Arthur Barcelos
Arthur Barcelos
Apaixonado por futebol e geopolítica, é o especialista de futebol internacional da Sagres e neste espaço tem o objetivo de agregar os dois temas com curiosidades e histórias do mundo da bola.

A dupla nacionalidade e o debate sobre identidade: o exemplo africano

Realizada entre os meses de janeiro e fevereiro deste ano, com sede em Camarões, a Copa Africana de Nações movimentou o futebol internacional com a sua 33ª edição. Enquanto as favoritas seleções de Senegal e Egito chegaram à decisão, com o título inédito dos senegaleses, a grande atração do torneio não foi uma tradicional nação do futebol africano, mas sim um remoto conjunto de ilhas fora do continente.

Com uma estimativa de mais de 800 mil habitantes, a União das Comores, ou simplesmente Comores, tem o quarto menor território africano e metade de sua população vive abaixo da linha de pobreza. O território comorense ocupa três das quatro principais ilhas do arquipélago de mesmo nome, localizado no Oceano Índico, ao leste da África. Apesar das belezas naturais, se trata de uma terra pouco explorada pelo turismo.

Como muitas nações africanas, Comores recebeu influência de diversas etnias e civilizações. O comoriano, uma das três línguas oficiais junto com o árabe e o francês, é proveniente do idioma bantu, porém sofreu modificações através dos demais idiomas por conta do forte domínio cultural árabe e francês no território. O país, inclusive, é membro da Organização Internacional da Francofonia e da Liga Árabe, dentre outros.

Colônia do Império Francês no final do século XIX, Comores se tornou independente da França em julho de 1975. Portanto, uma nação de apenas 46 anos, e que desde a sua criação viu muitos nativos partirem para a ex-Metrópole em busca de uma condição melhor de vida. Ou mesmo para a ilha ao lado, Maiote, hoje um dos cinco departamentos ultramarinos franceses e que rejeitou a independência nos anos 1970.

Em meio a dezenas de golpes de estado e graves problemas sociais, não é de se esperar que o investimento no esporte comorense seja escasso. No futebol, não é diferente. Fundada em 1979, quatro anos após a independência do país, a Federação de Futebol de Comores (FFC) se filiou à Fifa somente duas décadas depois, em 2005. A primeira partida oficial da seleção aconteceu em novembro de 2007.

Por oito anos à frente da seleção de Comores, o treinador Amir Abdou conduziu um trabalho revolucionário no país (Foto: Federação de Futebol de Comores/FFC)

Por isso, a vitória sobre Gana, seleção tetracampeã da Copa Africana de Nações, pela terceira rodada do Grupo B, foi um resultado inesperado e histórico para o futebol comorense. Atrás de Marrocos e Gabão na chave, Comores não apenas conseguiu a sua primeira vitória, como também conquistou a classificação para a fase final em sua estreia em um grande torneio – eliminada pelos anfitriões, Camarões, nas oitavas.

Essa, porém, não foi a única façanha de Comores. Para chegar à maior competição de seleções do futebol africano pela primeira vez em sua história, a equipe realizou uma grande campanha nas Eliminatórias, segunda colocada na sua chave, atrás somente do Egito. Com apenas uma derrota no torneio classificatório, ficou à frente de países mais tradicionais no continente, como Quênia e Togo.

"Classificar para a fase final foi inacreditável. Foi um momento incrível para nós, o país e as pessoas ao redor do mundo que apoiaram Comores. Comores é uma bela ilha e com pessoas adoráveis. Jogamos com o coração e demos tudo nesse torneio, e mostramos ao mundo que Comores está no mapa. As pessoas não sabiam muito sobre nós, mas agora o mundo sabe o quão forte somos e ganhamos respeito". - disse o zagueiro Alexis Souahy à BBC Sport Africa

Para entender os resultados recentes da seleção comorense, é preciso voltar as atenções para o trabalho encabeçado por Amir Abdou. O treinador francês esteve à frente de Comores entre 2014 e 2022 e desenvolveu um projeto que colocou o time no mapa do futebol, subindo da posição 198, de 207 membros, para o 131º lugar. Natural de Marselha, França, o profissional de 49 anos deixou o comando da seleção após o torneio.

Assistente social na cidade de Agen, França, Abdou deixou a profissão e assinou um contrato definitivo com a federação comorense somente em 2018, depois de quatro anos alternando funções. Desde então, também assumiu o comando do Nouadhibou, atual tetracampeão do Campeonato Mauritano. Pela seleção de Comores, o seu grande trunfo foi identificar descendentes comorenses na França, como ele próprio.

Na sua cidade natal, importante centro portuário no sul da França, existe uma grande comunidade de expatriados de Comores, e Abdou teve a habilidade de identificar e convencer jogadores a defenderem o país de seus pais e avós, que há quatro décadas iniciaram um grande movimento migratório para a ex-Metrópole. Dos 28 jogadores selecionados para a Copa Africana de Nações, 26 nasceram em território francês.

El Fardou Ben Nabouhane, atacante do Estrela Vermelha e natural da ilha de Maiote, é a principal estrela de Comores (Foto: Federação de Futebol de Comores/FFC)

Destes 26 franceses, 11 também nasceram em Marselha, como Abdou. Outros quatro nasceram na ilha ao lado, Maiote, que é território francês, como El Fardou Ben Nabouhane, atacante do Estrela Vermelha (Sérvia) e principal jogador da seleção. Os únicos nativos são Abdallah Ali Mohamed e Ibroihim Djoudja, sendo que o primeiro se mudou para a França durante a sua infância e foi formado pelo Olympique de Marseille.

Enquanto Comores agora busca a sua primeira vitória em uma eliminatória mundial, a busca por expatriados não é uma circunstância única do selecionado do arquipélago. Dos 581 jogadores registrados na última Copa Africana de Nações, 211 não nasceram nos países que representam. Destes, 112 nasceram em território francês, fato que se explica com a França ter colonizado 12 das 24 nações que disputaram o torneio.

Inglaterra, Holanda, Bélgica, Espanha e Portugal são outros países com atletas que fizeram o caminho inverso de seus descendentes. Contudo, já é possível notar fluxos migratórios mais recentes, com dezenas de jogadores nascidos em países como Suécia, Alemanha, Suíça, Dinamarca e Irlanda. Também há os casos internos no continente africano, com muitos marfinenses e senegaleses naturalizados.

Em tempos em que globalização está cada vez mais avançada, o conceito de nacionalidade, em contraste com o crescimento de movimentos nacionalista, perdeu muito o seu sentido. Se as jovens nações africanas ainda buscam a sua afirmação, a Copa Africana de Nações surgiu como um papel importante nisso. De toda forma, o esporte, um exemplo real e cotidiano dos fluxos migratórios, mostra a complexidade da discussão.

Da mesma forma, a dupla nacionalidade é uma via de mão dupla. Não são apenas as nações africanas que buscam os seus descendentes. Na Europa, principalmente em países que sofreram com as diásporas para a América entre o final do século XIX e início do XX, também se beneficiam do talento de jogadores formados em outros países. A Itália campeã europeia em 2021 teve três brasileiros netos e bisnetos de italianos.

Já a França, campeã mundial em 2018, também contou com três atletas que não nasceram na Metrópole na Copa do Mundo da Rússia, além de outros 14 de origem africana e asiática, filhos e netos de expatriados. O país, inclusive, foi uma das nações que mais se beneficiaram esportivamente da situação, e os rostos miscigenados das suas equipes de futebol desde os anos 1980 é um exemplo.

Mais lidas:

Leia também: