No cenário atual do Brasil, o Projeto de Lei (PL) nº 490/2007, ou marco temporal das terras indígenas, tem se destacado como um tema polêmico e amplamente discutido. Essa interpretação jurídica busca estabelecer critérios para a demarcação e proteção das terras indígenas. A definição é de acordo com a ocupação efetiva dessas áreas pelos povos indígenas antes da promulgação da Constituição Federal de 1988.

O marco temporal argumenta que somente as terras indígenas que estavam ocupadas por comunidades indígenas até 5 de outubro de 1988 teriam direito à demarcação e proteção legal. Essa visão sustenta que as terras que estavam desocupadas ou ocupadas por terceiros não indígenas naquela data não poderiam ser consideradas como terras tradicionalmente indígenas. A exceção fica para caso de conflito de posse no período.

Contudo, essa interpretação tem gerado intensos debates e controvérsias. Diversos povos indígenas e organizações indigenistas argumentam que o marco temporal é uma tentativa de enfraquecer e restringir os direitos indígenas. Eles alegam que dificulta a demarcação de terras, permitindo a exploração econômica em áreas anteriormente protegidas.

Para esses grupos, a concepção do marco temporal ignora a história e as violências sofridas pelos povos indígenas. Muitas vezes foram expulsos de suas terras tradicionais durante a colonização e ao longo da história do Brasil. Eles defendem que a demarcação de terras indígenas deve considerar o critério da ancestralidade e a relação dos povos indígenas com seus territórios ao longo dos séculos.

O que mais o texto prevê?

O projeto ainda apresenta diversas medidas adicionais, como a proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas. Nesse sentido, restringe a possibilidade de expansão territorial das comunidades indígenas que já tiveram suas terras reconhecidas oficialmente.

Outra questão é flexibilizar o uso exclusivo das terras indígenas. Nesse caso, a União terá permissão para retomar áreas reservadas caso haja alterações significativas nos traços culturais das comunidades. Isso significa que, sob certas circunstâncias, as terras indígenas poderiam voltar para o controle do governo.

Além disso, permite a celebração de contratos de cooperação entre indígenas e não indígenas para atividades econômicas. Essa medida visa promover parcerias entre diferentes grupos. O objetivo é desenvolver projetos econômicos que beneficiem tanto as comunidades indígenas quanto outros setores da sociedade.

Possibilita também o contato com povos isolados, com o intuito de intermediar ação estatal de utilidade pública. Essa disposição busca estabelecer um canal de comunicação entre o governo e povos indígenas que vivem de forma isolada. Isso permitirá a intervenção estatal em situações de necessidade ou empreendimentos de interesse público.

Opinião divergente

Em oposição a esses argumentos, defensores do marco temporal afirmam que ele busca estabelecer critérios claros e objetivos para a demarcação de terras indígenas. De acordo com eles, a ideia é evitar conflitos e garantir segurança jurídica para proprietários de terras e investidores. Eles alegam que a interpretação atual dos direitos indígenas pode gerar incertezas jurídicas, prejudicando o desenvolvimento local.

Processos de demarcação de terras indígenas que se prolongam por longos períodos podem ser suspensos, de acordo com propostas recentes. O marco temporal pode abrir espaço para a privatização e comercialização de áreas que originalmente pertencem aos povos indígenas.

A comercialização é uma preocupação levantada por alguns setores, como o ruralista, que defendem a aplicação da tese do marco temporal. Esses grupos alegam que a possibilidade de comercializar terras indígenas pode atender aos interesses do setor agrícola e rural, além de segurança jurídica e eliminar o risco de desapropriação.

Votação na Câmara

Na última terça-feira (30), a Câmara dos Deputados aprovou, por uma margem de 283 votos a favor e 155 contra, o marco temporal das terras indígenas. O projeto agora segue para análise do Senado e, se a Casa aprovar, segue para sanção do presidente Lula. Nesse sentido, o Chefe de Governo terá a prerrogativa de sancionar o texto na íntegra ou vetar partes dele.

A votação foi possível após a aprovação da urgência de tramitação, por 324 a 131, além de uma abstenção. Sendo assim, permitiu a apreciação direta do texto no plenário, sem a necessidade de passar pelas comissões temáticas da Câmara. Isso fez com que houvesse mais agilidade na análise do PL.

A federação que engloba partidos como PT, PC do B e PV emitiu uma orientação contrária ao projeto. No entanto, o deputado Rubens Junior (PT-MA), falando como líder do governo, concedeu liberdade de voto à bancada, permitindo que cada parlamentar decidisse conforme sua preferência. “O governo nesse caso vai liberar a matéria em relação a urgência e depois a gente aprecia no mérito”.

STF também discute

Além do debate e votação no Congresso, a questão do marco temporal para a demarcação de terras indígenas também está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente, os ministros analisam uma ação envolvendo uma terra indígena em Santa Catarina, e a decisão tomada terá repercussões em todos os processos semelhantes em todo o país.

Em 2013, a Justiça Federal em Santa Catarina aplicou a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina a reintegração de posse de uma área que faz parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde está localizada a Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ. Nessa região, habitam os povos xokleng, guarani e kaingang.

Essa decisão mantinha o entendimento de uma outra decisão da Justiça Federal em Santa Catarina, de 2009. A Fundação Nacional do Índio (Funai) apresentou um recurso ao STF, questionando essa determinação. O pedido em análise pela Corte é justamente o recurso apresentado pela Funai.

A Funai alega que a aplicação do marco temporal viola a Constituição, em particular o artigo 231, que trata da proteção aos povos indígenas. De acordo com a fundação, o direito de posse daquele que está registrado como proprietário no registro de imóveis não pode prevalecer sobre o direito originário dos povos indígenas.

Início da polêmica

O julgamento desse tema no STF teve início em agosto de 2021. O ministro Edson Fachin, relator da ação, sustentou que o marco temporal não deve ser aplicado. Ele argumentou que essa tese desconsidera a classificação dos direitos indígenas como fundamentais, ou seja, cláusulas pétreas que não podem ser suprimidas por emendas à Constituição.

Em seguida, o ministro Nunes Marques apresentou uma opinião divergente e se manifestou a favor da aplicação do marco temporal. Após sua manifestação, o julgamento foi suspenso devido a um pedido de vista feito pelo ministro Alexandre de Moraes para analisar o caso por mais tempo.

A presidente do STF, ministra Rosa Weber, informou que o julgamento será retomado no dia 7 de junho. Vale ressaltar que essa análise possui repercussão geral. Sendo assim, a decisão tomada pelos ministros da Corte irá estabelecer um entendimento que poderá ser aplicado em situações semelhantes em todo o Brasil.

Se o marco temporal virar lei?

A votação do marco temporal no plenário foi uma promessa que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), cumpriu à bancada ruralista. Caso o Senado aprove a proposta e o presidente Lula sancione, ela se tornará lei após sua publicação no “Diário Oficial da União”.

No entanto, é importante destacar que, se o STF adotar um entendimento oposto à aplicação do marco temporal na ação em análise, existe a possibilidade de questionar a validade da lei perante a Corte.

Caso haja uma provocação nesse sentido, os ministros podem analisar se o texto é constitucional ou não, levando em consideração os princípios e direitos previstos na Constituição. Diante dessa aprovação na Câmara dos Deputados, o assunto ganha ainda mais relevância e promete continuar gerando discussões nos próximos meses.

*Esse conteúdo está alinhado com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU 10 – Redução das Desigualdades

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