Após emocionantes partidas e alguns resultados surpreendentes, foram definidos os quatro países semifinalistas da Copa do Catar. Infelizmente a seleção brasileira não teve um bom desempenho e, após um esquálido 1×1 na prorrogação, sucumbiu diante da persistente Croácia, que foi mais eficaz na cobrança das penalidades. Seu oponente na fase semifinal foi a Argentina, que em um jogo eletrizante, com o placar de 2×2, superou a Holanda nas quartas de finais, também na cobrança de penalidades.

Já a França venceu a Inglaterra, no tempo normal das quartas de final, com placar de 2×1, em uma partida acirrada e de altíssimo nível, que fez com que os amantes de história resgatassem a memória da rivalidade entre os dois países na Guerras dos Cem Anos, entre os séculos XIV e XV, na qual a França também foi vitoriosa em 1453.

Mas, sem dúvida a grande surpresa da Rodada, e da copa, foi a eficiente seleção do Marrocos que, ao vencer Portugal por 1×0 nas quartas de final, se tornou o primeiro país africano a se classificar para as semifinais de uma Copa do Mundo. Anteriormente, países africanos tiveram desempenho interessante (Camarões- 1990, Senegal-2002 e Gana-2010), mas só tinham conseguido chegar até as quartas de final. Assim, o feito do esquadrão marroquino é verdadeiramente extraordinário.

Contudo, para além dos aspectos polêmicos, envolventes e fascinantes que têm marcado a Copa do Catar-2022, interessa-me observar aspectos relevantes da história e da geopolítica desses que foram os quatro semifinalistas. Apesar do atual desempenho da seleção argentina, nossos vizinhos  enfrentam uma das maiores taxas de inflação do mundo, com índices que já ultrapassam os 70% ao ano.

O governo de Alberto Fernandez está em seu terceiro ministro da Economia, desde julho, e a base de apoio do presidente está em constante rota de colisão. Infelizmente a segunda maior economia do Cone Sul deve mais de US$ 40 bilhões ao Fundo Monetário Internacional e está praticamente sem reservas cambiais.

Foto: Mídia Ninja

Não bastasse a crise econômica, a Argentina vive também uma profunda crise política. No dia 06/12, a vice-presidente Cristina Kirchner foi condenada, pela Justiça argentina, a 6 anos de prisão pelo crime de corrupção por supostamente favorecer o empresário Lázaro Baez em obras públicas na província de Santa Cruz durante os governos dos Kirchners entre 2003 e 2015. Porém, como ela é vice-presidente do país e presidente do Senado, tem foro privilegiado e não pode ser presa. Além disso ainda cabe recurso dessa sentença, o que certamente ainda arrastará o processo por anos.

Nesta terça-feira, 13/12, ao vencer brilhantemente a Croácia por 3×0, a Argentina  se classificou para disputar a final da copa 2022. Talvez, um título mundial argentino na copa possa aliviar as tensões no país dos “los Hermanos”.

Foto: Redes Sociais

Já com relação à Croácia, relembramos o processo de dissolução da Iugoslávia, quando os croatas declararam sua separação em 25 de junho de 1991.

Os sérvios queriam prevalecer sobre toda a região e como controlavam o antigo exército da Iugoslávia invadiram a Croácia iniciando violentos conflitos. Houve a necessidade da intervenção de tropas de paz da ONU para poder estabilizar a região. Em 1992, houve o reconhecimento da independência Croata e, posteriormente, em 1995, com recursos próprios, o país realizou ações militares que viabilizaram a recuperação dos territórios que tinham sido tomados pelos sérvios.

Foto: Infoescola

A primeira participação da Croácia em copas do mundo, em 1998, se apresentou surpreendente, pois ficou em 3º lugar na competição.

Nas seletivas para a copa da Rússia, em 2018, esteve ameaçada de não se classificar, mas conseguiu a vaga na repescagem contra a Grécia. Mais uma vez realizou um feito surpreendente conseguindo o título de vice-campeã ao disputar a final contra a França. Até este momento essa é a sua melhor classificação em copas.

Na atualidade a Croácia tem uma das economias mais fortes das ex-repúblicas iugoslavas. Este ano, após ter cumprido todas as exigências, o Conselho da União Europeia aprovou, em julho, os requisitos para a entrada do país de Luka Modrić na zona do euro, a partir de 1 de janeiro de 2023.

O disputadíssimo jogo da semifinal entre França e Marrocos, proporcionou que nos remetêssemos ao início do século XX, na chamada “Questão Marroquina”. Foi no contexto da corrida imperialista, entre os séculos XIX e XX, que o Marrocos, localizado no norte da África, tornou-se palco de disputas entre França e a Alemanha, além de interesses espanhóis na parte costeira dessa região. Em 1904, a França e a Espanha estabeleceram zonas de influência no Marrocos.

Foto: Wikipédia.

O expansionismo da Alemanha do II Reich era uma ameaça para os demais países europeus e tal fato viabilizou a aproximação e apoio inglês às pretensões francesas. O Tratado de Fez, de 1912, definiu o Marrocos como protetorado francês. Porém, a Espanha manteve sua influência na zona costeira e sobre zonas do norte e sul do Saara. Esses eventos estão entre os antecedentes que colaboraram para o quadro de tensão internacional que levou à Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Na história do cinema o Marrocos ficou marcado pelo clássico filme Casablanca, nome de uma cidade portuária e centro comercial no oeste desse país e que foi utilizada como rota de fuga para quem queria escapar dos horrores da Segunda Guerra Mundial e da ameaça nazista.

Já no contexto do pós Segunda Guerra Mundial houve o processo de descolonização afro-asiático e a França, em meio a disputas envolvendo a independência da Argélia, outra ex-colônia francesa no norte da África, acabou reconhecendo a independência do Marrocos em 1956.

Atualmente o Marrocos é uma monarquia constitucional na qual predomina o islamismo. Há eleições populares para a escolha de uma Câmara de Representantes, que funciona como um Parlamento. Porém, sobre o governo do país recaem graves denúncias de desrespeito aos direitos humanos, principalmente em relação às populações dissidentes, como as da região do Saara Ocidental, que estão sob a constante ameaça dos ataques Marroquinos.

Foto: Wikipédia.

Outra questão intrigante é a disputa envolvendo o Marrocos e a Espanha por territórios do Saara Ocidental, fruto de resquícios do passado colonial. A região disputada é uma ex-colônia espanhola, mas tem partes controladas pelo Marrocos. As cidades portuárias de Ceuta e Melilla, no norte da África, são os enclaves espanhóis cobiçados pelo Marrocos. Os marroquinos e outros grupos subsaarianos buscam Ceuta e Melilla como rota para entrarem na área da União Europeia. Muitos morrem tentando essa travessia, o que faz com que essa região faça parte do grave quadro de crise migratória internacional.

Foto: Brasil Escola.

Por todo esse histórico, tanto a vitória contra a Espanha nas oitavas de final, quanto a acirrada disputa com a França nas semifinais, da qual saiu derrotada por 2×0, teve um gostinho de acerto de contas entre colonizados e colonizadores europeus, não só para os marroquinos, mas também para povos árabes, africanos e islâmicos.

Agora, no que se refere à seleção da França, a intensidade e eficácia do futebol apresentado pelo selecionado francês, mais uma vez classificado para uma final de copa, confirma o seu efetivo favoritismo. O curioso é que o maior artilheiro da França e o maior goleador em uma única edição de copa do mundo é de origem marroquina, trata-se de Just-Fontaine, que atuou pela seleção francesa na Copa de 1958, na Suécia.

Foto: Lance.com

Porém, apesar do bom desempenho de Kylian Mbappé e seus companheiros, no campo político a França tem vivido momentos de tensão.

Em abril deste ano Emmanuel Macron se reelegeu presidente da França com 58,54% dos votos, em um cenário político polarizado. A representante de extrema direita, Marine Le Pen teve 41,46% dos votos.

Em setembro milhares de pessoas protestaram contra o custo de vida e a proposta de reforma previdenciária, que aumentaria da idade de aposentadoria de 62 para 65 anos . Macron tenta implementar essa reforma desde 2019, em seu primeiro mandato, mas, a França tem fortes e históricos sindicatos com grande poder de mobilização e que se opõem à proposta do governo.

Foto: Instagram

Outro aspecto é a crise que a Europa vive com os efeitos da pandemia e da guerra da Ucrânia. As relações entre a França e a Alemanha, protagonistas da União Europeia, parece estar estremecida. Em função da guerra da Ucrânia e da ameaça representada pela política de Vladimir Putin, a Alemanha tem acenado com uma tendência política cada vez mais unilateral. Um exemplo disso por exemplo disso o processo de remilitarização de seu país.

Em junho deste ano o parlamento alemão modificou a constituição e criou um fundo para destinar 2% do PIB para a área de defesa, algo em torno de 100 bilhões de euros (R$ 477 bilhões). Esse tipo de ação da Alemanha afeta a liderança militar francesa na Europa e pode colocar em xeque o futuro da União Europeia.

Pois bem, é em meio a esse turbilhão de tensões políticas e econômicas que vai chegando ao final mais uma Copa. Mas, para além das disputas futebolísticas, um evento desse porte, com suas contradições e polêmicas, permite que possamos colocar uma lupa sobre as engrenagens que movem as relações históricas de poder, dentro e fora das quatro linhas.

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