Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

O que os olhos não vêem…

A partir da década de 1960, a programação televisiva tomava conta dos lares estadunidenses. Esse fato levou ao interesse por pesquisas que pudessem avaliar como os elementos midiáticos, destacadamente a televisão, interfeririam ou influenciariam na relação entre sociedade, cultura e geração de informação.

Porém, para a construção de uma teoria consistente sobre esse fenômeno seria necessário estabelecer parâmetros teóricos e metodológicos para realizar uma sondagem sistemática que permitisse um rigoroso levantamento das variáveis que envolvem o público, suas preferências e como consumiriam as informações. Nesse sentido, cabe destacar o trabalho pioneiro, realizado em 1966, coordenado pelos intelectuais Pierre Bourdieu e Alain Darbel, que recebeu o título de “O amor pela arte: museus e seu público” (L´amour de l´art: les musées et leur public). A pesquisa realizada por esse projeto visava avaliar o comportamento e a variedade de composição do público frequentador de museus na Europa.

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O trabalho de Bourdieu e Darbel instigou a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) a propor, em 1967, a organização de um ousado projeto de pesquisa que permitisse construir parâmetros para a elaboração de um índice de desenvolvimento cultural. A ideia principal era a de poder estabelecer, a partir desses estudos, uma relação entre os estágios de desenvolvimento cultural e a ação dos variados meios de comunicação.

Pelo exposto, observamos que a partir dos anos 60 os debates sobre a influência dos meios de comunicação na opinião das pessoas e em suas preferências, foi marcante. Mas, a discussão tornava-se ainda mais inquietante quando se questionava se as informações veiculadas, fossem reais ou ficcionais, não influenciariam ou até determinariam os comportamentos sociais. Assim, com o intuito de pesquisar acerca dessas problematizações, a Annenberg School for Communication, da Universidade da Pensilvânia, que já vinha desenvolvendo pesquisas juntamente com a Comissão Nacional sobre Causas e Prevenção da Violência nos Estados Unidos, organizou o “Cultural Indicators Project”, em 1969.

O “Cultural Indicators Project”, contou com a importante atuação de George Gerbner (1919-2005), um estudioso do campo da comunicação, nascido na Hungria, mas naturalizado norte-americano. Ele desenvolveu uma teoria que recebeu variadas denominações: Teoria do Cultivo Mediático ou Teoria da Cultivação ou ainda Teoria do Efeito Cultivado. De forma simplificada, essa teoria afirma que a exposição repetida à mídia ao longo do tempo influencia as percepções da realidade social.

Apesar das críticas a essa teoria, pois consideram que ela difunde um pressuposto equivocado de vulnerabilidade e excessiva passividade do expectador, vou me valer da dita Teoria do Efeito Cultivado para propor a reflexão acerca das impressões e opiniões que vão se construindo, a partir dos noticiários, a respeito do que é uma guerra e das ações dos atores na guerra envolvendo Rússia e Ucrânia.

Não raro nos deparamos com comentários sobre os horrores da Guerra da Ucrânia, como se em outras guerras os eventos e os horrores fossem diferentes. Guerra é guerra e é sempre marcada por barbaridades, desumanidades e injustiças. Justamente por isso, ela deve ser sempre evitada. É necessário que se entenda que não pretendo naturalizar a guerra e seus resultados, mas a surpresa que muitos demonstram, caracteriza uma ingenuidade que colabora para a construção de narrativas e explicações que escapam ao mundo real.

Outro aspecto é que a maior ou menor repercussão de uma guerra na mídia depende de variáveis como a localização, os envolvidos, as repercussões, a duração, a intensidade, entre outras. Dessa forma, a justificável superexposição do conflito na Ucrânia, faz crer, ao expectador desavisado, que não há outros conflitos em andamento.

A verdade é que nesse mesmo momento, mas sem a mesma ressonância na mídia, estão em andamento outros conflitos tão ou mais violentos.

É interessante lembrarmos que seguem conflitos, brutalidades, desrespeito aos direitos humanos, crimes contra a humanidade, por exemplo: no Afeganistão, na Síria, na Nigéria, no Iêmen, em Burkina-Fasso, no Mali, em Mianmar e na Etiópia.

Um dos casos mais graves é o do Iêmen, que é considerado, pela ONU, como a maior crise humanitária da atualidade, pois em sete anos de conflito mais de 10 mil crianças foram vítimas de mortes ou mutilações. Segundo a Unicef (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância) 11 milhões de crianças carecem de auxílio humanitário.

Já a Rússia, além da crise ucraniana, está envolvida desde 2011 na Guerra da Síria apoiando, inclusive com ataques aéreos, o governo autoritário de Bashar al-Assad. Porém, a maneira como esses eventos tem sido tratados pela mídia não geraram a mesma indignação que observamos em relação às ações de Putin na Ucrânia.

Enfim, a compreensão das complexas relações internacionais não pode se basear na mera informação mediática, mas da reflexão de como, para quem e com que proposito esses conteúdos são produzidos e como são consumidos pelo público.

*Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Mestre em Ciências da Religião, especialista em Mídia e Educação, Professor de História e Especialista em Geopolítica.

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