Às vésperas de completar 21 anos, a Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, recebe um importante reforço para promover uma educação antirracista em todo o Brasil. Recentemente, foi lançado o volume 10 da coleção História Geral da África, marcando o retorno após mais de uma década desde a última publicação em português, ocorrida em 2010. Financiado e desenvolvido pela agência da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), esse novo volume explora a concepção de “negritude global” e as dispersões da cultura africana pelo mundo.

Vanicléia Silva Santos, a primeira editora mulher de um livro da coleção | Foto: Reprodução/ResearchGate

Intitulado “A África e suas diásporas no mundo”, o projeto dedicou-se a criar uma narrativa cuidadosa das experiências dos africanos e afrodescendentes em escala global. Segundo a organização da obra, esse conceito permite abordar ativamente e de maneira transversal as diversas questões que conectam a África às suas diásporas. O livro é dividido em três seções: “Redefinir africanidade global e negritude”; “Mapeamento da diáspora africana” e “Histórias vivas e narrativas de liberdade”.

“Atualmente, os Estados Unidos definem a agenda e o conceito de diáspora no mundo. Este é realmente um projeto revolucionário, pois quebra com esse pensamento, afinal o Brasil é o local da maior diáspora africana do mundo. Com nossa expertise, conseguimos desvincular a história da diáspora da escravidão. Documentos mostram africanos saindo de Moçambique e sendo embaixadores na China no século 6”, afirma Vanicléia Silva Santos, editora da obra, em entrevista a Tabita Said, do Jornal da USP.

Um aspecto notável dessa publicação é a redefinição da africanidade e a busca por uma negritude global, com destaque para regiões como a América Latina, China e Sul da Ásia. Os quase 80 autores de capítulos desse novo volume são parte de um grupo de especialistas mundiais em História da África e seus temas correlatos. Eles foram convidados pelo comitê executivo da obra a explorar os antecedentes históricos do pensamento sobre a diáspora africana, enfatizando que tal pensamento “não nasceu na academia, mas emergiu de processos históricos, culturais e políticos”.

“A chamada diáspora africana é um fato histórico primordialmente relacionado à escravização de pessoas em regiões do continente africano e seu transporte para outros continentes ou ilhas, onde eram utilizadas como mão de obra nas atividades econômicas ali desenvolvidas em um sistema colonial de exploração, controlado por impérios europeus. A proposta do volume 10 é atualizar a ideia de diáspora africana, incorporando os processos coloniais ocorridos no continente africano. Ou seja, de meados do século 19 a meados do século 20, e os processos migratórios posteriores às independências dos países africanos, portanto pós-coloniais”, explica Marina de Mello e Souza, coordenadora do Centro de Estudos Africanos (CEA) da USP. Marina não participou diretamente da elaboração da obra, mas foi orientadora de Vanicléia em seu doutorado na USP.

A historiadora comenta que os livros da coleção História Geral da África vêm aliados de uma renovação metodológica exigida pelos estudos africanos, desde que a área passou a constituir o ambiente acadêmico. “Para nós, professoras e professores, é um material precioso por suas qualidades intrínsecas, e por ajudar a preencher uma lacuna considerável de obras em português sobre a história do continente africano e suas implicações”, destaca Marina.

Para manter este nível de eficácia e ainda avançar no conceito, foi necessário apresentar a diáspora para além do mundo atlântico e responder a algumas questões centrais: como examinar as histórias das diásporas africanas, considerando suas continuidades e transformações nos mais diversos períodos e espaços históricos? Como pode a África Global ajudar-nos a pesquisar as diásporas africanas para além da história da escravatura no mundo moderno? “Como editora (organizadora em português), tive que pensar estruturalmente sobre a organização do volume 10 e escrever sobre o trabalho de forma a torná-lo mais compreensível para a academia e para o público em geral”, descreve Vanicléia.

Capa do livro: História geral da África, X: África e suas diásporas | Foto: Divulgação

Em 1964, a Unesco lançou o projeto História Geral da África para reconstruir a história do continente desde o aparecimento dos primeiros seres humanos até sua história recente. Até o volume 8, mais de sete mil páginas apresentam um amplo panorama das civilizações africanas, trazendo à tona a contribuição de personagens e de culturas africanas para o progresso geral da humanidade.

“Esta monumental obra foi concebida com o propósito de corrigir o desconhecimento relativo à história do continente africano e construir uma visão distinta da região, evitando-se a visão eurocêntrica hegemônica e considerando a recusa de se enxergar os africanos como criadores de culturas originais”, afirma Marlova Jovchelovitch Noleto, diretora e representante da Unesco no Brasil para a obra.

Da diáspora

“O livro é bastante representativo por ser o volume ‘da diáspora’, que estava previsto no projeto original de 1964, e ele é lançado exatamente nos 20 anos da Lei 10.639. Então, isso é muito simbólico. Não esquecendo que no dia 29 (de novembro) houve uma sinalização da Câmara dos Deputados de transformar o 20 de novembro em feriado nacional. Então, parece que os deuses e os orixás concluíram”, brinca o sociólogo Valter Silvério. Vice-presidente do comitê científico do projeto e responsável pela revisão técnica do volume recém-lançado, Silvério é professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), interior do Estado de São Paulo.

