Quando o Cecílio comprou o terreno da margem do Capim Puba, Vó Joaquina já estava velhinha e morava por lá há mais de 20 anos. Chegou com o Marido João Simão, entraram para o terreno e foram fazer o que os outros ocupantes dos lotes vizinhos faziam: plantar horta.

A água do Capim Puba não era lá esta limpeza toda, já que saía do lago das rosas, onde as famílias passavam o final de semana banhando. Tinha até torneio de salto do trampolim. Mesmo assim a água servia para regar o alface, couve, repolho, coentro, salsinha, tomates e chuchu.

As folhagens foram plantadas em canteiros, mas o tomate e o chuchu deram um trabalhão danado. Tiveram de ir lá no bambuzal amarelo, derrubado para construir a ponte da Avenida Marechal Rondon, ligando a fama ao Centro, cortar os caules, limpar as folhas e carregar até o lote ocupado. No lugar tinha uma ponte velha de madeira e por baixo o bambuzal.

O velho Jânio Sá disse que foi um japonês que plantou os bambus amarelos ali, para conter a erosão, que estava levando para o leito do ribeirão toda terra do barranco. Os chacareiro começaram tirar terra preta para deixar os canteiros férteis e quando viram o barranco estava sendo arrastado pela correnteza das águas das chuvas que desciam morro abaixo:

– “O Japão era sabido e plantou o bambuzal que conteve o esbarrancamento” – disse Jânio Sá.

Embora não fosse homem de confiança no que dizia, era a única versão conhecida para a origem do bambuzal, que foi expandindo e virou uma moita enorme. Todo mundo que precisava de alguma escora, buscava bambus ali e mesmo assim a moita não diminuía.

Seu João Simão e dona Joaquina usaram os bambus para fazer o giral do chuchuzeiro e para a escora dos tomateiros. O padre da Paróquia São João Batista, na Santa Helena, buscava bambu lá também. Em todo mês de junho tinham as festas juninas e a barraca onde os festejos aconteciam era cercada pelos bambus. Chão batido, mesinhas com forros amarelos, vermelhos e verdes – cores das bandeirolas que enfeitavam a parte alta do cercado.

Festas boas, com correio elegante, auto falante para dedicar música para alguém e o Bento Preto caprichava:-“Esta música é de alguém para outro alguém que deve saber quem” – rodava a música.

Falar nome da moça era fria. Tinha também os leilões de frango assado, leitoa assada, latas de doce e de alguns animais, como bezerros e leitões. A Paróquia arrecadava bem e o dinheiro foi sustentando a construção do templo que hoje pode ser visto por lá.

Foi lá que a Márcia se aproximou do Pedrinho. Ele dedicou música, mandou correio elegante, falou com ela no Pedro Gomes, onde estudavam. Começaram namorar escondido, mas o Marcílio, irmão dela descobriu, contou pra mãe.

Dona Arminda era sabida, preparou o ambiente com o marido e orientou a filha para mandar o rapaz falar com seu Otávio, para pedir autorização para o namoro. Assim foi feito e o Pedrinho e a Márcia se casaram, lá mesmo na pequena igreja da Paróquia São João Batista. Ano passado Pedrinho infartou. Deixou a Márcia viúva com quatro filhas, todas casadas.

João Simão e Joaquina eram negros. Ambos baixinho, mas saudáveis. Vieram da Bahia. Ela era benzedeira: cobreiro, mal olhado, erisipela, estopor, vento virado. Até dor de cabeça ela curava com a benzeção. Usava ganhos de arruda, guiné, espada de São Jorge e fedegoso.

Depois do varal e escoras prontos, seu João Simão e dona Joaquina esperaram a horta produzir. Ele comprou um carrinho com rodas de madeira, que tinha uma banca por cima. Saía cedinho vendendo as verduras de casa em casa. Menos nas quintas feiras e domingos, quando ia para a feira da Avenida Perimetral, em frente ao campo do Atlético.

Viveu assim até abrir o Mercado São Judas Tadeu, no cruzamento da Anhanguera com a 24 de outubro, onde conseguiu, com a ajuda do vereador Licardino, uma banca: Banca do Simão: Além das verduras, passou a vender fumo. Comprava as bolas do Zé Freitas, de Jaraguá e vendia os pedaços.

