Desde o dia 16 de março, as escolas em Goiás não estão mais cheias. Os corredores na hora do recreio já não têm o mesmo movimento, as dúvidas dos alunos não são mais compartilhadas entre todos e os trabalhos em grupo estão na memória. A sala dos professores, talvez, até esteja sem café.
“Quando a gente volta?”. Essa é a pergunta repetida pelos estudantes que aguardam o retorno das aulas presenciais. A pandemia afetou a todos, alguns de maneira irreparável. Mas na educação, até que tudo se normalize, é difícil saber, inclusive, qual o grau de atraso dos alunos, tenham eles deficiência ou não.
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Cristiane Melo (direita), sua mãe, passa mais tempo com a filha durante o isolamento
Ana Clara Melo, de 9 anos, é mais uma estudante que se arruma para se sentar em frente à tela de um computador. A aluna do ensino público, cega, afirmou que mesmo após um ano de pandemia, ainda não se acostumou com a situação. “Não estou gostando muito das aulas online porque só passam atividades, muita lição de casa. E, também, nas aulas presenciais eu tenho meus amigos, na remota não”.
A mãe de Ana Clara, Cristiane Melo, ressaltou que para a aluna do 4º ano do ensino fundamental, a falta de contato com os professores faz com que ambas precisem se reinventar. Durante o isolamento, Cristiane pôde passar mais tempo com a filha e se dedicar ao aprendizado de Ana Clara. “Quando não sei, pesquiso, procuro ajudar da melhor maneira possível”, disse.
Reinvenção também é a palavra usada por Gabriela Ferreira, de 27 anos, universitária, estudante de estética e surda. Quando a pandemia foi declarada no Brasil, em 12 de março de 2020, a Gabriela estava no 2º período do curso.
No início, além da adaptação, a aluna relatou que a universidade demorou para disponibilizar uma intérprete de libras, pois a administração da instituição fica em outro Estado e a burocracia envolvendo a contratação da profissional atrapalhou o início dela no ensino remoto. “Ficou mais difícil porque eu tinha essa barreira da comunicação”. Vale ressaltar que, além de falar libras, ela também faz leitura labial.
Os problemas em relação à adaptação das escolas para lidar com alunos com deficiência também ocorrem na educação pública. A mãe da Ana Clara detalhou que as atividades disponibilizadas não são adaptadas, logo, Cristiane imprime o material e transcreve para o braile, para que a filha possa fazer o exercício.
“Aí, quando ela coloca a atividade feita no grupo [do WhatsApp], muitos coleguinhas não sabem o que é braile, veem a folha só com os pontinhos e dizem: ‘não tem resposta’. Eu pedi para os professores enviarem no meu privado [do WhatsApp] para não ter que ficar esse questionamento, ficar explicando, mas, infelizmente, só dois professores fizeram isso”, relatou.
Ensino público durante a pandemia
A pandemia exigiu um novo modelo de ensino para os estudantes e todos precisaram se adaptar de alguma maneira. As dificuldades enfrentadas vão desde a falta de apoio e ajuda em casa, até problemas com acesso à tecnologia. Para alunos com deficiência, que antes já precisavam de uma adaptação dentro da sala de aula para equilibrar o aprendizado, tudo ficou mais complicado.
O modelo adotado para a educação à distância em Goiânia consiste em um sistema disponibilizado pela prefeitura onde os professores colocam as atividades para os alunos que, com acesso ao material, fazem e entregam o exercício concluído para o professor. O atendimento é conduzido pelo WhatsApp, alguns individuais, outros em grupos. Algumas videoaulas ainda são gravadas para facilitar o entendimento.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia, a Capital tem 1.895 alunos com algum tipo de deficiência, seja ela auditiva ou visual, entre outras. O atendimento para esses estudantes é feito pelo Atendimento Educacional Especializado (AEE), no contraturno escolar, também com atividades online.
Para ter acesso à Educação Especial do município, a criança precisa de um laudo que, geralmente, já existe desde os primeiros dias de vida. Assim que é matriculado na escola, o estudante já pode ser encaminhado para o AEE. Caso não haja o laudo, a equipe multidisciplinar da SME avalia onde o aluno será atendido.
