A moto Jawa, o Vanderlei e a Durvalina

Aquele foi um tempo de despedidas. As motos Jawas davam os últimos giros pelas ruas, em pouco tempo desapareceriam de uma vez, assim como por encanto. Só tinham em duas cores: pretas e vermelhas foscas.

As pretas eram mais raras e, consequentemente, mais imponentes. Guidão quase reto: acelerador na mão direita, onde ficava a haste para acionar o freio dianteiro, e na mão esquerda, a haste de debrear para mudar de marcha – a roda traseira era freada no pedal, do lado esquerdo do motor. Do lado direito ficava o pedal das marchas – primeira para cima, segunda e terceira para baixo. No painel apenas o velocímetro, instalado na carenagem que abrigava o farol na parte da frente – era o mesmo farol do Jeep, só que instalado na moto.

Luz alta e baixa num pequeno botão ao lado do punho do acelerador – uma apertada para baixo e o botão voltava para o ponto de origem já com o foco trocado. Quando ligava o farol, a luz vermelha que cobria a placa, na parte traseira, era automaticamente ligada. Aquelas motos não possuíam seta.

O motor era grande: 250 cilindradas. A estrutura conhecida como garfo, onde as partes eram fixadas para a montagem da moto, era muito forte. Raramente quebrava nos acidentes. O banco era largo e reto. O dono ia todo garboso pilotando e na garupa, ia a moça agarradinha nele, ou o amigo, mantendo a distância necessária, mas segurando na cintura do piloto, pois era a única forma de segurar.

Chique? Chiquérrimas. Atingiam 160 quilômetros por hora. Com escapamento original faziam um barulho tolerável, gostoso. Sem o miolo, este escapamento deixava sair um barulho ensurdecedor. Menos mal que poucos tiravam o miolo do escapamento. Quando pintava alguma moto barulhenta, não era de Campinas, mas de gente vinda de Goiânia que queria mostrar que lá também tinham as Jawas.

Tempo do rádio ligado num tom que dava para ouvir passando pelas ruas. Até as 7h, moda sertaneja, das 7h às 8h, jornais falados, das 8h às 10h, programas musicais, com horóscopo. Ninguém deixava de ouvir as previsões do Omar Cardoso, na Rádio Clube de Goiânia – o programa era o Bom Dia, mas Bom Dia Mesmo. Das 10h às 11h, as paradas que mostravam as músicas mais pedidas na programação e os discos mais vendidos. Às 11 era hora dos programas esportivos: Draulas Vaz, Baltazar de Castro, Jayro Rodrigues, Amir Sabag, Carlos Alberto Sáfadi, Nikerson Filho, José Calazans, Antônio Porto, Luiz Augusto da Paz, Luiz Augusto Pampinha, Evandro Gomes, Ezer de Melo, Levy de Assis, Nunes Macedo, Ademar Costa, Luiz César Leleco, Batista Cardoso, Barbosa Neto, Reed Duarte, Caetano Bheguelli, Jurandir Santos, Ledes Gonçalves, Selem Domingues eram os mais populares.

Como era bom ouvir os jogos no rádio. Todo torcedor tinha o seu, de bolso, e nos dias de jogos, aonde ia levava o danado. Na festa, na praça, no cinema, o radinho estava no bolso e o foninho, no ouvido. O Alemão assistia ao filme “Dólar Entre os Dentes”, no Cine Eldorado, com a Olésia. Beijinhos – naquele tempo era só no rosto –, apertadinha de mão e, de repente, o Alemão levanta, solta um grito, pula da poltrona e assusta o cinema inteiro.

Nem a Olésia sabia o que estava se passando. O lanterninha veio e só então foi descoberto que o Jair Porrete acabava de empatar o jogo para o Atlético diante do Vila Nova, no Estádio da Paranaíba. Toda sala passou a comentar a partida. Gente virando para perguntar para o Alemão o tempo do jogo. A fita foi paralisada, as luzes, acesas. Alguns chiaram, o lanterninha chamou atenção do Alemão, mas deixou ele ficar lá, namorando a Olésia, assistindo o filme e ouvindo o jogo – depois passou por umas três vezes para saber quanto estava o jogo.

