Naquele tempo a criançada tomava conta das ruas. Poucos carros, muitas bicicletas e carroças e mais meninos do que tudo isso junto. A rua três da Vila Abajá era (ainda é) um espaço diferente. Descendo pela Catalão, hoje Senador Jaime (que eu nunca soube de quem se trata), assim que passa a Bernardo Sayão (naquele tempo J-1), logo à esquerda começa a rua dois, descendo para a esquerda e a direita, está a rua três. Um traçado cheio de irregularidades.

De acordo com o seu José Furtuoso, que vendia biscoito pelas ruas, levados numa cesta de taboca, na garupeira da bicicleta preta e que também atuava como corretor de imóveis, as terras da Vila Abajá compunham junto com as da Vila Santa Helena e da Vila Isaura, a fazenda do Dona Isaura Vieira, figura respeitada e querida naquelas paragens até por quem não a conhecia.

A gleba fez parte do processo de ocupação da nova Capital, a partir de 1938: o poder público comprou as terras, loteou e vendeu os lotes com suaves e longas prestações. Mas os espaços foram mal demarcados: “Era muito difícil saber onde terminava um e começava o outro. Assim, quem chegou primeiro colocou seu lote até onde quis e o vizinho teve de esticar o dele pra cima do lote ao lado ou para os lados da rua” – dizia Zé Furtuoso, com voz baixa e suave.

Num pensamento que nunca procurei saber se procede, cheguei à conclusão de que foi por isso que a rua três não foi até a Bernardo Sayão, como a lógica aponta que deveria ir: lá no final, ou no começo que não sou louco para dizer onde aquela preciosidade de rua começa e onde termina, o adquirente montou barracão em cima de barracão e fechou a rua.

Os barrocões eram alugados para gente bem pobre e a rua, pelo lado direito da Catalão, virou uma viela. Nunca vi tantas crianças por metro quadrado como naquele espaço. Além das que moravam ali, vinham as que moravam na sequência após à Catalão e várias outras das ruas próxima. A razão é simples: por não ter saída, a rua não tinha movimento e a molecada tomava conta do lugar jogando bola, colocando galo para brigar, jogando bolinha de gude, rodando peão, disputando paradas de bilboquê, passeando de velocípede, aprendendo andar de bicicleta, brincando de pique-esconde, meio de rua, soltando raia e jogando queimada. A jornada da molecada começava muito cedo e só terminava quando algumas mães, usando o chinelo, vara de amora ou fio do ferro de passar roupa, levavam os últimos resistentes pra casa.

A propriedade do seu Haroldo Alvarenga era dividida em residência e serraria. Na entrada, pela Catalão, seu Haroldo levantou a casa onde viveu feliz com dona Mariana. Juntos, eles tiveram a Gracinha e a Selminha. A casa foi construída no fundo do lote. Até o portão, um cimento bem lisinho, onde, nos dias de São João, acontecia a festa. Colado nos fundos da casa, estava o fundo do outro lote, que tinha a entrada pela rua três, onde ficava a serraria.

O que tinham naquele espaço eram serrarias: do seu Haroldo, do seu José Kotinik, do seu Dalvino, do Zé Lisboa (português José Martins da Silva Zenha), que mais tarde foi transformada na maior madeireira que Goiânia teve ao logo da sua história, a Madeireira Lisboa, e do seu Elizeu. Coladinha uma na outra, uns 50 metros as separavam. A do seu Dalvino era marcenaria. Foi a professora Inês Antunieta Martins que me explicou a diferença: marcenaria fabricava móveis, enquanto a serraria serrava a tora bruta, transformando em tábuas, caibros, vigotas, tarugos, esteios e ripas. As marcenarias compravam as tábuas, ribas, tarugos das serrarias e fabricavam com eles cadeiras, mesas, estantes, cama etc.

Ali todas eram chamadas de serrarias, se bem que eram três: do seu José Kotinik, do seu Elizeu e a do Zé Lisboa. A do seu Haroldo não fabricava móveis e nem serrava toras. Fazia balcões e prateleiras para armazéns e farmácias. Era um capricho só. Quando os botecos de Campinas começaram a colocar as mesas de sinuca para atrair os fregueses, foi que apareceu por lá seu Mauro Morgado, que gostava de ser chamado de seu Morgado.

Seu Haroldo alugou a serraria para o seu Mário Japonês e este transformou o espaço exclusivo para fabricar mesas de sinuca e os tacos. Antes de alugar as instalações para o japonês, seu Haroldo havia comprado um torno que fazia bilboquê, peão, almofariz para socar sal com alho e outras peças. Só que não fabricou nada disto. Queria fabricar taco para jogar sinuca, mas não achava quem dava conta de operar o torno, com o capricho que ele exigia, ou seja, nas mãos do seu Haroldo o torno só fabricou frustração do dono. Aborrecido, alugou tudo pro seu Mário.

O Morgado apareceu na casa do seu Haroldo após o aluguel da serraria para o seu Mário. Veio de São Carlos, São Paulo. Era especialista na operação de torno de madeira. Naturalmente, foi indicado para trabalhar com o seu Mário e, assim, o japonês o contratou. Tinha ombros largos, era musculoso, andava meio arqueado para frente. Já tinha mais de 50 anos, sempre vestia camisas de mangas longas e largas, calças de brim marrom, também largas. Voz arroucada. Alugou o barracão do seu Anedino, lá no fim da viela. Era viúvo. Morava com as trigêmeas: Juracy, Maurita e Francisca, por quem fazia de tudo. Estavam com oito anos. A mãe morreu quando o trio tinha três anos. As conheciam pela foto, que virou quadro – naquele tempo havia muitos pintores que transformavam retratos em verdadeiras obras de arte. Foi seu Morgado quem fez a moldura onde colocou a figura da falecida. Mulher bonita, dos lábios grossos e cabelos pretos cacheados. Nenhuma das filhas se parecia com ela e nem com ele. Também não se pareciam uma com a outra.

