Linotipista  Ronaldo Soares demonstra  funcionamento da prensa (Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Letra por letra as palavras vão se formando. Mas ao manuseá-las todo cuidado é pouco. Em um ateliê tipográfico à moda antiga, um erro pode custar horas de trabalho, quiçá dias inteiros, dependendo do projeto.

Com mais de 40 anos de experiência em tipografia, quatro deles dedicados ao ateliê tipográfico da Universidade Federal de Goiás (UFG), o senhor Paulo César e Silva, já não precisa de instruções para tatear os tipos de chumbo, minuciosamente organizados nas gavetas.

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Tipógrafo Paulo César e Silva mostra os tipos guardados no Ateliê (Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Cuidadoso, ‘Seu’ Paulo, como carinhosamente denominaremos nosso personagem, remonta o passado no presente. Propositalmente, coloca as letras lado a lado no componedor, só que posicionadas de cabeça para baixo. “Você trabalha de cabeça para baixo. Quando você imprimir, o papel vai sair ao contrário. Quando você virar (o papel), ele é como se fosse um negativo”, explica.

Tem cheiro de tinta no ar. É Paulo, que leva a chapa até uma prensa, semelhante à que Johannes Gutenberg inventou no século XV, revolucionando e popularizando a aquisição de conhecimento em todo o mundo e propiciando o surgimento da imprensa nos séculos seguintes. Hoje em dia, as prensas são uma raridade. A maior parte delas está em museus, para fins de exposição. Todavia, segundo ‘Seu’ Paulo, a prensa que está no ateliê da UFG funciona a plenos pulmões do tipógrafo. “Essa aqui é movida a arroz com feijão”, brinca.

Desde cedo, o tipógrafo teve a impressão de que precisava trabalhar para conquistar o arroz com feijão de cada dia. Era 1975. Aos 16 anos, Paulo César já era office boy em uma firma localizada no Setor Fama, em Goiânia. Durante o expediente, o barulho das máquinas de uma gráfica chamava sua atenção. Com o tempo, notou que gostava do som e começou a pensar que o trabalho na gráfica faria mais o seu tipo.

“Eu trabalhava na Fama e lá tinha uma gráfica. Eu achei bacana demais aquele trabalho na gráfica, o barulho das máquinas trabalhando. Eu comecei a me apaixonar. Por volta de 1975, eu pedi um colega para arrumar um emprego em uma gráfica para mim. Eu entrei e comecei a trabalhar na tipografia, fui impressor de manual, depois chapista, cortador. Depois saí dessa área, virei gráfico de offset. Aí voltei, desde 2014 estou aqui (no ateliê) fazendo esse trabalho manual”, relembra.

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Exemplo de Gaveta (Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Apesar do interesse pelo ofício, os primeiros contatos de Paulo com a composição manual foram tímidos, secretos, em meio às horas vagas, quando o patrão estava fora dos limites das “ramas” ou, melhor dizendo, das paredes da gráfica.

“Eu era entregador, colocava um monte de blocos naquelas bicicletas cargueiras e saía por Goiânia. Mas eu queria mesmo era aprender. Eu encostava nos impressores e pedia para aprender. Hoje se o cara tiver interesse ele aprende tudo na firma, naquela época não. O patrão não gostava. E foi assim que começou, o cara (impressor) virou meu amigo e me deixou trabalhar na impressora manual nas horas vagas, quando o patrão não estava. Dentro de três meses, esse camarada (o impressor que o ensinou) ia sair da empresa e disse para o patrão que eu estava pronto. Quer dizer, para ele (o patrão) foi uma surpresa”, acrescenta.

Linotipista

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O linotipista Ronaldo Soares e sua paixão: a máquina Linotipo (Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Além do “arroz com feijão”, o trabalho na tipografia é movido pela paixão. Assim que bateu os olhos em uma máquina Linotipo pela primeira vez, em 1970, durante o curso técnico em Linotipia, oferecido na época pela antiga Escola Técnica Federal de Goiás (ETFG), hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), o senhor Ronaldo Soares dos Santos soube que gostaria de exercer a profissão de linotipista para o resto de sua vida.

Emocionado, ele relata que decidiu fazer o curso por influência de sua mãe, uma tipógrafa de mão cheia. “Minha mãe trabalhou em um jornal na cidade de Goiás Velho (atual Cidade de Goiás). Minha mãe aprendeu a trabalhar com tipo. Ela falava muito sobre isso com a gente. Quando eu fui ao jornal e vi, eu gostei, me apaixonei pelo trabalho. Estou com quase 50 anos de trabalho e essa máquina é minha paixão. Essa máquina é maravilhosa”, comove-se.

Maravilhosa e inovadora para a época em que foi desenvolvida. Em meados da década de 1880, a máquina Linotipo, inventada pelo alemão Ottmar Mergenthaler, tornou o trabalho de impressão mais ágil e preciso. A Linotipo é um equipamento de composição mecânica que compreende quatro partes fundamentais: os magazines, ou depósitos de matrizes (letras); o teclado; o mecanismo de fundição; e o mecanismo de distribuição das matrizes.

