Por muitos anos, para atores e atrizes negros, a única possibilidade de trabalho no audiovisual era ao interpretar escravos, alforriados e serviçais. Essa realidade, infelizmente, se faz presente atualmente quando eles são escalados apenas para papeis estereotipados.

É importante a gente ressaltar e valorizar a contribuição dessas pessoas para o audiovisual, pois fazem parte da construção do cinema brasileiro. Não há como falar de cinema sem falar da negritude. Seja na direção, produção, no roteiro, elenco, direção de fotografia e arte, construção de personagens e todas as demais áreas, que já conquistaram e precisam continuar ocupando esses espaços.

Por isso, vamos conhecer alguns dos pioneiros no cinema brasileiro, artistas que contribuíram grandemente com a sétima arte do nosso país.

Grande Otelo

Ator Grande Otelo em cena do filme “Macunaíma”

O ator mineiro Sebastião Bernardes de Souza Prata, conhecido como Grande Otelo, foi um dos mais importantes atores brasileiros do século XX. Entre comédia e drama ele também usava a arte para realizar críticas sociais.

O apelido surgiu enquanto o jovem estudava canto lírico, onde o maestro falava que poderia cantar a ópera Otelo, se continuasse estudando. Mas Sebastião atingiu apenas 1,50 metros de altura e devido a sua pequena estatura recebeu o apelido de Pequeno Otelo. Anos depois, devido ao talento a crítica o apelidou de “Grande Otelo”.

O primeiro contato do ator com as artes foi aos sete anos de idade ao participar de uma apresentação em um circo que passava em sua cidade. Ele interpretou a esposa do palhaço e tirou gargalhadas da plateia.

Outro marco importante da carreira do Grande Otelo é que aos 11 anos ele entrou na Companhia Negra de Revista com grandes nomes, como Pixinguinha e a atriz e cantora Rosa Negra.

Entre os diversos trabalhos está a participação na Rádio Nacional, Rádio Tupi, e diversas outras.

No cinema, Grande Otelo se destacou na Companhia Cinematográfica Atlântida, onde estrelou filmes como Moleque Tião (1943), o primeiro sucesso da produtora. Nessa época fez uma grande parceria com Oscarito e se tornaram uma dupla reconhecida no cinema brasileiro. Justos estrelaram grandes sucessos como Noites Cariocas (1935), Três Vagabundos (1952), Quilombo (1984) e Este Mundo é um Pandeiro (1946).

Abdias Nascimento

Foto: Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)

Adbias Nascimento é natural de Franca, no interior de São Paulo. Ele foi um ator, dramaturgo, artista plástico, poeta, escritor professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras do Brasil.

Graduado em Economia, lutou pelo movimento negro e das artes no Brasil. Além disso, contribuiu com a fundação da Frente Negra Brasileira e fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN) construindo uma carreira como ator. O artista agiu como ativista político e se elegeu como deputado federal em 1983.

Léa Garcia

Foto: Léa Garcia no filme Orfeu Negro, 1959

Como falar de arte sem citar a Léa Garcia. Nascida no Rio de Janeiro em 1933, a atriz tem uma extensa carreira em teatro, cinema e televisão. A artista priorizava a luta antirracista, fazendo com que isso se tornasse o núcleo de seu trabalho como atriz, diretora e ativista política.

Léa Garcia começou nos palcos em 1952, quando foi apresentada ao ator e dramaturgo Abdias Nascimento, um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro. A questão é que lá ela conheceu um universo de artistas negros comprometidos com o debate sobre racismo e as estratégias de enfrentamento no Brasil.

Uma das peças de destaque no teatro foi Orfeu da Conceição (1956), de Vinicius de Moraes. Léa havia sido cotada para ser Eurídice, mas se apaixonou pela personagem Mira e felizmente consegui o papel.

A partir da peça surgiu um filme com direção do francês Marcel Camus. A produção foi batizada como Orfeu Negro.

