Na capital paulista, uma biblioteca parece ser diferente da grande maioria. A diferença aparece nos títulos em destaque, nos objetivos das leituras e até mesmo no modo como os livros são levados ao destino final – as prateleiras.

O cenário ao redor é uma escola pública de tempo integral. A história do local também integra vários nomes. Entre eles, o da professora Rachel; os quase 30 alunos envolvidos; e até mesmo o da escritora e pesquisadora Djamila Ribeiro, autora do bestseller Pequeno Manual Antirracista.

Outro nome também se destaca: o de Marielle Franco, escolhido para nomear a biblioteca nada comum, sobretudo, por abraçar as diferenças.

O começo

Antes da biblioteca se tornar uma das protagonistas da Escola Estadual Professor Andronico de Mello, em São Paulo (SP), a construção começa a partir de uma ideia, ou melhor, uma reflexão, no estado do Ceará.

A professora Rachel D’Amico conta que durante o seu doutorado em Ciências Sociais, na Universidade Federal do Ceará (UFC), teve contato com uma disciplina que trazia conceitos como racismo e branquitude. Depois, por meio de uma palestrante convidada, conheceu uma escola antirracista de Salvador.

Após acompanhar a responsável pela escola baiana nas redes sociais, uma das postagens incentivava a criação de bibliotecas como instrumento de transformação.
De volta a São Paulo, Rachel sabia que tinha uma nova missão.

A proposta não era criar uma biblioteca do zero, mas de gerar mudanças no espaço já existente na escola. Depois de conversar com a coordenadora responsável, o projeto, que até então morava apenas no campo das ideias, poderia sair do papel.

Competição

O “instinto competitivo” típico da adolescência foi uma das apostas da professora ao propor uma nova dinâmica. Ela era a responsável por lecionar uma disciplina sobre aculturação e o processo de silenciamento de culturas, como as de matrizes africanas, quilombolas e indígenas.

Então, a ideia era reunir alunos dos terceiros anos do Ensino Médio para assumirem juntos a missão de avaliar os títulos da biblioteca e perceber padrões importantes.

“A primeira ação foi na biblioteca, e começar vendo quais os livros que tinham lá. Assim, iam entendendo o que é aculturação, que é não ter referências”, relembra Rachel.

Foi assim que perceberam que havia poucos títulos publicados por escritores negros e outras comunidades subrepresentadas. Assim como também eram escassas as histórias com protagonistas destes públicos. Isso, em uma escola em que a maioria dos alunos não são brancos.

Ela explica que perceberam um “vazio referencial”, e para motivar os alunos a se empenharam na mudança dessa realidade, aparece a competição.

”Para cada livro que eles conseguissem, e não poderia ser comprado, escrito com protagonistas negras, indígenas ou quilombolas,a turma ganharia 10 pontos. E para cada convidado trazido para palestrar na escola, ganharia 150 pontos”, explica. 

A dinâmica ainda está em andamento e o prêmio final, escolhido pelos próprios alunos, é uma ida ao teatro.

Referências

“No Ensino Integral temos uma coisa muito forte que é o da autonomia e do protagonismo”, ressalta a professora Rachel. Para ela, desde o início, o projeto e até mesmo a metodologia de “competição”, poderiam estimular um senso de independência.

“Eles mandam os e-mails para as livrarias e editoras, entram em contato com os responsáveis. Os professores podem até indicar alguns contatos, mas são os alunos que fazem todo o meio de campo”, garante Rachel.

Com ela, a turma possui três aulas por semana. Todavia, os efeitos vão além das aulas estipuladas no cronograma de horários.

“Acho que nos tornamos adultos quando conseguimos enfrentar qualquer um que esteja errado. Quando conseguimos falar: eu sei do que estou falando e você está errado”, reflete Rachel.

Nesse sentido, ela explica que já presenciou casos em que essa mudança tornou-se perceptível em seus estudantes. Um deles, inclusive, conseguiu se posicionar diante de uma fala que demonstrava o que especialistas classificam como racismo estrutural.

