A escravidão foi extinta no Brasil em 13 de maio de 1888, quando a Princesa Imperial Regente Isabel assinou a Lei Áurea. O documento colocou fim a um marco considerado um dos mais trágicos capítulos da história do país. No entanto, Norberto Salomão, professor e historiador, apontou que o Estado não amparou os ex-escravos no seu processo de independência e liberdade.

“A lei foi importante porque aboliu a escravidão no Brasil, apesar de não ter realizado, infelizmente, a devida inclusão dos ex-escravos na sociedade brasileira, o que cria uma situação ainda hoje complicada. E isso tem raízes profundas”, analisou o professor.

O documento aprovado em votação pelo parlamento e assinado pela princesa Isabel ficou conhecido como a Lei Áurea. Alguns motivos apontam para a magnificência do ato que colocava fim a escravidão. Mas também há relatos de que a princesa teria usado uma caneta dourada para assiná-lo.

A etimologia da palavra Áurea vem do latim e descreve coisas brilhantes ou resplandecentes, feitas de ouro e na cor dourada. No seu sentido figurado apresenta seria algo magnífico, valioso e brilhante.

Escravidão

Escravidão
Escravidão (Foto: Arquivo/Agência Brasil)

A escravidão, como pontua o professor Norberto, é uma forma de trabalho compulsório. Isto é, uma condição na qual o indivíduo que está submetido a essa relação de trabalho não têm escolha. Para exemplificar o conceito, Salomão pontua as duas formas de trabalho compulsório conhecidas no mundo desde a antiguidade: a escravidão e a servidão. 

“A escravidão se caracteriza pelo fato de o indivíduo se tornar propriedade de alguém, se tornar coisa, e esse é o termo mesmo. Tanto é que em latim se dizia que o escravo era res mobilis. ou seja, res do latim  coisa, e mobilis é o “que se move”, então coisa que se move, um ser movente. Então ele pode ser vendido, trocado, emprestado, enfim”, descreveu.

A história da escravidão no Brasil iniciou quando os portugueses começaram a ocupar o território. Mesmo assim, a mão de obra escrava já era utilizada, por exemplo, na Roma e na Grécia. Salomão destaca que nesses locais haviam regulamentações sobre a maneira como o escravo deveria ser tratados, quais tipos de castigos e punições poderiam ser aplicados. Além de limites estabelecidos para essas punições. 

A principal diferença da escravidão para a servidão se apresenta em alguma “liberdade” da pessoa, pois o servo não era de “propriedade” como os escravos. “A servidão é uma forma de trabalho semilivre, em que o servo não é propriedade de ninguém como é o escravo. Ele está preso a uma obrigação, preso a terra ou algum tipo de proteção e em função disso tem que prestar algum serviço”, detalhou. 

Economia

As Américas passaram por ocupação de território cuja produção em geral se deu por mão de obra escrava. Assim, a escravidão em grande quantidade foi o carro-chefe da economia nos períodos coloniais. No entanto, o professor Norberto afirma que a base econômica já era de um sistema capitalista, ou seja, a escravidão já seria naquele momento um elemento acessório ao capitalismo. 

“A escravidão é essa relação em que o indivíduo se torna propriedade do outro. Portanto, para que isso se constitua um sistema econômico escravista é necessário que essa forma de trabalho seja a base da economia de uma sociedade”, disse.

Norberto enfatiza que tanto na Grécia quanto em Roma houve “sem dúvida nenhuma” um sistema econômico escravista. Mas ele enfatiza que nas Américas predominou o capitalismo. “No período colonial do século 15, 16 até o finzinho do século 19 nas Américas o que tivemos foi um sistema econômico auxiliar ou acessório do capitalismo que estava em formação na Europa nesse período”, analisou.

Falência

Crianças e adultos escravizados em mercado do Rio de Janeiro (Foto: MARIA GRAHAM/SLAVERY IMAGES)

O sistema econômico escravista prevaleceu no mundo por muito tempo e no Brasil, ligado ao capitalismo, durou entre 400 e 500 anos. Mas se engana quem pensa que a escravidão acabou por caráter humanitário. Norberto garante que se esse fosse o motivo, “não teríamos hoje as chamadas formas de trabalho análogas a escravidão”.

“Na verdade tem um componente econômico muito importante que é essa transição de um capitalismo de base mais comerciais para um capitalismo industrial. E que depois passa a um capitalismo financeiro, em que o investimento de capitais tinha que ter uma dinâmica muito maior do que ser empregado ou empatado com a compra de mão de obra escravizada”, alerta.

