Um dos impactos gerados pelas alterações no currículo de disciplinas no chamado Novo Ensino Médio é a redução do tempo destinado a disciplinas como Literatura, Filosofia e Sociologia. Na prática, alunos veem o número de horas destinadas às matérias cair, sobretudo em escolas que não funcionam em regime de tempo integral.
Para especialistas no ensino de Literatura, os efeitos são notáveis e colocam em risco a formação de uma consciência mais crítica e aberta para mudanças. Nos últimos anos, exames de ampla escala demonstram que o Brasil apresenta estagnação em competências ligadas à leitura, interpretação e compreensão de texto.
Papel social
“Para além de entender quem foram os nossos grandes escritores e entender o nosso tempo, a Literatura pode ter um grande papel humanizador e transformador de si e da sociedade”, explica a professora de Português e Literatura, e mestre pela Universidade de São Paulo (USP), Luana Chnaiderman.
Para ela, o papel do ensino da Literatura na sala de aula é insubstituível. Isso porque em diversos contextos, o momento da escola é o único em que adolescentes entram em contato com as temáticas levantadas pelas narrativas.
Além disso, a professora comenta que o contexto atual, marcado por discursos como fake news e desinformação, reflete a necessidade que os alunos aprendam conceitos como “verossimelhança”. Ou seja, compreender aquilo que realmente pode ser adotado como verdade.
“Com a retirada da Literatura existe uma enorme perda de possibilidade de se olhar pro mundo e de se pensar a si próprio. De se pensar modelos e exemplos de vida, que inclusive podem gerar identificação. Não tem nada que substitua isso. Além disso, a Literatura ensina a gente a ler. Isso é cidadania”, defende Chnaiderman.
Formação de leitores
“A Literatura, assim como a Língua Portuguesa, ela é viva. É mutável, coisas novas vão sendo criadas, novos tempos criam novas obras, leituras e novos leitores. É um ciclo”, explica Luana. Para ela, grande parte do poder da Literatura reside justamente em sua diversidade. Assim como o mundo se movimenta, os títulos nas estantes, sejam físicas ou virtuais, também se atualizam.
“Tem uma coisa bonita na leitura de Literatura porque ela representa uma época e ao mesmo tempo, tem um poder também transformador da época em que está”, contextualiza.
Apesar do senso comum de que jovens e livros não costumam ser uma combinação frequente, a professora explica que a dificuldade de acesso às leituras e o contexto atual que oferece estímulos intensos, são exemplos que impactam de forma direta o aparente desinteresse.
“Todos nós no mundo contemporâneo, e falo como professora, temos o desafio de saber onde colocar a leitura em meio ao nosso dia a dia. Estamos em um mundo muito invadido por outras possibilidades de ocupação da cabeça. E também por outras fontes narrativas”, afirma.
Nesse sentido, ela cita uma lista de exemplos como vídeos rápidos no Instagram, o mundo de histórias curtas no TikTok, podcasts, e os roteiros envolventes dos jogos eletrônicos. Assim, o domínio desses elementos na rotina das pessoas, segundo Luana, demonstra que as narrativas continuam sendo desejadas e indispensáveis.
“É do ser humano trocar experiências… é do ser humano imaginar. Então, as narrativas nunca vão deixar de existir”, sinaliza.
Barreiras
“Eu não acho que é uma questão de gostar ou não de ler, é uma questão de muita oferta. E no meio dessas ofertas, a nossa capacidade de foco, atenção, concentração e de silêncio que a leitura exige, está menor”, reflete.
Segundo a professora, não se trata de classificar tipos de narrativas como melhores ou piores. Não é preciso excluir um novo formato para justificar a presença de um livro.
“É importante também dessacralizar o livro. Assim, se eu falo de games e de Tiktok, eu falo de colocar o livro do lado, como algo mais do dia a dia, como parte da nossa vida. Além disso, muitas vezes como adultos reclamamos que os jovens não leem, mas será que lemos? Os jovens nos veem lendo?”, indaga.
“Temos que tirar o livro deste platô sagrado de ‘leia e se tornará mais culto e melhor’, talvez assim, outras pessoas possam dar mais chance aos livros”, estimula.
