernner era como se apresentava. Naturalmente, por não ser um nome fácil de falar, ficou conhecido como alemão.

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Não se sabe por que um dia ele pegou a muda de Ipê que havia plantado em uma lata de 18 litros e levou para o lote da esquina. Retirou a lata em volta do arbusto, já grandinho e começando a florir, abriu o buraco na terra e plantou ali o Ipê roxo, aproveitando a terra que havia colocado na lata, ao semear a semente. Sair da lata para a planta foi um estímulo à magnitude. Cresceu logo e floriu cada vez mais.

Alemão não gostava muito de falar sobre a guerra. As pessoas imaginavam que por ser alemão. Quando não tinha jeito soltava uma palavra de contrariedade: “Ricos fazem guerra porque mandam os pobres para morrer”. Ou ainda: “Concordo com Platão, no esporte se vence sem matar e na guerra se mata sem vencer”. Também dizia: “A guerra existe desde que o mundo é mundo, mas um dia há de acabar”. Afora as frases de efeito, não dava e nem tirava razão. Se existe um assunto que nunca falava era sobre política brasileira. Vivia literalmente no seu canto.

O Milton, marido da Dita Benzedeira, disse que foi um dos que viram, mas as pessoas não acreditavam muito nisto não. Mas o fato aconteceu. Naquela época todos conheciam todos da redondeza e até os que vinham de outros pedaços de Goiânia. Se deu que, em julho de 1944, uns homens desconhecidos foram vistos em um automóvel, Chevrolet, daqueles mais chiques, que usavam uma manivela enfiada abaixo do para-choques dianteiro, para dar a partida no motor, circulando pela rua Catalão.

À época com 21 anos, Milton contou que os viu parar na porta da oficina do Alemão, numa quarta feira à noite. No final da tarde de sábado, com a porta da oficina encostada e o Alemão trabalhando lá dentro, o Chevrolet parou na porta de novo. Aí, sim, muitos viram. Dois dos três homens que estavam no carro desceram e voltaram com o Alemão entre eles. Com um revólver encostado de cada lado da sua cabeça, entrou no carro.

Naturalmente, os que viram, e isto todos concordam que o Milton viu, ninguém reagiu. O homem que ficou no carro tinha uma metralhadora na mão. O carro saiu em disparada. Na segunda-feira a polícia foi até a oficina, que havia sido fechada pelos vizinhos, e vasculhou tudo lá dentro.

De acordo com o que foi publicado na Folha de Goiaz, uns quatro meses depois, o Alemão era mesmo Her Hanswernner, um desertor do exército alemão, que fugiu e não se sabe como veio parar na Vila Santa Helena. Os homens que o sequestraram eram ligados ao comando nazista e ninguém nunca mais ouviu falar dos tais homens e nem no Alemão.

Ficou só o Ipê roxo, que após 22 anos teve de sair do lote para a Igreja ser levantada. Enquanto Milton e Dona Dita foram vivos, esta historia era contada. Ela morreu em 1975 e ele, em 1977. A partir daí, foi sumindo dos assuntos da redondeza, até cair no esquecimento.

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