Quando Valkírio chamou o Pedruca e o Popinho para fazer a serenata para a Vera, eles assustaram. Eram dos poucos amigos que Valkírio cultivava e não sabiam do interesse dele pela moça, mas a inquirição de ambos sobre o assunto foi respondida com palavras grosseiras: “Vocês vão ou não vão?”

Loiro, olhos verdes, alto, voz grave, de poucas palavras. Morava com a mãe e três irmãs numa casa na Ipameri. Tinha uma bicicleta Monark de freio de pé, preta e era dono de uma pequena floricultura, de nome Rosas, Cravos e Lírios, que ficava na Avenida 24 de Outubro, ao lado do Cine Campinas, em Goiânia.

Na fachada inferior, do lado direito da porta, além do desenho de um buquê das flores que davam nome para o estabelecimento, estava escrito em vermelho e verde as especialidades da casa: ramalhetes, corbelhas, coroas e, naturalmente, buquê.

Os dois serenateiros mais famosos do pedaço responderam afirmativamente e a serenata para a Vera foi marcada para sexta-feira – serenatas eram sempre nas noites de sexta para sábado, após a meia-noite. Três canções eram cantadas. As três escolhidas pelo solicitante foram: Chão de Estrelas, As Rosas não Falam e Carinhoso.

Lá pela meia-noite e meia, os violões ecoaram na madrugada campineira e as vozes dos dois serenateiros saíram lindas do peito. Como mandava o figurino, Vera ascendeu a luz do quarto após a última canção – era a forma de agradecimento.

Quando os dois terminaram de cantar Carinhoso, os violões continuaram e Valkírio, que havia tomado três doses de Presidente, para ter coragem, soltou a voz grave, recitando a letra da última música. De quebra, deixou um buquê de rosas, cravos e lírios com um bilhetinho apaixonado.

No sábado, Vera foi à floricultura agradecer a serenata. Estava toda apaixonada. Era infalível, moça que ganhava serenada, doava o coração. Ainda mais com declamação ao final. A primeira ida ao cinema foi marcada para a sessão das três da tarde do dia posterior.

Ela deixou claro que só naquela primeira vez iria escondida dos pais, depois ele iria à casa dela pedir para o João Martelo e dona Ana Rosa a autorização para o namoro. Tudo funcionou com perfeição e na outra semana os dois já estavam namorando.

Tanto o negócio na floricultura quanto o namoro com Vera iam bem. Foi quando o Nestor apareceu na história. Trabalhador da primeira leva nomeada por Pedro Ludovico, na nova Capital, Nestor era fiscal. Entrou para o serviço público graças a indicação do turco Chein, velho amigo de Pedro Ludovico, cabo eleitoral eficiente, de total confiança do governador.

Era 1940, o Cemitério Nossa Senhora de Santana, construído em 1939, acabara de ser inaugurado, com o sepultamento do senhor Antônio Augusto Carvalho, no dia 9 de setembro daquele ano. A exemplo do muro do Cemitério, o túmulo do seu Antônio Augusto, era uma obra de art déco.

O governo sugeria que os túmulos seguissem este padrão e foi. Tanto que hoje o Cemitério é um dos principais acervos desta arquitetura e detém uma das mais belas coleções de arte tumular da América do Sul, embora poucos saibam disto.

Até 1959, o Estado administrou aquele campo santo. Naquele ano, o prefeito Jayme Câmara aproveitou o enorme prestígio que tinha com o governador e pediu para que a administração fosse transferida para o município e conseguiu. A primeira ação do prefeito Jayme Câmara, no agora Cemitério Santana, foi iluminar o local. É que histórias de assombração, ocorridas por lá, eram contadas com frequência. As ruas em volta, inclusive a Avenida X, hoje Avenida Independência, eram um breu e desertas.

Na visita que fez à floricultura do Valkírio, Nestor quis saber de onde vinham as flores e ramagens que o dono e a Leninha, a irmã mais velha do rapaz, usavam para produzir o que vendiam: “Vem da chácara do Preto, lá da Vila São José. Aqui estão as anotações”, respondeu o proprietário, mostrando o livro de entrada e saída de mercadoria.

Nestor olhou, montou na bicicleta e rumou para a Vila São José. O Preto, que na pia batismal era Wanderley, contou que realmente vendia para Valkírio, mas que não cultivava cravos. Sem alarde, Nestor voltou na floricultura. Pediu o livro de entrada e saída de mercadoria e viu que o volume vendido superava dez vezes ao que era comprado do Preto.

Naquela época não foram poucos os que ouviram um barulho dentro do Cemitério, logo que a escuridão tomava conta daquele pedaço que dividia a Vila Operária do Setor dos Funcionários. Seu Alexandre era guarda no local, mas não tinha coragem de ir lá ver de perto o que se passava. Aliás, já lhe custava muito dormir na sala da administração que ainda hoje está lá. Porta trancada, rosário na mão e muita fé no coração seguravam o guarda no emprego.

Quando Diniz foi abrir o posto de gasolina, na 24 de Outubro com a Perimetral, contratou Derval como guarda. Ainda sem as edificações que tampam a visão, naquela época dava pra ver, lá do local onde seria o posto, boa parte do Cemitério. Numa noite de lua cheia, interessado em ver a assombração que fazia o barulho que seu Alexandre contava ouvir, Derval ficou de olho e viu um homem, numa bicicleta cargueira, pegando as coroas dos túmulos e sair tranquilamente pelo único portão do Cemitério, bem ao lado da sala onde o guarda dormia, pela Avenida X. Contou para o chefe da Guarda Municipal, José dos Reis e este notificou o serviço de fiscalização. Foi assim que Nestor entrou na história.

Quando viu que o número de flores vendidas era superior ao número de flores compradas, Nestor também não alardeou. Foi até a chefia da Guarda Municipal. O próprio José dos Reis comandou a operação que contou com mais dois guardas e na segunda noite de tocaia, flagraram Valkírio carregando a cargueira com as coroas deixadas nos dois túmulos dos sepultados do dia. Valkírio foi preso.

Vera quase morreu só de pensar que as flores do buquê recebido na noite da serenata, várias vezes beijadas, tinham vindo de coroa de defunto. Naturalmente, o namoro acabou. Naquela época preso não entrava na cadeia sem antes levar uma surra, e foi o que aconteceu com Valkírio. O preso ficava na cadeia o tempo que o juiz determinasse e também foi o que aconteceu com o Valkírio. A floricultura foi negociada, a mãe vendeu a casa e se mudou para cidade não sabida e ele não foi visto mais pelas ruas de Campinas nem pelo Pedruca e o Popinho.

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