Escola
“A escola por vezes torna difícil o desenvolvimento do prazer literário”, afirma Luana. Para ela, muitos alunos podem enxergar nos livros apenas materiais que servirão como base para provas avaliativas. Assim, quando lerem, é para “passar de ano”.
“Por outro lado, para muitas crianças, se a escola não apresentar essa outra possibilidade de curtir uma narrativa escrita, elas não vão conhecer. Então, a escola está virando um guardião. Como um espaço onde ainda se pode ler e conversar sobre leitura”, reflete.
Nesse sentido, a professora explica que é preciso conciliar tradição e novas “vozes” dentro das salas de aula. “Acredito que nós como professores temos que pensar em maneiras de fugir dessa noção de ler apenas para fazer uma prova e passar de ano. Pensar estratégias de conversa, seminário, reescrita, debate e encenação, por exemplo”, cita.
Assim, em um cenário onde o tempo para as aulas é limitado, a ausência de contato com o diferente também aparece como um dos efeitos mais latentes.
“A Literatura tem um papel muito legal de promover estranhamento e contato com o outro. Não temos que ler apenas aquilo que nos é familiar e próximo. Cada vez surgem autores mulheres, negros e muita coisa boa que antes era mais difícil de ser publicado”, explica.
Educação
Em um momento em que o futuro do Ensino Médio continua em debate, é possível pensar em novas possibilidades apresentadas ao ensino da Literatura, bem como em caminhos para a valorização da disciplina.
A seguir, confira na íntegra a entrevista do Sagres Online com a doutora e mestra em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Maria Celeste de Souza. Atualmente, ela trabalha com projetos em redes públicas e privadas, ligados ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e círculos de leitura.
Sagres Online: De que forma a literatura deve ser trabalhada pela educação básica?
Não sei se há uma única forma de trabalhar a literatura na educação básica. Primeiramente, é necessário considerar as diferentes etapas de inserção social que marcam o desenvolvimento escolar: os primeiros anos da Educação Infantil (até os 5 anos), os anos que marcam o ciclo de alfabetização (entre 6 e 8 anos); depois há os anos finais da infância (9 aos 11) e a adolescência (12 a 18 anos). Todavia, pode-se afirmar que o núcleo do ensino de literatura é o contato dos estudantes com as obras (e não apenas textos ou excertos). Assim, os desafios são inerentes à literatura como a todas as formas de arte nos momentos em que a técnica e um certo viés da razão ocupam o centro da educação escolar.
Sagres Online: Qual a importância de que sejam valorizadas obras da literatura brasileira no processo de aprendizagem dos alunos?
A rigor, não se trata de valorizar as obras da literatura brasileira, mas ajudar os estudantes a reconhecer que a literatura brasileira é um importante manancial de conhecimento da sociedade brasileira. Se atualmente, questiona-se a centralidade da literatura produzida pela elite que se ocupou de criar imagens de mulheres e homens brasileiros desde o século XIX é porque ao longo dos séculos outros brasileiros, os nativos e os africanos escravizados, também produziram imagens do Brasil que precisam ser conhecidas e estudadas. Isso significa que a literatura é um modo de compreensão da vida social e dos valores que regem a vida das famílias e dos indivíduos, porque, finalmente, as literaturas falam da vida.
Sagres Online: O que as aulas de Literatura podem gerar nos alunos? Do ponto de vista da aprendizagem, mas também de competências que vão além da sala de aula.
Boas aulas de literatura podem desenvolver conhecimentos sobre a vida, como disse antes. Ler ensina a compreender o ser humano em suas várias dimensões: naquelas em que somos amáveis e em outras em que somos frágeis, incompletos, temíveis… E tudo o que somos está expresso na cultura, principalmente, nas obras de arte em que o trabalho de linguagem nos ensina a elaborar e extrair sínteses temporárias do significado de ser humano. Muito mais que uma competência, essa sensibilidade é a essência de uma educação que visa a ensinar o respeito pela Terra e por todos os seres vivos, fazendo ver que nenhuma pode viver isoladamente sem interagir e compartilhar o que alcança com as outras. Acho que é isso o que diz Drummond em Canção Amiga:
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 4 – Educação de Qualidade.
Leia mais: