Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

Etiópia: o caos da guerra invisível

No ano de 2005 foi fundada a Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), uma organização não governamental (ONG) independente que nasceu do projeto de coleta de dados, análise e mapeamento de crises. A entidade, que não tem fins lucrativos, está sediada em Winsconsin (EUA), e partiu da iniciativa da Doutora Clionadh Raleigh, professora de geografia política e conflito da Universidade de Sussex, na cidade de Brighton, Inglaterra.

Em sua pesquisa para o doutorado, a professora Raleigh se concentrou na dinâmica do conflito e da violência em ambientes políticos africanos e redes de elite. Assim, esse trabalho despertou seu interesse em criar uma entidade independente capaz de coletar e analisar informações sobre a ocorrência de variados conflitos, violências políticas e manifestações de protestos que se desenvolvem nas variadas regiões do planeta.

Anualmente, a ACLED seleciona 10 conflitos ou situações de crise que provavelmente se agravarão ao longo dos meses daquele ano. Ao avaliar esses casos críticos, busca-se identificar padrões de violência e a dinâmica do conflito que podem apontar para as possíveis consequências e seus impactos.

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No relatório deste ano, a ACLED identificou 10 focos em que a desordem política violenta, provavelmente, evoluiria ou pioraria ao longo do ano, são eles: Etiópia, Iêmen, Sahel, Nigéria, Afeganistão, Líbano, Sudão, Haiti, Colômbia e Mianmar. 

Convém destacar que quando ocorreu a publicação do relatório original, as tensões entre Rússia e Ucrânia ainda eram incertas e havia grande dúvida se desaguariam em um conflito efetivo. Porém, com a invasão russa, o quadro mudou sensivelmente. Assim, para acompanhar o desenrolar desse conflito no Leste europeu, a ACLED criou o Ukraine Crisis Hub, uma plataforma dedicada para coleta de dados e análises sobre o conflito.

O fato é que assim como a ACLED, existem outras organizações independentes ou oficiais que coletam preciosas informações sobre os conflitos em andamento e, até mesmo, aqueles que estão na iminência de eclodirem. A questão é: por que a mídia dedica mais atenção a determinados conflitos, praticamente deixando os demais em um “silêncio ensurdecedor”?

Tedros Adhanom Ghebreyesus. (Foto: OPAS)

Bem, não há dúvidas de que alguns acontecimentos têm repercussões mais amplas e impactos mais diretos e imediatos sobre os rumos do panorama internacional. Dessa forma, é compreensível a dita discriminação midiática. No entanto, na última semana, o biólogo etíope que ocupa, desde 2017, o cargo de diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, fez uma declaração, no mínimo, perturbadora.

No dia 17 de agosto, Ghebreyesus afirmou a jornalistas que, apesar do conflito na Ucrânia ser mais impactante diante da possibilidade de uma guerra nuclear, a situação no Tigré é muito pior e se configuraria como a maior crise humanitária da atualidade. Porém, segundo ele, a comunidade internacional ignora solenemente a questão:

“Eu não escutei nos últimos meses nenhum chefe de Estado falando da situação no Tigré em nenhum dos países desenvolvidos. Nenhum. Por quê? Talvez o motivo seja a cor da pele da população do Tigré”.

Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Realmente a situação do povo de Tigré é muito grave. O confronto que envolve, basicamente, o atual governo da Etiópia e seus aliados militares contra a Frente Popular para a Libertação de Tigré tem provocado sérias devastações na região norte do país, com milhares de mortos e a migração forçada de aproximadamente 2 milhões de pessoas.

A preocupação de Tedros Adhanom tem motivos diretamente pessoais, pois ele tem origem Tigré e foi ministro da Saúde da Etiópia, entre 2005 e 2012, quando o país era governado com a predominância da Frente Popular de Libertação de Tigré (FLPT). Contudo, isso não compromete suas afirmações, uma vez que a crise humanitária na região é uma realidade. O saldo da guerra tem sido o pior possível para a população de Tigré. São constantes os massacres de civis e um grave quadro crônico de fome após o governo etíope bloquear a possibilidade de ajuda alimentar para a região como forma de pressionar os rebeldes.

Compreender todos os elementos que envolvem o conflito na Etiópia não é tarefa fácil. Dessa maneira, acredito que um breve histórico possa nos auxiliar nesse desafio.

A Etiópia é caracterizada por uma composição étnica muito variada. Os principais grupos étnicos são os oromo, que correspondem a 40% da população, e os tigrinos ou tigray, com cerca de 6,2% do povo etíope. Cerca de metade da população total é cristã ortodoxa, mas há um número considerável de islâmicos.

Em 1991 chegou ao fim uma guerra civil na etiópia. A Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope organizou um governo de coalizão de base étnica. Nessa coalizão, durante 27 anos, o protagonismo foi da Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT).

A partir de 2018 a Frente de Libertação do Povo Tigré perdeu espaço político. O Partido Democrata Oromo chegou ao poder e empossou Abiy Ahmed Ali como primeiro-ministro. Filho de um muçulmano e uma cristã ortodoxa, Abiy Ahmed Ali é cristão pentecostal evangélico.

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No início de seu governo, Abiy fascinou o mundo com propostas de estabelecer uma gestão paritária com maior participação das mulheres na política. À época, o parlamento elegeu, por unanimidade, Sahle-Work Zewde, a primeira mulher presidente do país. Propôs também, a libertação de presos políticos, a paz com a vizinha Eritreia e profundas reformas no sistema federal de base étnica desde 1991. Toda essa performance inicial lhe rendeu o prêmio Nobel da Paz de 2019.

Todavia, com menos de três meses de governo, já havia descontentamentos. Não é nada fácil ou simples conciliar os interesses de um país tão divido etnicamente e com profundas divisões e singularidades étnicas e regionais. As lideranças de sua própria etnia, os oromo, passaram a considerá-lo como traidor, pois defendem a supremacia de sua etnia como identidade do Estado etíope. Já os tigré não aceitavam a mudança de governo e a perda do protagonismo político que ostentaram durante décadas. Os tigré passaram a hostilizar o governo e se organizaram em grupos rebeldes em seu território, no norte do país.

Em junho de 2018, durante um comício, houve um atentado, com granada, contra o primeiro-ministro. Mais de 100 pessoas ficaram feridas. Apesar de alegar que continuaria firme em sua missão de unir o país, passou a adotar uma repressão de forma dissimulada. Seu governo passou a perseguir opositores e restringir, sutilmente, a atuação da imprensa.

Mapa adapatado.

Em outubro de 2019 recebeu o prêmio Nobel da Paz, pois havia colocado em prática um acordo de paz com a vizinha Eritréia, que estava encalhado desde o ano 2.000. Mas, apenas dois meses depois de sua premiação, ele passou a atuar, abertamente, de forma bem distinta de sua proposta inicial. Eliminou a histórica Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope, que havia implantado o governo de colisão em 1991, e criou o Partido da Prosperidade (PP). Suas atitudes inflamaram ainda mais os ânimos de seus opositores, destacadamente da Frente de Libertação do Povo Tigré.

Desde então o quadro só tem se agravado e a perspectiva de um acordo parece improvável no momento. O governo tem recebido o apoio de grupos milicianos regionais, que, apesar de suas diferenças, temem o avanço dos grupos rebeldes de Tigré.

Quanto às preferências dos organismos internacionais ou da mídia em dedicar maior atenção a determinados conflitos em desfavor de tantos outros, a explicação não tem apenas um viés, mas, sem dúvida, o histórico de um criminoso desprezo da comunidade internacional com as questões que envolvem a África e seus povos está entre elas.

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