Valter Silvério é vice-presidente do Comitê Internacional do projeto História Geral da África | Foto: Currículo Lattes

Ele lembra que 135 anos após o fim do tráfico transatlântico, restaram semelhanças na sociabilidade de países da costa ocidental africana com o Brasil, o que, apesar de todas as mazelas, ainda faz com que essa população sinta afeto pelo povo brasileiro. “E isto eu não li em artigos ou livros”, conta o sociólogo, destacando se tratar da maior concentração de negros e afrodescendentes fora do continente africano. “O que leva a uma identificação em termos de manifestações da vida cotidiana, sejam elas culturais, econômicas, políticas, de muita similaridade entre Brasil e alguns países africanos. Então eu acho que a diáspora africana no Brasil é encarada como a principal diáspora”, afirma.

Silvério foi responsável pelo 1º edital que direcionava recursos para núcleos de estudos afro-brasileiros de universidades públicas federais e estaduais no Brasil. Envolvido na Secretaria de Educação Continuada do Ministério da Educação, em 2004, o sociólogo conta que nessa época já havia uma preocupação em produzir materiais de referência que fornecessem subsídios aos professores e alunos sobre as influências africanas no Brasil.

“Existe material voltado para essa finalidade, o que falta é a definição de formato. Por exemplo: como é que você faz material para quilombo? Então, como esses materiais devem ser apresentados para a realidade brasileira, que é bem complexa em termos da presença africana no Brasil”, aponta. “Eu acho que esses volumes compõem uma reformulação, uma renovação da história da África com um olhar de 50 anos depois das primeiras concepções. Para o ano que vem, teremos muitas surpresas em termos de publicações”, analisa Silvério. 

Lei que rege a educação

Marina de Mello e Souza | Foto: Antoninho Perri/Unicamp

Parte da preocupação do Comitê Científico da coleção é aproximar a obra dos currículos educativos para além da África. No Brasil, embora seja lei, a fiscalização do ensino de história africana nas escolas é relegada à sociedade civil. 

“A Lei 10.639/03, resultante da atuação histórica do movimento negro e de setores políticos progressistas, junto com as leis de cotas, ajudou a mudar o panorama social e cultural brasileiro, provocando uma explicitação crescente do silenciamento e da marginalização a que as pessoas pretas, de ancestralidade africana, são submetidas há mais de quatro séculos”, constata Marina. Segundo a coordenadora do Centro de Estudos Africanos da USP, mesmo não sendo devidamente cumprido, o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira trouxe mudanças significativas nos conteúdos transmitidos pelo sistema escolar. “Além de introduzir novas possibilidades de estruturar o conhecimento, em moldes não ocidentais.”

A preocupação didática esteve presente nos primeiros oito volumes de História Geral da África, mas ainda era necessário descolonizar muitos conceitos. “E o comitê científico decidiu por três outros volumes: um seria de revisão, que é o volume 9; o volume 10, que é sobre diáspora; e o volume 11, que é um volume extremamente ousado na medida em que ele se propõe a localizar, do ponto de vista historiográfico, científico, de uma maneira geral, a presença dos africanos globalmente”. Consideradas obras reparadoras, tanto o volume 9 quanto o 11 ainda não foram lançados.

Para Marina, o conceito de “África Global” atualiza uma reflexão iniciada nos anos 1970 no âmbito da Unesco, mas se coaduna com o momento atual da história, marcado pela movimentação de povos. “Pelo que foi dito por sua organizadora e pelas pessoas envolvidas com sua realização, o volume trata da diáspora africana em temporalidades diferentes, portanto em contextos e direções diversas. E a organizadora do volume (que obteve seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social pela FFLCH-USP) escolheu para integrá-lo uma boa amostra das historiadoras e historiadores brasileiros em atuação, e que fazem hoje de nossa historiografia africanista uma das mais dinâmicas da atualidade”, diz. 

Além do desafio de oferecer o novo conceito de“África Global”para estudar a história das diásporas africanas em todo o mundo, Vanicléia conta que foi necessário superar dificuldades monumentais entre os 16 membros do comitê científico, como questões geracionais e territoriais, além da preocupação com a representação geográfica e de gênero dos intelectuais que colaboraram com os textos. 

“Estar à frente da coleção História Geral da África, como editora do volume 10, resulta de uma luta política das mulheres intelectuais negras para incluir outras mulheres em espaços como este. Os oito volumes anteriores tiveram oito homens africanos como editores (dois do Quênia e os outros de Gana, Egito, Guiné-Conacri, Marrocos, Nigéria e Alto Volta). Entre os autores dos 227 capítulos, estão homens de vários países das Américas, Ásia, Europa e África, incluindo vários brancos, e há apenas uma mulher”, admite a editora. E conta que, ao tomar posição no comitê científico, procurou se articular para destacar a presença feminina neste projeto.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 04 Educação de Qualidade; ODS 10 – Redução das Desigualdades

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