No longa-metragem, a atriz viveu a Serafina. O filme foi um sucesso e venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, sendo o único filme em língua portuguesa a vencer o prêmio até 1960. Outras premiações da produção: o Globo de Ouro de filme estrangeiro e Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1960. A Léa Garcia foi indicada como melhor atriz, mas ficou em segundo lugar, perdendo para a Jeanne Moreau.

Ruth de Souza

Ruth de Souza em ‘Todos os Filhos de Deus Tem Asas’, de Eugene O’Neill, 1946.

A carioca Ruth de Souza, considerada uma das grandes damas da dramaturgia nacional, nasceu em 12 de maio de 1921. A atriz começou a se interessar por teatro ainda na infância, ao assistir uma peça de teatro.

Conhece o grupo de atores TEN e ao perceber quais eram os ideais, acaba virando integrante. Ela faz sua estreia em O imperador Jones, de Eugene O’Neill, em 8 de maio de 1945, no palco do Municipal.

Ela é a primeira brasileira a ser indicada para um prêmio internacional de melhor atriz, na edição do Festival de Veneza de 1954, pela sua atuação em sinhá moça. Ruth entrou na luta contra o racismo e pela conquista de melhores papéis para as atrizes e atores negros em todos os meios culturais.

Arte tem negritude

O produtor cultural, ator e coordenador de Pontão de Cultura Cidade Livre, Jefferson Lobato, afirma que falar de arte no Brasil e no mundo sem citar negritude é no mínimo acabar com ela.

“São tantos nomes que transcendem a história do nosso país e isso começa nas senzalas e terreiros que contribuíram para que os negros conseguissem o espaço nas artes. Essa luta vem desde Zumbi dos Palmares passando por Gilberto Gil e seguindo até os artistas da nova geração”, afirma Jefferson.

Jefferson ressalta que Zumbi, antes mesmo de ser líder, foi um grande artista. “Ele era alguém que trazia Cultura, sendo um visionário para todo esse período. Citei o Gilberto Gil por ser muito importante na arte e na construção de políticas públicas para pessoas e comunidades negras”, explica.

Inspirações me fizeram artistas

Professor de dança, grafiteiro e artista de audiovisual, Allan Silva (Foto: arquivo pessoal)

O professor de dança, grafiteiro e artista de audiovisual, Allan Silva, conta que a vontade de trabalhar no meio artístico surgiu através de pessoas pretas de comunidade.

“Eu sigo meu caminho sempre citando alguns nomes, essas pessoas que se tornaram minhas referências também tiveram influências de outros artistas negros. Com isso, é muito importante lembrar que alguém lá atrás deu o primeiro passo”, ressalta.

Allan pontua que o seu primeiro contato com as artes foi aos 13 anos de idade em uma oficina de dança.

“Eu lembro que conheci uma das minhas inspirações ainda na adolescência, em uma oficina, a Juliana Jardel. Hoje ela é minha professora no IFG. A sensação incrível, eu não consigo explicar em palavras, mas me fez despertar um grande interesse por esse universo”, recorda emocionado.

Allan teve a influência de diversos artistas goianos, capoeiristas, dançarinos, artistas visuais e tudo isso contribuiu para que ele percebesse que tinha lugar ali. “E hoje eu sou artista visual, danço, faço telas e isso por ver, através dos artistas locais, que era possível. Os que vieram antes possibilitaram isso. meus antepassados me fizeram artista”, concluí.

Representatividade

Jefferson destaca que a luta vai muito além de levar as pessoas pretas para o audiovisual, pois é importante que elas também tenham papéis de destaque e não interpretem apenas personagens estereotipados.

“Ter uma ministra da Cultura negra é muito importante é uma quebra de paradigma. É uma luta secular e que precisamos continuar travando. Além do racismo, a mulher negra lida com o machismo também e diversas outras questões e é quando mostramos que elas podem estar em todos os lugares em papeis de destaque, como na direção, no roteiro, na fotografia e até com a ministra da Cultura, faz com que toda a comunidade negra possa sonhar e se ver representada nas artes”, disse.

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