Imagine o seguinte cenário: você está ouvindo rádio e a programação é interrompida por uma “notícia em edição extraordinária”. Só que não era qualquer notícia. Era o relato de uma “invasão de marcianos”. Apesar dela não ser real, a reação de quem ouvia foi. Pânico. Linhas telefônicas congestionadas. Aglomeração nas ruas. Tentativa de fuga. Isso ocorreu, em 1938, quando rádio CBS (Columbia Broadcasting System) dramatizou o livro de Orson Welles, Guerra dos Mundos, que narra a invasão marciana à Terra, sem avisar que era uma encenação. No outro lado da transmissão, estavam cerca de 1,2 milhão de pessoas, e, pelo menos meio milhão acreditou ser um fato real. Mas qual a razão de eu resgatar essa história? Ela tem muito a ver com o que tem ocorrido no Brasil. Nos dois casos, existe falta de leitura crítica de mídias e há consequências reais dessa não criticidade.
Vivemos em um mundo de telas. Nele, deixamos de apenas consumir mídias e passamos a também produzi-las. Instagram, Facebook, Twitter, Tiktok, são alguns dos meios pelos quais qualquer pessoa pode levar ao público a sua opinião. Apesar da possibilidade da liberdade de expressão ter sido ampliada, é necessário pensar que nem todos/todas/todes estão preparados para usá-la de maneira consciente e consumir produtos midiáticos de forma crítica. Perguntas básicas poderiam ser feitas para nortear esse entendimento. Quais interesses estão por trás dessa notícia/informação? Ela é real ou é fantasiosa?
Um imaginário de quem são as pessoas que não fazem essa leitura crítica de mídia foi criado e compartilhado socialmente, é o “tio/tia do Whatsapp”. Ele carrega muitos significados, como o de serem pessoas as quais consomem informações em redes sociais, por exemplo, sem se perguntarem se são ou não verdadeiras, e as tem como verdades absolutas.
Em oito de janeiro de 2023, Brasília, centro do poder federal foi palco do ataque por parte de uma população de extrema direita radicalizada. Dentre as características comuns dos terroristas, está à crença no que tem sido nomeado por fake news, notícias falsas, desinformação. O tio do Whatsapp era a figura predominante naquelas cenas de terror, um perfil materializado em filmagens e fotografias, homens brancos e de meia idade.
Dias antes do ataque à capital, um dos primeiros atos do novo governo federal foi criar um departamento voltado aos Direitos na Rede e à Educação Midiática, já em 1º de janeiro. O órgão está integrado à estrutura da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Vale destaque para a atribuição do departamento de “auxiliar na formulação, articulação e implementação de políticas públicas de educação midiática, em articulação com o Ministério da Educação”.
A desinformação
A crença e o uso da desinformação não é privilégio da direita, nem da esquerda. O fato é que ela está entre nós e tem materializado cenários de terrorismo no país. É fato ainda que a imprensa passou por um processo de descrédito desde as Jornadas de Junho de 2013. Assim, a credibilidade que era de jornalistas e veículos renomados, passou a ser vinculada a pessoas próximas, aquelas a quem temos afetos. Dessa forma, se tornou mais “fácil” acreditar naquela mensagem que chega em um grupo de mensageria de um parente/amigo, do que em um profissional da imprensa. Afinal, “o meu parente/amigo não mentiria. Não é?”. Mas se nem ele soubesse que a informação não é verdadeira?
Quatro a cada 10 pessoas afirma acreditar em notícias falsas no Brasil. Dos que creem em informações erradas, 43% revelaram já ter repassado um post, vídeo, imagem ou notícia e só depois perceberam que se tratava de uma notícia falsa. Os dados são de um levantamento feito pela Poynter Institute, uma escola de jornalismo e organização de pesquisas americana.
Mas a quem interessa a fábrica da notícias falsas? Um estudo realizado pelo NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) revelou que a construção da desinformação, no Brasil, tem se tornado cada vez mais sofisticada. A análise aponta que, antes de ser disseminada, a desinformação é testada em grupos menores e nichados. Assim, podemos concluir que essa fábrica de fake news é aparelhada pois, atrás dela, existem interesses, como o de agentes políticos e empresariais, por exemplo.
A crença em uma informação falsa tem sido estuda por vários pesquisadores e pesquisadoras do Brasil e do mundo. Os estudos revelam que há questões complexas que são afetadas por nossas subjetividades. Uma delas é a de que ao termos contato com uma informação inverídica, optamos por acreditar nela, caso já tenhamos predisposição a vermos como plausível. Mas como nos blindarmos desse cenário e não nos tornemos os “tios/tias do whastapp”? Um caminho possível é a educação voltada para a leitura crítica de mídia.
Leitura crítica de mídia
É importante observar que alguns agentes da sociedade civil e do poder público têm se preocupado com como lemos as mídias. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) criou o Sistema de Alerta de Desinformação contra as Eleições. A Agência Lupa e o Vaza, Falsiane também atuam neste sentido. Estes espaços incentivam a prática da leitura crítica de mídia, ou seja, estimulam que quem a consuma a observe com lentes analíticas e não a absorva de forma passiva e totalmente crente ao que lê e ouve, por exemplo.
Em caminho parecido, a Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (ABPEDUCOM) defende o conceito de educomunicação. A entidade a compreende como “paradigma orientador de práticas sócio-educativo-comunicacionais que têm como meta a criação e fortalecimento de ecossistemas comunicativos abertos e democráticos nos espaços educativos, mediante a gestão compartilhada e solidária dos recursos da comunicação, suas linguagens e tecnologias, levando ao fortalecimento do protagonismo dos sujeitos sociais e ao consequente exercício prático do direito universal à expressão”. Dentre as metas da educomunicação, está a de leitura crítica de mídia.
Neste cenário, é válido ainda resgatar a Agenda 2030 da ONU. Ela aponta caminhos a serem seguidos para que o mundo seja melhor, e, para isso, apresenta os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Dois deles nos interessa particularmente para essa reflexão, é o ODS 16 “Paz, Justiça e Instituições Eficazes” e o ODS 4 “Educação de Qualidade”. Há um imbricamento necessário entre os dois.
Pensar em um mundo em que as pessoas consumam e até mesmo se expressem midiaticamente de forma crítica e responsável, é também compreender a necessidade de fortalecimento das instituições, como a imprensa, e a educação para além da sala de aula, para a vida. É ensinar/compartilhar uma educação que permita autonomia, aos moldes do que se pensa em educomunicação, e que se inspira na máxima da educação transformadora de Paulo Freire. Para que não tenhamos mais cenas como a de Brasília ou da encenação de Guerras dos Mundos, é preciso que aprendermos a ler o mundo pelas nossas próprias lentes.
*Laila Melo é mestra em Comunicação pela UnB, e jornalista pela UFG. Investiga discurso, política, estudos culturais, educação e teorias feministas e de gênero.