Um xadrez onde o rei é Ganga Zumba, o bispo é Zumbi, a dama é Dandara e os peões são os escravos. Assim é o jogo de tabuleiro desenvolvido por alunos e professores na Escola Municipal Canabrava, da Comunidade quilombola de Flores de Goiás. O projeto de xadrez é para valorizar a cultura e tradição do local.
“É um jogo que fortalece a identidade cultural da comunidade. Houve o respeito e a valorização da diversidade étnico cultural, com estímulo ao diálogo intercultural e a troca de saberes entre estudantes e membros da comunidade quilombola”, explicou a professora responsável pelo projeto, Gisele Andrade da Silva.
Na sala de aula, a inserção de jogos como o xadrez é uma mediação tecnológica que auxilia o professor na forma como o conteúdo chegará aos alunos. previsto no currículo da educação em Goiás, assim como outros jogos e esportes, por causa da BNCC.
Mas na escola quilombola em que Gisele é professora a ideia da inserção do jogo foi além da Matemática e da Educação Física, pois faz parte de um projeto para atender identitariamente os alunos e a comunidade. “As mudanças do nome das peças tradicionais foi com o objetivo das pessoas aprenderem brincando e enriquecer a hierarquia de cada membro do quilombo”, afirmou Gisele.
Um xadrez quilombola
O xadrez é um jogo de raciocínio lógico e estratégia que entra nas escolas por determinação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que insere no ensino jogos e brincadeiras.
Luiz Primandade já usou o jogo para ensinar Biologia e, então, explicou que o xadrez pode ser usado também nas aulas de matemática e educação física, como atividade lúdica de conhecimento. O jogo ajuda o estudante a trabalhar o raciocínio em outras áreas, como em concursos públicos e no dia a dia.
“[No xadrez] ele vai aprender estratégias para desafiar o oponente e a partir da melhor estratégia alcançar o objetivo que é dar o xeque-mate. A partir disso, a gente consegue estimular o aluno a desenvolver várias atividades dentro de várias disciplinas”, contou.
Entusiasta do jogo de tabuleiro, Primandade enxerga no xadrez uma forma de romper o ensino tradicional, mas para atingir o mesmo objetivo de forma mais lúdica e interessante para o aluno. “[Com o xadrez], a gente tem uma forma interdisciplinar de trabalhar com esse aluno, uma forma que ele consiga se formar como um cidadão que vai modificar a sua própria realidade. E a partir desse contexto quilombola, que ele consiga mostrar a importância da comunidade quilombola”, disse.
Tradição e cultura
O xadrez quilombola segue a essência do modelo tradicional do jogo, tanto no formato como na movimentação das peças. Porém, para valorizar a cultura da comunidade, Gisele e Luiz tiveram uma ideia diferente para desenvolver o material e, como já exposto, ressignificaram as peças.
A ideia surgiu do contato formativo entre os professores Gisele e Luiz. “A Gisele colocou para mim aquilo que já vejo na educação: que a gente precisa de uma transformação”, destacou Primandade.
“Ela falava que eles tinham que fazer um resgate da cultura e da tradição. Daí surgiu a ideia de fazer um xadrez quilombola, já que no currículo a gente tem a orientação de fazer jogo de tabuleiro. E nas conversas chegamos a conclusão de que precisávamos reconstruir o xadrez para que ele tivesse uma nova roupagem e linguagem”, acrescentou.
Confecção sustentável do tabuleiro
Para Primandade, é importante que o professor torne o processo educacional mais interessante para o aluno. Isso possibilita maior identificação, e no caso da escola da comunidade, falar a linguagem quilombola.
“Para que atendesse a realidade deles a gente falou de Zumbi dos Palmares, Dandara, dos escravos e toda essa luta que eles tiveram para chegar onde estão. Mas ainda há muito que precisa ser construído”, afirmou.
Uma das formas de valorizar as pessoas do quilombo foi a utilização dos seus saberes tradicionais. Por isso, a confecção do tabuleiro e das peças contou com a participação de alguns estudantes, que são quilombolas, e de seus familiares. Eles coletaram sementes e bagaço de cocos da região para criar um tabuleiro com materiais presentes na comunidade.
Portanto, os elementos de confecção do tabuleiro o tornam um produto sustentável. “O tabuleiro foi construído de retalhos de tecidos da própria comunidade que sobraram e muitas vezes iriam ser jogados fora. Então a partir da ideia da reutilização, da conservação e da preservação ambiental, a comunidade se sentiu envolvida”, contou Primandade.
Valorização da história
O componente sustentabilidade integrou o território da comunidade na produção do jogo e contribuiu para o objetivo de resgatar a cultura, a tradição e a história. A professora Gisele Andrade ficou feliz com o resultado do projeto e disse que os estudantes também receberam a ideia com entusiasmo.
“Eles receberam a proposta bem, pois antes já passava para os estudantes a importância da nossa história local e com isso despertou a curiosidade deles no jogo”, contou Gisele. “Através da inserção do xadrez quilombola na sala de aula, os alunos já tiveram palestras sobre a história do Quilombo dos Palmares, a importância da nossa história e cultura local e o conhecimento das funções de cada peça no xadrez”, celebrou.
Enquanto jogo de tabuleiro, a professora Gisele destacou que o xadrez quilombola contribui para a concentração e melhora o comportamento, o respeito e a convivência entre os estudantes.
“Ele tem um componente histórico para uma escola quilombola, que pode ressaltar nos estudantes valores éticos e morais quanto à questão do saber ganhar e perder e do respeito às regras, conduta estas imprescindíveis para a formação do caráter de uma pessoa, e essenciais para uma vida em sociedade”, afirmou.
Cultura e educação
O jogo pensado para uma escola quilombola tem potencial para ajudar outros estudantes em outras instituições de ensino das redes municipal e estadual do estado.
“Com esse jogo espero que as pessoas possam refletir sobre o enriquecimento cultural e a promulgação de gerações para gerações. É preciso ampliar a compreensão sobre o valor das relações humanas e estimular a visão otimista sobre o futuro”, disse Gisele.
Assim como ajuda em várias disciplinas, o jogo contribui com melhorias para o próprio processo educativo. E então funciona como auxílio ao modelo tradicional de ensino, aquele com exposição teórica e provas objetivas.
“Até cinco anos atrás, como Renato Russo diria, os professores estavam fazendo mais do mesmo. Então a gente precisa quebrar algumas barreiras de modelos tradicionais que existem para que a gente possa realmente atender as necessidades daquele aluno”, disse.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 04 – Educação de Qualidade.
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