Que tempo era aquele! Depois dele, poucas charretes foram vistas transportando as pessoas. Vieram os Simcas com uma plaquinha no teto escrito táxi. Eram lindos os Simcas, não andavam, eles deslizavam macios e imponentes. Os Beatles mandavam na música internacional, Elis Presley também. Roberto Carlos começava o reinado na música popular brasileira. Tonico e Tinoco, Silveira e Barrinha começavam a perder o terreno para Tião Carreiro e Pardinho e Cascatinha e Inhana. O goiano Miltinho havia separado a dupla com o mineiro Tibagi e fazia muito sucesso com a música Meu Martírio – agora sendo conhecido por Miltinho Rodrigues.

As coisas estavam mudando. Logo, Iris Rezende seria eleito prefeito e asfaltaria todas as ruas habitadas dos bairros de Campinas. As Lambretas e Vespas também iriam sumir das ruas, como as motos Jawas. O Baixinho também sumiria das ruas gritando as manchetes do Jornal Folha de Goiás, que vendia bairro a fora – nunca vi uma voz tão alta.

Foi um tempo em que começaram aparecer policiais militares andando em duplas pelas ruas e começaram sumir os estudantes. Alguns apareciam mortos, outros não apareceram até hoje.

O Gumercino tinha um Armarinho bem na Catalão. Seu Magela montou e morreu, mas Dona Lita deixou o filho tocar. Tinha uma Jawa das pretas. Namorava as mais belas moças. Até a Gracinha namorou com ele. Mas durava pouco o namoro. Logo ele deixava a moça gamada e arrumava outra. Todos os dias deixava o Armarinho com a Soninha (que os maldosos chamavam de Sonsinha) para ir esperar a saída dos alunos do Pedro Gomes. Às 11h saíam os que estudavam pela manhã, às 17h os que estudavam à tarde e às 22h, os que estudavam a noite – ele estudava a noite.

Lá engambelava a moça pretendida, oferecia a garupa, levava para casa e logo vinha notícia no novo namoro. O Gumercino era o terror dos pais e a paixão das filhas. Malandro, nunca levou moça nenhuma a sério, mas elas sonhavam com a garupa da Jawa.

Quando viu que o tempo estava mudando, o Gumercino avisou que ia vender a Jawa. O Vanderlei, que dava aula de datilografia na Escola do Professor Solon, quis comprar e comprou. Vanderlei era tímido. A moto trouxe prestígio, mas ele não tirou o proveito que poderia tirar. Andava devagar, desfilando na hora e ir e de voltar para dar aula de datilografia.

Foi numa destas idas e vindas que ele viu a Durvalina – ainda chamada de Brigite –, finalmente olhando pra ele. Ela fazia ponto nas duas casas da Dita. Uma ficava na Avenida Bahia e a outra, na P-16. Ia e vinha de charrete. O veículo tinha apenas duas rodas, como as carroças.

A boleia armada sobre a mesa de esquadria onde ficava o banco – o charreteiro sempre se sentava pelo lado direito e o passageiro, à esquerda. A cobertura de lona, com plástico transparente pelos lados, era preta ou branca. Os dois varais de três metros e meio, prendiam, entre eles, o animal que puxava ao veículo. Havia preferência pelas éguas pampas, mas algumas brancas também eram vistas. Cada arreata linda! Os charreteiros caprichavam no número de argolas douradas ou prateadas, a coalheira era padronizada na cor branca.

A Escola de Datilografia do Professor Solon ficava na Catalão, esquina com a 506, na Vila Operária. Duas ruas abaixo da 24 de outubro, por onde Vanderlei transitava na hora da cruzada com o veículo do Chico Charreteiro. Brigite era linda. Morena, de boca grande, lábio carnudo, pernas longas e torneadas, peitos e bunda grandes e cintura fina.