Dedicação e pesquisa

A estudante do 4º período de Estética, Gabriela Ferreira, já é formada em engenharia ambiental e pós-graduada. Ela contou que não teve dificuldades em sua primeira formação, em um cenário sem pandemia. Porém, segundo ela, as aulas remotas no curso de estética limitam as atividades práticas.
“Foi difícil para me acostumar com as aulas remotas. Além de ser muito diferente, eu queria aulas presenciais. Meu curso tem muita prática e eu aprendo mais com relacionamento, com a socialização com os professores e com os colegas. O remoto é uma barreira difícil. Parece que a professora não consegue ensinar tudo”, disse.
A falta de prática citada por Gabriela também foi lembrada por Ana Clara. No remoto, o ensino pode se tornar maçante diante de tantas teorias, com atividades sempre no padrão de papel e caneta. “Na escola municipal, eles passam só uma atividade para ela e não tem contato com o professor, com o coleguinha, então ela acha mais difícil”, reforçou a mãe da estudante.
Além das aulas na escola pública, Ana Clara também tem atendimento no Centro Brasileiro de Reabilitação e Apoio ao Deficiente Visual (Cebrav). Em relação ao Centro, ela não reclama da falta dos amigos, pois afirma que os encontra através das aulas remotas.
A professora de música no Cebrav, Marisa Eugênia, que por 18 anos esteve à frente do Centro, relatou que os profissionais da instituição precisaram mudar toda a didática para os alunos no prazo de uma semana, assim que a pandemia começou.
“Imagina, aulas remotas através de videochamadas e vídeos elaborados com conteúdo para pessoas com deficiência visual, que dependem da visão para ver aquele vídeo e acompanhar a aula. Então, se para outras pessoas sem deficiência foi complicado, para nós foi o dobro. Um desafio enorme, especialmente para nossos alunos em fase de alfabetização”, reforçou.

A queda no rendimento dos alunos é uma das principais preocupações de Marisa. A professora explica que a diferença no atendimento “é muito grande” e que três semestres com aulas à distância podem causar uma perda irreparável no aprendizado.
“E nós percebemos também que não só nos atendimentos no Cebrav, mas na rede regular foi gritante o atraso, porque grande parte dos atendimentos das escolas regulares foi através de plataformas que não tinham muito contato com o professor e através de videoaulas com intervalos muito pequenos”.
Diante dos empecilhos, Ana Clara tem tido apenas aulas de português e matemática na educação pública. Cristiane contou que uma profissional de AEE da escola, responsável pelo atendimento da Ana Clara, afirmou que essas são as duas matérias principais e que precisam ser o foco, pois possibilitarão um entendimento mais fácil das demais disciplinas posteriormente. “Mas, mesmo assim, eu fico com medo de que mais na frente, ela vá sentir falta”.
Apesar das dúvidas no ensino, Cristiane Melo afirmou que o desempenho da filha aumentou na pandemia. “Todos os professores disseram que não imaginavam que teriam essa resposta porque a Ana Clara começou a fazer a leitura em braile no ano passado”.
Gabriela, a estudante universitária, também declarou que não houve queda no desempenho, mas ressaltou que para isso precisou se dedicar por mais tempo, além de abusar de pesquisas na internet. “Até porque, a intérprete é só na hora da aula”, complementou destacando que a formação anterior, em engenharia, ajuda, já que consegue entregar as atividades mais detalhadas para os professores, com gráficos, por exemplo.
Do outro lado do ensino
A psicopedagoga especializada em Atendimento Educacional Especializado (AEE), Elizabeth Ferreira, mãe de Gabriela, relatou as dificuldades enfrentadas pelos professores que tiveram o serviço aumentado em 3 vezes. No caso dela, o desafio ocorre porque tem alunos com diferentes limitações.
“No presencial, eu ainda consigo atender em dupla, uma organização numa sala, eles trocam experiências, o que é algo muito importante para um aluno que tem uma limitação, uma síndrome ou deficiência”, disse.
Detalhadamente, Elizabeth explicou que após o atendimento de um aluno, já passa para outro e, assim que finaliza os atendimentos, precisa fazer relatórios de acompanhamento. O serviço se estende por finais de semana e feriados.