“Você deixa de estar naquele pequeno espaço da escola onde você apenas recebe e se identifica como um sujeito com voz, força e identidade. O mais significativo é isso, ver pessoas que conseguem enfrentar o mundo e o que está errado nele”, pontua.

Reconhecimento

Desde o início, um dos nomes mais compartilhados pelos alunos era o da escritora Djamila Ribeiro. Entre suas publicações, estão nomes como “Pequeno Manual Antirracista” (2019) e “Lugar de Fala” (2017).

Um dia, Rachel conseguiu entrar em contato com a equipe responsável pela assessoria de imprensa da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc SP). Assim, a ideia era que o projeto virasse notícia na página que costuma publicar atualizações de boas práticas escolares no estado.

“Eu sabia que o projeto seria importante e que seria importante para os alunos se reconhecerem”, diz. No entanto, o que a educadora não sabia era que a equipe da Seduc gravaria um vídeo com os alunos, “endereçado” diretamente à Djamila.

E como uma história cheia de boas surpresas, o vídeo renderia uma visita da escritora ao espaço físico da biblioteca Marielle Franco.

“Os alunos não paravam de dar livros para ela autografar”, relembra a professora, bem-humorada.

Personagens visíveis

“Ninguém sabia que a Djamila viria, mas ela veio”, recorda a professora. “Eles ficaram muito felizes, alguns choravam quando a viram. Isso é muito significativo, de você entender que você é um sujeito que foi visto.”
Ela conta que o número de contatos aumentou, assim como as doações. Porém, deixa claro que o projeto ainda está de portas abertas para quem desejar ajudar, seja com livros, ou na disponibilização de palestras.
“Tivemos bastante palestrantes, todos indígenas ou negros. Recebemos um músico, várias escritoras… Então, é essa a ideia. A de que eles podem também”, sintetiza.

“Temos adolescentes se tornando indivíduos independentes e potentes. Isso é o mais bonito que tem”, afirma.

Por acreditar no senso de autonomia presente em cada estudante, Rachel destaca que a sala de aula representa um espaço onde os aprendizados se multiplicam para além dos saberes teóricos, a começar pela possibilidade de docentes também aprenderem com seus estudantes.

“No próximo semestre, vamos trazer não apenas escritores, mas pensamos que seria legal trazer músicos, pessoas do T.I, fotógrafos…”, conta. Assim, a preocupação em trazer vozes mais plurais e novas referências para os estudantes, ultrapassa os limites da biblioteca ou da literatura e se espalha por toda a escola.

As boas vindas para a Literatura

Ao passo que a biblioteca antirracista aparece como personagem principal dessa história, a Literatura funciona como o “espaço” que reune os outros personagens, como os alunos e professores da Escola Estadual Professor Andronico de Mello, em torno de uma vontade em comum: descobrir novos espaços de reconhecimento, além de unir forças para enfrentamentos.

“A Literatura tem uma força”, resume a professora Rachel. Recentemente, foi possível comprovar esse pensamento, mesmo em uma situação de tristeza. Em São Paulo, a escola é próxima do colégio em que aconteceu a morte de uma professora em março deste ano. Um dos casos de violência na escola registrados no país durante 2023.

Na ocasião, uma das alunas propôs que fizessem rodas de leitura com exemplares de Literatura Infantil com as crianças da escola que vivenciou o ataque.

“De um lugar que as pessoas pouco leem, e de repente terem ideias de ler para outros, significa que a literatura é a ponte para entender o mundo também. E não foi uma ideia nem minha, mas vinda de alunos”, conclui.

Um dia, depois da palestra de uma escritora, uma estudante do 1º ano do Ensino Médio se apressou em dizer para Rachel: gostaria de ganhar um livro daquela escritora em seu próximo aniversário.

Ela garante que o livro virá, assim como novas ideias de projetos que façam os alunos pensarem não em um mundo totalmente novo, mas sem dúvidas, diferente.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 4 – Educação de Qualidade.

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