O governo federal conduz a troca do Programa Mais Médicos pelo Médicos pelo Brasil, ambos voltados para o envio de profissionais de saúde para regiões mais afastadas dos grandes centros, visando o atendimento das populações locais. Porém, uma das mudanças para que o médico possa se inscrever em um dos programas é a exigência do Registro CRM, emitido pelos conselhos regionais de medicina. Para ter acesso ao documento, médicos formados no exterior precisam revalidar o diploma no Brasil.

Em entrevista à Sagres, o médico Giovane Barros Guimarães, que atua no interior do Amazonas, na cidade de Coari, pelo Mais Médicos, contou que o contrato de trabalho se encerra no dia 28 de novembro e que, até o momento, diante do novo programa, não há sinalização do governo federal em fazer a renovação.

“Está só em fase de conclusão dos contratos vigentes que é para poder ser alterado para o Médicos pelo Brasil. Então, hoje, se não tiver o Revalida, não tem mais perspectiva de atuar como médico no país a partir do fim do contrato. Então, essa é a incerteza que muitos profissionais vivem hoje”, disse Giovane Barros.

Natural de Rio Branco, no Acre, o médico se mudou para Goiânia com os pais aos 15 anos. Para realizar o sonho, o profissional rumou para a Bolívia, aos 33 anos, para iniciar a graduação em Medicina. “Nunca tive oportunidade no Brasil, até por conta dos valores e pela idade que já tinha. Além disso, não tinha muito tempo para estudar para o vestibular e sei que o ingresso no curso de Medicina no Brasil é muito difícil, então resolvi estudar na Bolívia, para onde fui em 2009”, contou.

Foto: Bernardo Reis / Arquivo Pessoal

Mesmo com seis anos de atuação no país, o médico precisa correr atrás da revalidação do diploma para poder continuar trabalhando no Brasil. Por isso, Giovane aderiu ao processo de revalidação da Universidade de Gurupi (UnirG) e aguarda a aprovação dos documentos para poder trabalhar, “sem incertezas”, no país em que nasceu e cresceu.

Conforme o cronograma de revalidação simplificada da UnirG, disponibilizado após vários médicos acionarem a Justiça em busca do processo, o resultado provisório do Exame Preliminar dos pedidos de revalidação de diplomas deve ser divulgado no próximo dia 3 de maio, a partir das 14h. O resultado definitivo está previsto para 17 de maio, com a próxima etapa, a Análise de Mérito, que deve ser iniciada no dia seguinte. O resultado final do certame sairá apenas em 30 de junho.

Revalidação no Brasil

No Brasil, o médico formado tem três opções para buscar a revalidação do diploma. A primeira é o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira (Revalida), promovido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Para participar, o médico deve ter situação legal de residência no país e possuir diploma de universidade reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC) ou órgão equivalente no país onde o título foi emitido.

Outra exigência é a validação do diploma em autoridade consular brasileira, ou através do processo da Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, conforme o decreto Decreto n.º 8.660, de 29 de janeiro de 2016. Vale ressaltar que refugiados podem ter exceções. As inscrições para o Revalida 2022 foram abertas no dia 17 de janeiro. Em 2020, mais de 15 mil médicos se inscreveram e 1.087 foram aprovados. Já em 2021, foram 11.846 inscritos, com 6.026 aprovados na primeira fase. A segunda fase foi realizada em dezembro, mas ainda não teve resultado divulgado.

A revalidação também pode ser conquistada com exames feitos em instituições de ensino superior que tenham o curso, segundo a Portaria Normativa nº 22, de 13 de dezembro de 2016. As universidades podem abrir edital com a revalidação simplificada, em que os diplomas são validados através de análise dos documentos e a revalidação detalhada, com a realização de provas.

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Em contato com a advogada Isabelly Castro, que atende Giovane em relação ao processo de revalidação da UnirG, a advogada reafirmou a possibilidade de vários médicos deixarem de atuar no Brasil em função do fim do Programa Mais Médicos.

“A maioria das vagas do Mais Médicos é para atuar em medicina familiar em cidades do interior, onde os médicos brasileiros e com CRM não costumam atender, porque não querem deixar seu conforto nas grandes cidades, onde não lhes falta vaga para atuar. Mas com a alteração para o Médicos pelo Brasil foi retirada qualquer possibilidade de médicos estrangeiros ou intercambistas participarem, já que para atuar no programa precisa ter CRM”, detalhou.