O componente econômico e o empate, no sentido de impedimento, surgiu a partir da industrialização. Na lógica de desenvolvimento da produção, ao longo do tempo, o sistema econômico escravista tornou-se contraproducente. Segundo Norberto Salomão, um dos principais motivos da falência do sistema era a compra, porque “fosse o escravo africano ou indígena, ele tinha que ser adquirido”, avaliou.

“Por isso se observa desde meados do século 18 um interesse muito grande, principalmente por parte da Inglaterra, de ir eliminando os processos de um sistema escravista”, contou.

Contexto

A compra de um escravo envolvia importantes recursos de capital. Então, à medida que o tempo foi passando e o processo de Revolução Industrial foi avançando a partir da Inglaterra, no contexto do século 18, a dinâmica econômica da época também foi alterada.

“Então [a contraprodução]está muito mais ligada às relações assalariadas que seriam muito mais lucrativas, uma vez que não era preciso comprar a mão de obra assalariada, nem ter nenhuma responsabilidade com a alimentação. E se o indivíduo fica doente, simplesmente reponho essa mão de obra que havia em abundância pelas camadas mais pobres, que não tendo recursos são obrigadas a dispor da sua força de trabalho”, contou.

No contexto da escravidão de africanos no Brasil, eclodiram-se diversos movimentos abolicionistas e republicanos durante o período imperial. Ainda na administração do Marquês de Pombal, por exemplo, houve a libertação de escravizados de outras etnias, como a proibição da escravização de indígenas e indivíduos oriundos da Ásia no Brasil em 1750 e 1761, respectivamente.

Dentre outros movimentos, o historiador Norberto Salomão destacou a exigência da Inglaterra para que o Brasil recém independente elaborasse uma lei que abolisse o tráfico negreiro. Apesar da lei assinada por Diogo Antonio Feijó, em 1831, o professor pontuou que o fim do tráfico negreiro ocorreu definitivamente apenas em 1850, com a chamada Lei Eusébio de Queiroz.

Abolicionistas

Foto: Reprodução/Observatório do terceiro setor

O movimento abolicionista cresceu gradualmente dentro da sociedade brasileira imperial. Se envolveram diretamente com o movimento os intelectuais de setores mais progressistas, por exemplo. “Eles faziam campanhas abolicionistas e até mesmo clubes abolicionistas que arrecadavam recursos para financiar a fuga de escravos ou para comprar a alforria de alguns desses escravizados”, afirmou Salomão e ainda destacou:

“Uma das vertentes mais radicais de clubes abolicionistas no Brasil eram os chamados caifazes, grupo formado por elementos variados, como jornalistas, intelectuais, estudantes. E esses grupos avançaram de 1831 até 1850 atuando para libertar escravos. Havia também algumas irmandades ligadas a adeptos do catolicismo, irmandades essas que também favoreciam esse processo de fuga”, contou.

Todavia, o processo da abolição da escravidão no Brasil foi gradual, porém contínuo. Salomão apontou que houve uma ligação entre os movimentos abolicionista e republicano, que lutava contra a monarquia. Pouco mais de um ano após a extinção da escravidão, em 15 de novembro de 1889 ocorreu um golpe militar que proclamou a República e expulsou a família real do Brasil.

O professor exemplifica essa relação com a Guerra do Paraguai, quando negros e mestiços foram enviados como parte do Exército Brasileiro, que “era muito elitista”. “Quando termina a Guerra do Paraguai, que foi de 1864 a 1870, uma parcela considerável do Exército Brasileiro sai da guerra com uma mentalidade republicana e abolicionista.  E isso é tão forte e tão marcante que em 1871 tivemos a Lei Rio Branco ou Lei do Ventre Livre, pela qual filhos de escravos nascidos a partir daquela data já seriam libertos”, explica.

“Avanços”

Outra lei importante que surgiu na sequência do movimento abolicionista foi a Lei Saraiva-Cotegipe em 1885, conhecida como a Lei dos Sexagenários. No entanto, Norberto Salomão analisa que houve aspectos negativos em relação às duas legislações.

“Na Lei dos Sexagenários o indivíduo acima de 60 anos estaria liberto, mas muitos dizem que essa lei libertava muito mais o senhor do que propriamente os escravizados”, disse. Em relação à Lei do Ventre Livre, Salomão indica que na prática o indivíduo não ficava livre e o senhor se beneficiava com uma “indenização”.

