Embora um período de repressão, ninguém nega que aquele era um tempo de sonhos. Acho que a onda musical que chegou a partir de 1963 deixou o País inteiro daquele jeito. Como conhecia mesmo era Campinas, me lembro daquele pedaço de mundo naquela época. Carros elegantes apareciam nos novos modelos: Karmann Ghia, Simca Chambord e Esplanada, Impala, Aero Willys, DKV e naturalmente o inigualável Fusca.

Por si só eles já deixavam as ruas encantadas, mas ainda tinham os jardins nas áreas frontais das casas, onde se viam Rosas, Cristas de Galo, Beijos de Amor, Palmas, Lírios, Cravos e Jasmim – os Antúrios ficavam num dos cantos do muro da casa, em vasos.

Tudo ainda ficou mais encantador quando o Iris, morador do bairro, assumiu a prefeitura. A Avenida Anhanguera, que ia só até o Rio Anicuns, foi aberta se estendendo até a Praça Padre Pelágio, que recebeu jardim e um busto do celibatário, recém falecido, olhando para Campinas, com a mão direita levantada abençoando o bairro onde reinou em prestígio. Era um alemão forte, que pregava a tolerância, a prática da caridade e paz, aceitava as prostitutas na Matriz, desde que estivessem vestidas de roupas adequadas ao templo.

Também era tolerante com os alcoólatras, fumantes e com aqueles que viviam nas rodas de jogo: “Se Deus que é o pai permite, quem sou eu para condenar?”, questionava quem ia tirar satisfação. Tinha fama de brabo, mas na verdade um coração mole contrastava com a voz excessivamente forte. Se existe alguém que os campineiros adoraram quase igual a Deus, foi o Padre Pelágio.

Iris sabia disto, como sabia que colocar o Padre na Praça que levava seu nome e florir ao seu redor, lhe daria prestígio… aquele mesmo prestígio que o acompanhou até o final da vida no dia 9 de novembro de 2021, aos 87 anos. Iris era crente, mas tinha um carinho fraternal pelo velho Padre alemão. Campinas também foi toda asfaltada por Iris. Os Flamboyants ocuparam as calçadas e o que já era belo, ficou indescritível.

A música que chegou no início dos anos de 1963, nasceu com pinta de rock’n roll, mas logo foi transformada em romantismo puro. Melodias ricamente adornadas com muitos instrumentos e efeitos de arrancar suspiros e letras de ternura pura, amor e sonho… muito sonho.

Roberto Carlos também reinou em Campinas. Não como o Padre Pelágio e o Iris, mas reinou. Todos cantavam suas canções, que também animavam os bailes de finais de semana: nem todos tinham as radiolas, que eram portáteis, então quem tinha desfrutava de muito prestígio e nunca se negava a levar a danada para a casa da chamada “brincadeira”. Muita gente se casou por namoros iniciados nas “brincadeiras”.

Os casais dançavam agarradinhos, uns 30 centímetros quadrados eram suficientes para cada um. O moço tinha bala de menta para oferecer para a moça e esta devolvia a embalagem atada ao meio, num formato de nó de gravata. Pronto. Estava aceita a paquera. O próximo passo era o convite para assistir um filme em um dos cinemas do bairro: Campinas, Eldorado, Ritz, Avenida e Fátima. Um destes sempre tinha em cartaz um filme romântico: Dio Come Ti Amo, Doutor Jivago, E O Vento Levou foram alguns lançados nesta época. Filmes bonitos… tempo bonito.

Moré ficou sozinho depois que o Marcelino foi viver com a tia lá na Capuava. A irmã viu que as instalações da oficina de bicicleta que o Moré tinha não eram suficientes para ele e o filho morar. Durante o dia a oficina, à noite a porta da frente era abaixada e a pequena sala da Avenida Bernardo Sayão virava moradia. O italiano tinha um fogareiro a querosene, com uma bobinha de lado. Bastava puxar o bombear que o fogo aumentava. Tinha apenas uma trempe, mas bastava. A carne era feita junta com o arroz. O feijão, o próprio Marcelino cozinhava, pela manhã, no fogareiro de lata, abastecido por serragem, que ele buscava lá na marcenaria do seu Dalvino. O arroz feito à noite era suficiente para o jantar e o almoço do dia vindouro. O Marcelino já tinha 10 anos e não havia saído do primeiro ano.

Depois que foi morar com a tia, não tomou mais bomba. Foi quando apareceu o Zé Sergipano, com a família. Dorotéia, a esposa, tinha 10 filhos. Catarina, a mais velha, 16 anos. Tinha outras duas mulheres e sete homens. Severina contava 12 anos e Joaquina era menina de colo. Aqueles que já davam conta viviam na rua. Pediam, lavavam carro, ajudavam encher caminhão no Ferro Velho do Luiz e ao final do dia cada um trazia um pouquinho do que ganhavam para ajudar Dorotéia comprar a comida.

Zé Sergipano era chapa, lá no Arroz Ibiá. Saía do trabalho e ia para o buteco do seu Joaquim, bem em frente a empacotadora de arroz e de lá só saía, bêbado, quando o dono resolvia fechar a venda. Logo a Catarina foi morar com o Paulão Barbeiro. A Severina ajudava Dorotéia com a lida do lar, na verdade um barracão de dois cômodos, com privada de buraco no fundo, no mesmo lote onde o Moré tinha a oficina.

Moré aproximou da Severina quando viu que ela buscava a serragem para cozinhar o feijão da família. Pediu pra ela trazer a serragem pra ele também e ele lhe dava uns trocados… bem minguados por sinal. Não durou muito tempo e o Zé Sergipano se envolveu numa briga com outro chapa. Apanhou e o seu Geraldo, dono do Arroz Ibiá o mandou embora. Aluguel atrasado, filha mais velha morando com o Paulão, Severina ajudando a mãe, a bebê magrinha, dois dos meninos ainda muito pequenos e os outros três vagando pelo bairro. A situação Família do Zé Sergipano contrastava com aquele ambiente de sonho e flores dos anos de 1960.

Seu Elizeu até tinha tolerância com os que atrasavam o aluguel, mas a dona Violante não. Mandou o Zé Sergipano desocupar o barracão. Dona Soninha que sabia da vida de todo mundo e que adorava contar o que foi e como foi, disse que o Zé Sergipano vendeu a Severina, ainda com 12 anos, para o Moré, que já passava dos 50. O valor foi o da bicicleta que o Moré vendeu para o Praxedes da engraxataria. A família do Sergipano sumiu e a menina ficou morando com o Moré. Normalmente este tipo de acontecimento não é relatado nas estórias contadas daqueles tempos.