Já estava velhinho quando conseguiu o espaço no Mercado. Dizia ter 70 anos, mas isto não era certeza: Ele e ela tiraram documentos em Goiás, com datas de nascimentos presumidas.

Quando o Cecílio comprou o terreno ao lado de onde morava, o casal ficou sabendo pelos vizinhos que o homem que vendeu era dono de toda a margem ocupada por chacareiros, que ida da moita de bambu até na esquina da viela da ponte, de passagem do Setor dos Funcionários Públicos para o setor Aeroporto.

Nos primeiros dias perderam o sono. Como não apareceu ninguém lá para perturbar, voltaram dormir tranquilos. Estavam vivendo muito bem. Não tinham filhos, produziam as hortiças, vendiam na banca e a revenda de fumo ainda ajudava no lucro. Queixar de que?

Além das verduras para a venda e das ervas para benzeções, dona Joaquina, que com o passar do tempo passou ser chamada pelos mais jovens de Vó Joaquina, cultivava plantas medicinais.

Campinas inteira, começando lá pela Capuava até na divisa com o setor Aeroporto, vinha buscar planta de chá: caroço de nós moscada para cólica do bebê e as menstruais; mentrasto para dor de cabeça e dor na barriga; sabugueiro e poejo para gripe; boldo para o fígado, carqueja para regular menstruação e erva de Santa Maria que curava qualquer machucado e no leite era vermífugo, cidreira para acalmar, flor de maracujá para dormir.

Tinham mais mas nem sei o nome. Vó Joaquina dava a planta, ensinava fazer o chá e não cobrava nada. Por isto foi ficando muito querida. Ganhava muita roupas e calçados pra ela e pro seu João Simão. Ganhou até um rádio do seu Alcides, dono da Selaria Goiás.

Sentia uma queimação após a comida. Foi ao médico e como não aliviou, recorrer a Vó Joaquina. Ela fez um polvilho de lobeira madura, mandou ele tomar uma colherzinha na água em jejum e ao deitar e ele sarou. Levou o rádio Phillips de presente pra ela, com as pilhas, já que naquela beira de rio não tinha rede elétrica.

Na segunda feira seu João Simão levantou como de costume logo que o galo cantou. Enquanto dona Joaquina fazia o café, ouvindo o programa Alma Sertaneja do Claudino Silveira, ele agiu: colheu as verduras, pôs no carrinho, separou a bola de fumo, em um saco plástico e foi tomar o café. Seu almoço já estava pronto e no caldeirãozinho de alumínio que servia de marmita.

Dona Joaquina colocou a tampa, amarrou com o pano de prato. O café estava passado e o bolo de fubá feito na véspera cortado. Pegou o bolo no prato do rabo do fogão, serviu o café (o bule ficava em cima da chapa, para não esfriar o café) e fez o desjejum. Quando o sol nascia ele pegou a rua (que até hoje se chama Capim Puba) e rumou em direção ao São Judas Tadeu.

Não chegou lá. Por volta das sete horas foi encontrado caído atrás do carrinho carregado de verdura, morto. Infartou sozinho pela madrugada e morreu. Vó Joaquina recebeu com resignação a notícia. O corpo foi levado para casa, muita gente se ofereceu para ajudar no banho.

Seu Arlindo, que ia ser candidato a vereador deu o caixão, que chegou lá numa carroça. Ficou bonito dentro do caixão. Semblante alegre como sempre, camisa branca, calça azul e um buquê de flores colhidas no quintal entre as mãos. Só na hora de carregar o caixão pra fora que Vó Joaquina chorou. Beijou a testa dele: -“Vai com Deus meu velho. Já, já também chego lá no céu pra fazer nossos canteiros juntos outra vez”.

E chorou o mais doído dos choros e todo mundo chorou junto. Ela não seguiu os homens que carregaram o caixão para o Cemitério Parque, era muito longe. Seu Arlindo cuidou de tudo. O féletro não tinha muita gente, mas não faltou homens para revezar nas alças do caixão.

Seu Franco, dono da banca ao lado quis comprar a banca do Seu João. Vó Joaquina pediu pro Colemar fazer o negócio. Era um jovem que cresceu na chácara vizinha e que estava terminando o curso de contabilidade.