Assim, a lei definia que seria obrigação do senhor alimentar as crianças até os oito anos de idade. Mas dos 8 aos 21 anos essas pessoas continuariam na propriedade do senhor se ele o quisesse ou o Estado teria que cuidar da tutela dessas crianças e jovens.

“O poder público não tinha recursos e nem se dedicou a cuidar dessas crianças que completavam oito anos. Então elas continuavam na fazenda trabalhando até os 21 anos e alguns até depois dos 21. Então esse trabalho até os 21 anos passou a ser visto pelos fazendeiros da época como uma uma espécie de compensação pelos gastos com alimentação e amparo naquele período”, disse.

Primeira abolição

O antecedente mais próximo da abolição da escravidão no Brasil foi a Sociedade Cearense Libertadora, um movimento pioneiro fundado no Ceará em 1880. O clube abolicionista congregava setores populares e a elite intelectual da província. Assim, foi responsável por provocar a primeira abolição da escravidão de escravos africanos no Brasil.

Após diversos movimentos, entre eles uma greve de jangadeiros em 1881, liderada pelo famoso dragão do mar, Francisco José do Nascimento e outras pressões muito fortes, a escravidão foi abolida no Ceará.

“No dia 25 de março de 1884, portanto quatro anos antes da abolição da escravidão, o presidente da província do Ceará, o Sátiro Dias, que era inclusive baiano, decretou a abolição de todos os escravos naquela área. Então foi uma antecipação considerável diante de tudo aquilo que estava acontecendo no Brasil”, destacou Norberto. 

Lei Áurea

(Foto: AcnurAriane Maxiandeau)

Após muitos movimentos abolicionistas, em 13 de maio de 1888, a escravidão foi extinta no Brasil. E então a Lei Áurea consolidou um processo que já estava há muitos anos em andamento e, segundo Salomão, também desgastado. “O problema é que os ex-escravizados não foram inseridos efetivamente na sociedade brasileira. Então apesar de termos tido a abolição da escravidão com a lei do 13 de maio não houve a inserção dos ex-escravizados na sociedade”, esclareceu.

Para o historiador Norberto Salomão, o Dia da Abolição da Escravatura tem uma importância singular para o Brasil. Salomão destacou que é um momento para o país refletir sobre a sua história e a historia da discriminação racial e do racismo presentes na sociedade.

“É sobre a exclusão social que a gente tem na nossa sociedade e como isso se encontra em raízes históricas mais profundas. Mas também serve para refletir sobre os grupos que resistiram e alguns que ainda resistem hoje a compreender as diferenças, de entender a plenitude dos direitos que todos nós brasileiros temos. Por exemplo, o próprio movimento da Consciência Negra que prefere adotar o dia 20 de novembro como sua data efetiva ao 13 de maio, porque entende que não houve a inclusão efetiva na sociedade. E essa é uma luta que ainda prossegue, que tem que continuar”, afirmou.

Sociedade brasileira

Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

Hoje é 13 de maio de 2023. Um dia em memória aquele 13 de maio de 1888, quando as pessoas mantidas compulsoriamente em estado de escravidão receberam o direito a liberdade. Naquele momento, por meio de uma votação aprovada no parlamento e sanção do executivo, a época ainda império.

Atualmente, lembrou o professor Norberto Salomão, a luta por inclusão na sociedade brasileira prossegue e tem que continuar. Uma dessas “batalhas”, inclusive, chegou a percepção de que a nomenclatura da palavra escravo é considerada “errada” para se referir às pessoas que eram escravizadas.

“Escravizado é um termo mais adequado do que escravo. Escravo subentenderia alguém que já nasce com a natureza de ser escravo, enquanto que escravizado seria um termo mais adequado porque estabelece a ideia de alguém que foi submetido a escravidão”, explicou. No entanto, lutas ainda mais significativas seguem sendo travadas diariamente desde o dia 13 de maio de 1888, quando não houve contrapartida do Estado para os ex-escravos.

“Então, [naquele momento], isso foi fazendo com que surgissem moradias nos morros, por exemplo no Rio de Janeiro, ou em áreas periféricas. Ocorreu um processo de verdadeira marginalização dos ex-escravos e dos seus descendentes”, concluiu Norberto Salomão.

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