Arthur Barcelos
Arthur Barcelos
Apaixonado por futebol e geopolítica, é o especialista de futebol internacional da Sagres e neste espaço tem o objetivo de agregar os dois temas com curiosidades e histórias do mundo da bola.

Nelson Mandela e o exemplo do esporte como instrumento de transformação social

“O esporte tem o poder de mudar o mundo. Tem o poder de inspirar, de unir as pessoas de uma forma que poucas coisas conseguem. Fala aos jovens em uma linguagem que entendem. O esporte pode criar esperança onde antes só existia desespero. É mais poderoso do que os governos em quebrar as barreiras raciais, e ri na cara de todo tipo de discriminação”.

Foi assim que Nelson Mandela abriu o seu discurso na primeira edição do Prêmio Laureus, em 25 de maio de 2000, em Mônaco. A escolha pelo ativista político e ex-presidente da África do Sul para a inauguração da principal premiação destinada ao esporte mundial não foi em vão. Afinal de contas, “Madiba” foi um grande exemplo de como utilizar o esporte como um instrumento de transformação social.

Antes de se dedicar à vida política, Mandela teve um passado atleta através do boxe. Em sua autobiografia, admitiu não gostar da violência do esporte, mas pontuou que “o boxe é igualitário: no ringue, idade, cor e fortuna são irrelevantes. Nunca lutei depois que entrei para a política. Meu maior interesse era o treino: acho uma excelente forma de aliviar o estresse. Depois de um treino, me sentia mentalmente e fisicamente mais leve”.

A grande virtude de Mandela em relação ao esporte, no entanto, foi entender como usá-lo para mudar o seu país. Quando liberado da prisão em 1990 após 27 anos encarcerado, a África do Sul vivia o auge de uma guerra civil e do apartheid, política segregacionista que dividiu a nação. Mesmo com o apelo mundial sobre a causa e a liberação do ativista, a solução para os problemas ainda estava distante.

Foi em um estádio, o FNB Stadium – chamado Soccer City em 2010 -, em Joanesburgo, que Madiba realizou o seu primeiro discurso após ter saído da prisão. Dois anos depois, durante os Jogos Olímpicos de 1992, acompanhou a delegação sul-africana em Barcelona, quando afirmou que “o esporte desempenhará um papel muito importante na criação do clima certo para as discussões que estão acontecendo, ou que ainda acontecerão”.

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Em 1994, depois de reforma constitucional pós-apartheid, foi eleito o primeiro presidente da nova África do Sul. De toda forma, essa não foi a solução. O país seguia dividido, e Mandela usou o poder do esporte para unir, curar e construir uma nação. Ao sediar a Copa do Mundo de rúgbi de 1995, durante o seu primeiro ano de mandato, o político enxergou no evento uma forma de finalmente trazer união entre os sul-africanos.

Majoritariamente um esporte praticado pelos afrikaners – os descendentes de europeus instalados na África do Sul -, o rúgbi não era bem visto pelos negros. Na seleção sul-africana, o fullback Chester Williams era o único negro dos Springboks. O desempenho da equipe tampouco inspirava expectativa, já que teve uma preparação ruim e foi impedida de participar das duas primeiras edições do torneio por conta do apartheid.

Enfim aceita pela Federação Internacional de Rúgbi (IRFB) em 1992, a África do Sul se tornou a primeira sede integral da Copa do Mundo, com todos os jogos da competição em seu território. Mandela abraçou a equipe, e, com seu carisma, convenceu a população negra a apoiar o time, que iniciou o torneio com uma grande vitória sobre a rival Austrália, acompanhada por triunfos sobre Romênia e Canadá na fase de grupos.

Na fase final, depois de passar pela Samoa Americana, os anfitriões voltaram a surpreender e desbancaram a favorita França. Na decisão, já totalmente apoiada pelo país, a seleção sul-africana enfrentou a grande força do rúgbi, a Nova Zelândia. Depois de um empate no tempo regulamentar, os Springboks conseguiram o inédito título mundial com uma vitória histórica por 15 a 12 em um Ellis Park lotado.

“Nelson Mandela surgiu com aquela camisa número 6 dos Springboks nas costas... Um homem negro, que não só representava muito, mas que poderia facilmente não ter dado atenção aos Springboks, um símbolo do que foi potencialmente uma época muito injusta na África do Sul, mas que sabia o quão importante eram os Springboks não só para o rúgbi, mas para a melhoria do nosso país”.
- Bryan Habana, ex-vice-capitão da seleção de rúgbi da África do Sul

O winger Bryan Habana, 12 anos depois campeão mundial com os Springboks, e eleito o melhor jogador de rúgbi em 2007, foi inspirado pela cena em que Mandela, vestido com a camisa da seleção sul-africana do capitão Francois Pienaar, entrega ao líder do time a taça da Copa do Mundo, no dia 24 de junho de 1995.

“Eu estava lá e, como um garoto de 13 anos de idade, imediatamente comecei a sonhar, esperar e pensar como seria estar do outro lado da cerca. No ano seguinte, comecei a jogar rúgbi pela primeira vez por causa do que havia acontecido em 1995, e acho que foi um momento que mudou a direção em que eu estava indo e que trouxe esperança”, declarou o ex-jogador, natural de Joanesburgo.

No ano seguinte, Mandela voltou a protagonizar cenas parecidas, mas desta vez no futebol. Em 1996, a África do Sul se tornou sede da Copa Africana de Nações após a desistência do Quênia, e os Bafana Bafana também conquistaram o troféu pela primeira vez. Na grande final, diante de mais de 80 mil pessoas presentes no FNB Stadium, em Joanesburgo, vitória sobre a Tunísia por 2 a 0, com dois gols de Mark Williams.

Nelson Mandela posa com a taça da Copa do Mundo após o anúncio da Fifa da África do Sul como sede do Mundial de 2010, em Zurique, na Suíça, no dia 15 de maio de 2004 (Foto: Michael Probst/AP)

Na Copa do Mundo de futebol de 2010, Mandela fez a sua última aparição pública na final do torneio, em 11 de julho de 2010, de volta ao Soccer City uma vez mais, histórico estádio situado ao lado de Soweto, cidade profundamente marcada pelo apartheid. O Mundial de 2010 foi a primeira vez que uma nação africana sediou a principal competição de futebol, em que o ex-presidente sul-africano foi um grande incentivador.

Nelson Mandela é um grande símbolo da África do Sul, e a esperança proporcionada em 24 de junho de 1995 ainda repercute entre os principais atletas do país, como o velocista Akani Simbine, que perdeu o tio durante o apartheid. “Eu posso viver as coisas que meu tio não poderia viver, que a minha mãe não poderia viver: simplesmente viver em uma África do Sul melhor, e uma África do Sul onde todos nós podemos prosperar, e não apenas uma determinada raça”, ponderou o recordista africano nos 100 metros rasos.

O esporte tem o poder de mudar o mundo.

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