Antes do negócio ser fechado, passaram uns homens pelas chácaras e avisaram que todos teriam de mudar. O Cecílio havia comprado o terreno e aquela gleba de posse estava na escritura. Seu Arlindo, Seu Chico Roxo, o Professor Osmar (candidatos a vereador pela UDN), do prefeito Hélio de Brito tentaram ajudar os posseiros ficar lá.

O Professor Tobias Alves e o Solon Amaral (que não eram candidatos, mas tinham influência no PSD, do governador Mauro Borges) também. Mas não teve jeito. A lei do Uso Capião não funcionou e os chacareiros foram saindo um por um, deixando as hortas e plantações nos terrenos, junto com os barracos.

Vó Joaquina foi uma das últimas. O Colemar vendeu a banca para o seu Franco e comprou um imóvel pra ela, lá no final da Vila São Paulo. Um dia antes das coisas serem colocadas no carroção puxado por seis burros do seu Tonico, que fez a mudança, o próprio Cecílio apareceu por lá.

Era um homem grande, olhos pequenos azuis, bem vestido. Desceu do Jeep, abriu a cancela da cerca de ripa e disse ríspido: “Veinha se amanhã à tarde meus homens passar por aqui e a senhora não tiver desocupado o barraco, ele vai ser derrubado em cima dos seus cacos que estão aí dentro”. Sem subir a voz, Vó Joaquina respondeu: – “Não será preciso seu moço. Mudo amanhã de manhã”.

Mudou. Levou muda das plantas medicinais, dos ramos de benzeção e das flores. O imóvel comprado pelo Colemar tinha dois barracões: um de dois cômodos novo e de tijolo. Outro de quatro, velho e de Adobe. Vó Joaquina entrou para o novo e alugou (baratinho) o velho.

Seu Alcides da Selaria mandou pra ela uma mesa, com quatro cadeiras. Era com a renda do aluguel que vivia. Ainda bem que o Valdir, coveiro no Cemitério Santana, não atrasava o pagamento.

Depois de três longos anos, ela ainda mais arqueada e com voz baixinha, ouviu palmas no lado de fora do barraco, antes do Alma Sertaneja sair do ar. Já estava de pé e já tinha tomado o café. Abriu a porta. Uma jovem bonita, bem vestida, loira trazia nos braços um bebê de nove meses, com um cobreiro que começava na nuca e esparramava para os dois lados do rosto, passando por trás das orelhas e chegando aos cantos dos olhos.

Vergão vermelho no começo e pereba pustulenta no restante: “É a senhora que benze?” – indagou a moça que chegou de fusca branco: -“Sim minha filha”.

Mandou a moça entrar, sentou numa das cadeiras e a moça com o bebê no colo, na outra. Ouviu que aquela criança já havia passado por quase todos os médicos de Goiânia, o último foi o homeopata Tuffi Curi e nada da micose desaparecer: -“Deus cura minha filha. Deus não gosta de ver criança sofrendo”.

Foi buscar as folhas de arruda e os galhos de guiné, para a primeira benzida: – “Toda segunda e sexta feiras às seis horas da tarde, quando o sol estiver recolhendo a senhora trás ele aqui para Vó Joaquina benzer. O sol vai recolher com ele este cobreiro. Quando for dormir reza para São Cosme e Damião cuidar dele.

Assim foi feito e ao final de seis semanas, a marca do cobreiro já estava quase desaparecendo. Na sexta feira as cinco e meia a moça apareceu e gritou do lado de fora: – “Vó Joaquina, vem que meu pai quer te dar um presente”.

A velhinha saiu do barraco e viu descendo do fusca ninguém menos do que o Cicílio.
Ele soube pelo seu Alcides da Selaria Goiás, que a velhinha sobre a qual queria derrubar o barracão, curaria seu neto. Sem coragem para ir junto, mandou a filha levar o bebê.

Bem diferente da primeira visita pediu desculpa em nome de Deus: “Quanto paga pela cura do meu neto?” – quis saber. A velhinha olhou para aqueles olhos azuis, pequenos e disse: – “Quem cura é Deus e Deus não cobra nada.

De minha parte fico feliz cada vez que Deus manda um necessitado para me dar a chance de trabalhar pra ele, pois assim vou construindo minhas plantações no céu. Vai que lá aparece quem precisa também né?”.

Cecílio foi embora sem graça, mas agradecido e Vó Joaquina ainda benzeu por mais três anos, depois foi fazer a plantação no canteiro do céu, ao lado do João Simão, como desejava.