Com os olhos brilhando, refletindo o brilho das matrizes feitas de bronze, e com as mãos postadas sobre o teclado, prontas para materializar o amor do homem pela máquina, o senhor Ronaldo se pôs a comparar as vantagens da Linotipo em relação à composição manual.

“Aqui eu fiz uma linha. Na linotipia, a linha sai pronta. Na tipografia, essa mesma linha que eu gastei um minuto para fazer, demoraria cerca de 20 minutos para ficar pronta. Lá (tipografia) nós teríamos várias caixas (gavetas) de tipos. Aqui (na máquina Linotipo) nós temos uma caixa, que chamamos de magazine ou depósito. Cada depósito está carregado com 1800 matrizes do mesmo corpo. Nessa máquina temos quatro magazines (o que corresponde a quatro fontes de matrizes). Lá os tipos são feitos de chumbo ou estanho. Aqui (na máquina Linotipo) as matrizes são feitas de bronze. Lá (composição manual) há desgaste. Aqui você trabalha 50, 60 anos e não há desgaste”, esclarece.

Ainda de acordo com o senhor Ronaldo, os benefícios da Linotipo se refletem na produção do próprio ateliê, que hoje possui três máquinas desse modelo, todas operadas por ele próprio.

“A diferença da Linotipo para a composição é tão grande que, em uma máquina dessas, eu cheguei a fazer duas mil linhas por dia de composição. Considerando um livro, em torno de trinta linhas, você faça as contas de quantas páginas eu faço por dia de um livro. A Linotipo quando veio revolucionou, foi uma revolução”, destaca.

Ronaldo é o único linotipista de que se tem notícia em Goiás. Em todo o Brasil essa realidade não é diferente. “Eu costumo dizer que esse trabalho aqui vai existir até o dia em que eu morrer”, afirma. O tempo tratou mesmo de traçar as linhas do destino das linotipos. Hoje obsoletas, assim como as prensas, muitas linotipos viraram peças de museu. Com isso, o tipógrafo e o linotipista viraram profissões do tipo “em extinção”.

Para Ronaldo dos Santos, a sobrevivência dessas profissões representa um grande desafio, visto que outros fatores, além do avanço tecnológico, também contribuíram para o aumento do desinteresse pela área.

“Antigamente eu cheguei a ganhar dez salários mínimos. Antigamente um linotipista ganhava mais do que um jornalista. Hoje não compensa, a gente trabalha por amor. Sou aposentado, tenho minha vida independente. Talvez seja esse um dos maiores motivos que explicam porque a profissão vem desaparecendo. Até porque o salário não cresceu no Brasil, não existe salário em profissão nenhuma. Por isso a gente está aí, na sobrevivência”, reforça.

Ateliê Tipográfico

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Ateliê Tipográfico da UFG (Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Criado em 04 de dezembro de 2014, o Ateliê Tipográfico do Centro Editorial e Gráfico (Cegraf) da UFG surgiu a partir da necessidade de preservação e recuperação da antiga Imprensa Universitária.

De acordo com informações postadas no site do Cegraf, o Ateliê Tipográfico abrange os aspectos de composição, impressão e encadernação. Esta proposta está ligada ao conceito de indústrias lentas. Por um lado, essas indústrias recuperam o patrimônio artístico e técnico, material e imaterial; por outro, aliam a linha artesanal de produção, baseada em técnicas de composição e de impressão manuais, a concepções editoriais modernas.

Segundo o diretor do Cegraf, professor Antón Corbacho, um dos responsáveis pela concretização do Ateliê, os primeiros registros da Imprensa Universitária datam da década de 1960. “A primeira publicação da imprensa universitária data do ano de 1961. Felizmente conservamos as máquinas. Serviu para que conhecêssemos como se produziam livros, revistas, boletins, relatórios, qualquer tipo de impressão. Nos anos 1980 se consolidou uma nova forma de se produzir graficamente, a impressão offset. Aos poucos a tipografia foi sendo abandonada. Na década de 1990 abandonou-se completamente”, declara.

Dentro das artes da tipografia são produzidas impressões de livros e cartazes. Segundo o tipógrafo Paulo César e Silva, somente no ano passado cerca de oito livros foram impressos no Ateliê. Toda a produção da unidade passa pelas mãos de cinco funcionários. Todos eles são terceirizados, incluindo o tipógrafo Paulo César e o linotipista Ronaldo.

De acordo com o professor Antón Corbacho, a mão-de-obra qualificada foi um dos aspectos que contribuíram para a retomada da tipografia. “Dois motivos nos levaram a recuperar a tipografia: mão-de-obra altamente qualificada e o maquinário, que ainda estava conservado. Com esses dois fatores, tratava-se de estruturar tudo, organizar o espaço, ter coragem e começar a trabalhar”, resume.

Além da produção de livros dentro das artes da tipografia, o Ateliê oferece um espaço para a visitação que permite acompanhar os processos tipográficos e também possibilita a aprendizagem in loco das profissões ligadas à tipografia com vistas à formação de uma mão-de-obra qualificada destinada a dar continuidade às profissões das artes gráficas tradicionais.

Acesse o acervo da Imprensa Universitária e da Editora UFG e as publicações do Ateliê Tipográfico clicando aqui.

Ouça a reportagem em áudio:

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