Na festa de São João do seu Haroldo, que impreterivelmente acontecia todos os anos, seu Morgado ia acompanhado pelas filhas. E que festa! Terço, fogueira alta, bandeira do santo erguida após o terço, com limões china fincados lá em cima no mastro, dando um colorido belo para o santo. Seu Haroldo não permitia soltar balão. Mas tinha pau de sebo, quentão, batata-doce assada, canjica, pipoca, pé de moleque e, claro, a quadrilha, seguida da cantoria.

Mesmo o espaço sendo grande, não cabia todo mundo – um pouco ficava na rua, na porta da casa, outro pouco ia para a serraria. Seu Barbosa tocava a sanfona, o Vicente cantava a quadrilha: “Damas para a direita, cavalheiros para a esquerda, cavalheiros cumprimentam as damas, junta o par e segue passeio, balanceia, balanceia bem balanceado, segue passeio, cavalheiro atrás da dama, olha cobra… é mentira, olha o formigueiro… é mentira, passinho da dança, olha o pai da moça… é mentira”. E assim ia por uns quarenta minutos. Depois o próprio Vicente, o Zézé, o Pópulo, Elsinho, Osmir, Pedruca, Ozanan assumiam o violão e a cantoria ia até o dia amanhecer.

Desta festa surgiram muitos casamentos. O Morgado também arrumou muitas interessadas em seu coração nos dias da festa. O carinho e zelo com as filhas chamavam a atenção. Mas as solteironas, separadas e viúvas não o convenceram. Ele nunca se envolveu com ninguém. Torneava os melhores tacos da cidade. Seu Mário ganhou mais dinheiro vendendo tacos do que mesas de sinuca. Adorava as crianças. O resto da madeira dos tacos era usado para fabricação de peões e bilboquês. No dia das crianças ele distribuía para os meninos.

Naquela época menina não ficava na rua, só os meninos. Elas ficavam em casa, auxiliando as mães nos afazeres domésticos, brincando de bonecas e casinhas. Havia exceções, mas eram poucas. Dona Ana Francisca deixava a Isabel brincar na rua. Dona Mariana também deixava a Mariângela ir. A Maria Cecília ia com ou sem a dona Cecília deixar. Tinham outras que se juntavam a elas, vindas de outras ruas. Jogavam queimada e brincavam de roda. Era linda esta brincadeira. Embalada por canções alegres, criavam movimentos bonitos.

Seu Mário tocou a serraria do seu Haroldo por uns 15 anos. Seu Morgado trabalhou 12 e ensinou Colemar a tornear tacos. Na primeira vez que se sentiu mal, o japonês o levou ao médico. Ele não quis deixar seu Mário acompanhar a consulta. Fez exame e estava com câncer no pulmão, fumava demais. As filhas também nunca puderam acompanhar as consultas. A doença foi descoberta em fase avançada e seu Morgado durou pouco. Menos de quatro meses depois da primeira consulta morreu em casa.

Naquela época, poucos mortos eram levados para o Instituto Médico Legal (IML), que já existia. O costume era os parentes comunicarem o óbito e prepararem o corpo em casa mesmo. O caixão normalmente era ganhado por algum político. Seu Mário e seu Haroldo Alvarenga, muito amigos do morto, se ofereceram para dar banho no defunto.

Ao tirar a roupa, descobriram que Mário Morgado era, na verdade, uma mulher. Sem saber o que fazer, mandaram chamar o Vicente, nesta época já policial civil. Ele orientou para comunicar a polícia. Foi o que ocorreu. Apenas as trigêmeas souberam exatamente o que estava acontecendo naquele momento. Também ficaram muito surpresas, assustadas e não tinham explicação para o fato.

Tinham documentos como Mário Morgado e isto facilitou seu sepultamento vestido de homem. No velório todo mundo já sabia do ocorrido. Mais do que orações, o ambiente foi de fofoca. As três filhas tinham no documento o nome de Mário Morgado como pai e de Laurita da Anunciação como mãe. Contavam 20 anos. Como ele era muito conservador, nenhuma das filhas arrumou namorado, pelo menos que alguém tenha descoberto. Receberam o que tinham para receber do seu Mário Japonês, esperaram pelo final do ano e voltaram para São Carlos, onde tinham parentes que também não souberam explicar o que havia acontecido.

Seu Haroldo odiava que se tocasse no assunto com ele. Seu Mário não gostava, mas não ficava bravo. As fofocas davam conta de que Mário Morgado foi viver com Laurita que já sabia da situação e aceitou. Pegaram as três meninas de mães diferentes, registraram como filhas e trigêmeas, ela morreu e ele veio para Goiânia. Como se documentou ninguém soube. Nenhuma das filhas voltou para contar a história.

Dedico esta crônica a Haroldo Alvarenga, que na segunda feira, dia 8 de julho deste ano, faleceu aos 94 anos. Deixando viúva sua querida Mariana e a filha Selminha. Gracinha, a outra filha faleceu muito jovem.