Havia sempre uma mecha do cabelo anelado, caindo sobre um dos lados do rosto. O Vanderelei não tinha lá grande lindeza para mostrar. Baixinho, cabelo enrolado, cortado a meia cabeleira, nariz e orelhas grandes, boca e olhos pequenos. Mulatinho desbotado e de poucas palavras. Já passava dos 30 anos e ninguém sabia de algum namoro dele. Sempre vidrado na Brigite, nunca teve coragem para ir a uma das casas da Dita para o encontro. O Disson até o convidou, mas ele, com medo, recusou.

O que importava naquele momento é que a Brigite estava olhando pra ele, em cima da Jawa, e ele chegou a balançar em cima da moto. Ela fez sinal com o dedo indicador o chamando. Ele emparelhou a moto à charrete do Chico. Ela falou com pouca discrição: “Vem me ver. Até as seis da tarde estou na casa da Dita, na P-16, e depois volto para a casa dela, na Avenida Bahia”.

Ele acelerou a moto. Aquela acelerada obedeceu a acelerada do seu coração. À noite, se banhou de Lancaster e foi. Chegou sem graça e a Brigite logo veio aos berros: “Você veio, amor?” – indagou surpresa, já o arrastando para uma das mesas e pedindo a seguir: “Paga uma cerveja?”. Ele respondeu afirmativamente com a cabeça. Ela própria buscou a cerveja. Beberam esta e mais outras. Brigite falou que foram cinco, mas houve quem disse que foi bem mais. Depois ela pediu pra ele dar uma volta na Jawa com ela. Vanderlei pagou a conta e saíram.

Vanderlei, que não tinha o hábito com a bebida, estava tonto, mas falar não que jeito? Foram e nem chegaram pegar a rua Jaraguá, quando o Vanderlei acelerou mais do que devia e a moto voou, soltando os dois no chão e indo parar no muro da casa da Tomásia. Ralaram por completo. Acabaram recolhidos pela ambulância do Samu e levados para o Hospital São Miguel.

Foram 30 dias de ausência na Escola de Datilografia do Professor Solon. Quando voltou, o proprietário desconsiderou todo o devotamento que o Vanderlei tinha pela Escola e o mandou embora: “Amizade falsa a gente não perde, fica livre” – pensou baixinho.

Ele não foi atrás da Brigite. Vendeu o que restou da moto, comprou seis máquinas Olivettis e abriu sua própria Escola de Datilografia, lá perto da Igreja São João Evangelista, na Vila Abajá. Em menos de seis meses já tinha 10 maquinas de datilografia, todos os horários cheios e com a escola registrada para emitir o diploma. Da Brigite, só as cicatrizes dos esfolões e a lamentação de não ter ido para o quarto, ao invés de ir para a rua andar de moto.

Numa sexta-feira, na aula noturna da Escola de Datilografia do Vanderlei, a charrete do Chico parou na porta. Não conduzia ninguém. O Chico desceu, foi até o Vanderlei e disse que a Brigite o esperava na casa da Dita da P-16, quando fechasse a Escola. Às nove da noite, depois da última turma, Vanderlei subiu a pé, para a P-16. Entrou e a Brigite estava sentada numa mesa, tomando cerveja. Desta vez, a recepção foi bem menos escandalosa.

Ele se sentou e ela foi direto ao assunto: “Quero deixar esta vida. Quero ter um marido e uma família. Me tira daqui”. Seis meses depois, a Escola VD de Datilografia funcionava na cidade de Trindade. Vanderlei e Brigite, agora conhecida pelo nome de batismo, Durvalina, moravam no barracão dos fundos, ela esperando o primeiro dos quatro filhos que o casal teve.

Em menos de três anos ninguém via mais as motos Jawas pelas ruas, o que para o Vanderlei era um consolo. Não gostava mesmo nem de ouvir o nome daquela porcaria.

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