Isabely explicou ainda que a maioria dos clientes dela são lotados no atual programa. “É por isso que eles têm dinheiro para buscar a revalidação por processo judicial, porque acaba que é um gasto considerável. Essa revalidação na UnirG custa, para cada um, ao menos R$ 6 mil”, afirmou.

Mais Médicos

O programa foi criado em julho de 2013 com o objetivo de “enfrentar a escassez de médicos, que dificultava a universalização do acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS)”, conforme o Ministério da Saúde, à época. Além de médicos brasileiros formados no exterior, também houve um acordo com o governo de Cuba para que médicos cubanos pudessem trabalhar no país.

O programa selecionou os profissionais através de chamamento público e distribuiu os profissionais em cidades do país, com a disponibilização de mais médicos em municípios afastados dos grandes centros. Para trabalhar, não era necessário possuir o registro CRM, feito nos conselhos regionais de medicina.

Giovane detalhou que durante seu primeiro contrato, de 2016 a 2019, foi acompanhado de mais 11 médicos, todos cubanos. A partir da renovação, em 2019, apenas médicos brasileiros retornaram para o local.

Médicos pelo Brasil

O programa Médicos pelo Brasil, criado pelo governo federal em 2019 para substituir o Mais Médicos também visa atender os vazios assistenciais pelo Brasil. Sua forma de seleção se dá por meio de processo seletivo. O Programa é operacionalizado pela Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps) com supervisão do Ministério da Saúde.

A principal diferença entre os programas está na necessidade da apresentação do registro CRM para poder se cadastrar. Para ter acesso ao Registro é necessário ter o diploma revalidado no Brasil. Ou seja, médicos que atendem no programa Mais Médicos, mesmo com a experiência no país e a especialização em medicina de família e comunidade, podem acabar de fora.

Covid

A partir de 2020, Giovane e toda a equipe médica em Coari tiveram que lidar com a pandemia de Covid-19, assim como o restante do Brasil. “Tive experiência profissional muito boa, porém, a humana foi muito difícil porque a pandemia nos pegou de surpresa, sem estarmos preparados e sem conhecermos o que estávamos enfrentando”, declarou.

Para o médico, lidar com uma doença desconhecida – que o mundo ainda tentava entender – em uma cidade mais isolada foi complicado. “Aqui no Amazonas nós sofremos muito em questão da primeira e segunda onda. Tivemos a falta de oxigênio e, inclusive, no nosso município, perdemos oito pacientes em uma só noite por falta de oxigênio”, lamentou.

No momento do fechamento da matéria, nesta sexta (8), Coari não registrava óbitos pela doença há 10 dias, tinha apenas quatro casos ativos e duas internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). O médico contou que a vacinação foi determinante e que a campanha avançou bem na cidade. “Foi baixado um decreto. As pessoas só poderiam acessar locais públicos se já tivessem vacinadas. Então, todo mundo correu para se vacinar e a adesão tem sido muito favorável, mesmo tendo aqueles que pensam de forma contrária, por motivação religiosa e até política”, disse o médico.

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Com avanço rápido da vacinação, Coari, com 85.910 habitantes, foi a maior cidade a ficar um mês sem registrar mortes em julho de 2021. O município, que fica a 450 quilômetros de Manaus, registrou, desde o início da pandemia 11.307 casos, com 242 mortes, conforme dados da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) e do Departamento de Vigilância em Saúde (Devisa).

Unidade Básica de Saúde (UBS) Fluvial, utilizada para ir às comunidades ribeirinhas – Foto: Bernardo Reis / Arquivo pessoal

“É só quem ama o que faz”

Giovane aguarda retorno da UnirG sobre seu processo. O médico relatou o cansaço de viver com a incerteza sobre a continuidade ou não da atuação na área de formação. “Depois disso tudo, não poder atuar mais, porque sem o CRM, sem o registro, sem a revalidação do diploma, você é taxado como um falso médico […] Essa luta é só de quem ama a profissão, ama o que faz. A gente está no meio da floresta, nessa incerteza de amanhã estar empregado ou não e correndo, trabalhando e estudando”, desabafou.

Sem respostas

A reportagem entrou em contato com a Universidade Federal de Goiás (UFG), acerca da possibilidade da instituição realizar um processo de validação no Estado para facilitar o acesso, mas não obteve respostas. No site da Universidade consta a seguinte mensagem: “UFG não recebe requerimentos para revalidação de diplomas de Medicina obtidos no exterior, pois em 2011 aderiu ao Revalida – Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira, projeto conduzido pelo INEP”.

O Conselho Nacional de Medicina também recebeu questionamentos da reportagem da Sagres, mas, da mesma forma, não retornou o contato. O espaço segue aberto.