inclusiva na pandemia
Mas ela contou, também, que do outro lado, vários pais estiveram presentes e até se surpreenderam com o desenvolvimento dos filhos. “Teve colega que relatou em reunião que a mãe não sabia que o filho já estava lendo e quando viu o professor do AEE com o aluno, praticando a leitura, questionou sobre a situação”.
A professora de música do Cebrav, Marisa, também falou sobre as principais dificuldades na educação de cegos. Segundo a educadora, um dos maiores desafios para os profissionais é a alfabetização de um aluno com baixa ou perda total da visão, isso no ensino presencial. Com a distância, dependendo do apoio da família para orientar o aluno, mesmo com todo o esforço houve um atraso e consequente queda no rendimento.
Para Marisa, a pandemia causou um déficit no ensino de maneira tão geral que escolas públicas e particulares igualaram o rendimento. “É uma preocupação para os especialistas na área da educação, como fazer para resgatar esse tempo perdido, esse conteúdo defasado. Então houve sim uma queda exorbitante, isso é irreparável e indiscutível”.
Mas há também exemplos de alunos que se deram bem com a distância. Elizabeth contou a história de um de seus alunos, que possui uma deficiência intelectual leve e que aguarda ansioso o começo do atendimento por vídeo: “Acorda, toma banho, se arruma, passa perfume e espera a aula por vídeo começar. Sente que é importante”.
Outro fato foi notado em dois alunos com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), que se saíram melhores no remoto do que presencialmente. “No remoto, eles veem a gente e parecem que não são tão tímidos. Já no presencial nós sentimos que essas duas crianças têm essa limitação de te olhar frente a frente”, relatou.
Ansiedade pelo retorno
A mãe de Ana Clara, Cristiane Melo, explicou que a filha, de fato, sente muita falta dos amigos e, também, dos professores. Muito ativa, Ana Clara estuda música no Cebrav, pratica atletismo, natação e até ciclismo. É no Cebrav onde a criança encontra o melhor atendimento, com “tudo o que precisa”, desde impressões, tarefas e livros em braile. Ana Clara lamenta ter tido que parar com todas as atividades que fazia. “Eu estou sentindo muita falta da escola, do atletismo, do ciclismo, de todas as coisas que eu fazia quando era tudo normal, quando não havia o coronavírus”.
Mesmo com a ansiedade pelo retorno, Marisa explicou que a volta não será tão simples assim, ainda mais para os cegos. “O deficiente visual é um público que corre mais riscos, porque utiliza muito as mãos, tem toda essa dificuldade de saber se está muito próximo de outra pessoa ou não”.
Apesar disso, a professora acredita que, pelo menos na rede pública, protocolos serão desenvolvidos para um retorno mais seguro. “Mas, assim, a retomada mesmo, presencial, ela vai exigir um replanejamento para ver qual conteúdo é mais importante para que dê sequência às outras séries”.
Ciente das dificuldades, no Cebrav, a equipe achou uma maneira de aproximar as crianças. o Centro montou grupos com os alunos que pertenciam à mesma sala durante o ensino presencial e passou a organizar encontros virtuais. “Promovemos filmes pelo Google Meet com 50 crianças. Depois conversamos com eles, debatemos, ouvimos a opinião sobre aquele filme. Organizamos também brincadeiras de letramento, de soletrando, bingo”.
Após um ano de aulas remotas, Gabriela Ferreira afirmou que agora está mais fácil. Ela não apenas se adaptou, como a professora também já a conhece e entende suas principais necessidades. Mesmo assim, a estudante espera pelo retorno das aulas presenciais, pois para os surdos, o visual é muito importante. Dentro da sala de aula, na hora do conteúdo, Gabriela pode prestar atenção em exemplos visuais, além de reparar nas expressões corporais e faciais do professor, que facilita muito a comunicação, o entendimento do aluno surdo.
“É melhor. Eu converso com a professora, tenho mais o visual, tenho mais facilidade, converso com as colegas também. Preciso ter esse contato visual e quando é remoto, perdemos muito nessa questão”.