Um sonho interrompido por uma guerra. Em janeiro de 2021, quando se transferiu do Vila Nova para a Ucrânia, Talles não fazia ideia do que passaria um ano depois na nova casa. Da realização do sonho de jogar no futebol europeu para fugir de um país em guerra, o atacante mineiro ganhou uma experiência incrível – e traumática – para contar.

Destaque do Vila Nova na temporada 2020, titular na campanha que levou o clube colorado ao título da Série C e o retorno à segunda divisão do Campeonato Brasileiro, Talles Brener de Paula desembarcou pela primeira vez no Velho Continente em fevereiro do ano passado, recém-negociado com o Olimpik Donetsk, da Ucrânia.

Como muitos compatriotas do Shakhtar, o atacante natural de Divinópolis (MG), hoje com 23 anos, chegou ao novo clube sem conhecer a sua verdadeira casa, afastada pela guerra na região de Donbas, no leste ucraniano, desde 2014. De Goiânia direto para a capital Kiev, mal sabia o brasileiro o destino que teria que tomar 12 meses depois.

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Após um semestre com o Olimpik Donetsk, Talles se transferiu para o Rukh Lviv na nova temporada. Com contrato até junho de 2025, o atacante se estabeleceu na maior cidade do oeste do país, próxima da fronteira com a Polônia e hoje ponto de refúgio para muitos. Tudo por conta da invasão da Rússia ao território ucraniano na última quinta-feira (24).

Atacante Talles durante apresentação no Rukh Lviv, clube que defende desde agosto (Foto: Divulgação/FK Rukh Lviv)

Como a maior parte da população de Lviv, cuja população na região metropolitana é de cerca de 800 mil pessoas, o jogador brasileiro e a sua namorada, a goiana Jessyka Ariani, não acordaram ao som de bombas. Pelo contrário, levantaram-se assustados com as notícias oriundas de Kiev e das cidades atacadas por Moscou naquela manhã.

Em entrevista à Sagres, o casal relatou a complicada e dramática viagem para fugir da guerra ao lado de outro jogador brasileiro, Edson, volante ex-Bahia de 23 anos, e também do argentino Fabricio Alvarenga, de 26 anos, este acompanhado de sua esposa, filha recém-nascida e o animal de estimação da família.

Missão concluída com sucesso depois dos cinco dias mais longos de suas vidas, e com a improvável ajuda de brasileiros que se arriscaram a sair de outros países da Europa para ajudar os compatriotas na Ucrânia. No caso de Talles e seus amigos, a mão amiga veio de Clara Magalhães, uma das responsáveis pelo grupo Frente BrazUcra.

As primeiras horas de tensão

Em meio aos ataques a cidades como Kiev, Kharkiv e Odessa logo na manhã de quinta-feira, distantes de Lviv, Jessyka ressaltou que “a cidade em que morávamos não foi invadida. Teoricamente, era a mais segura da Ucrânia, então, querendo ou não, tínhamos a tranquilidade de pensar melhor antes de tomar qualquer atitude”.

“Fomos ao supermercado, e muitos já estavam com quase nada, e também trocamos dinheiro, porque tínhamos uma quantidade da moeda de lá, e se fugíssemos precisaríamos de euro. Voltamos e nos trancamos em casa, esperando uma posição do clube, porque também não poderíamos tomar uma atitude sem o respaldo do trabalho do Talles”, relatou.

De acordo com Talles, “até então, seriam dois períodos de treino no dia. Na noite anterior, tiraram um período. Iríamos treinar apenas pela manhã e, como teve o bombardeio, cancelaram. Já bateu o nervosismo, saímos na rua e vimos o movimento, com postos de gasolina cheios e muitos policiais nas ruas”.

“Foi uma coisa que nos deixou bem assustados no momento. Esperamos alguém comunicar através do tradutor, que inclusive falou que ‘o clube ainda não sabe o que fazer, mas fiquem em alerta. Deixem as suas coisas prontas, porque a qualquer momento podem precisar fugir do país’”, narrou o atacante.

Já no final da tarde, o Rukh Lviv comunicou aos estrangeiros do elenco que uma van os levaria até a fronteira com a Polônia, na cidade de Medyka, a 80 km de Lviv. “Eles nos levariam para a fronteira mais próxima, mas não atravessariam, porque o motorista da van é ucraniano, e ucraniano não pode sair do país”, explicou Jessyka.

A caótica fronteira entre Polônia e Ucrânia na barreira da cidade polonesa de Medyka (Foto: Arquivo pessoal)

Com milhares de habitantes da região com o mesmo destino, o deslocamento para a fronteira levou a um longo congestionamento. Sem o trânsito andar, o grupo optou por abandonar o veículo e se deslocar a pé até a barreira, a 16 km de distância. No entanto, “estava muito desorganizado, tinha muita gente”.

“O exército ucraniano não estava preparado para a quantidade de gente. Eles não conseguiram se organizar e o ambiente começou a ficar perigoso, porque as pessoas ficaram estressadas. Eu nunca tinha visto tanta gente na minha vida em um lugar só. Ficamos na fila por quatro dias e não conseguimos passar”, contou Jessyka.

De acordo com a goiana, “conversando em português entre nós, um rapaz do nosso lado, que entendia português, começou a conversar e falou que poderia conseguir uma vaga em um ônibus para duas pessoas”. Coube ao argentino Alvarenga – de muletas por conta de uma lesão sofrida há pouco tempo – e a sua família embarcarem no veículo.

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Segundo Jessyka, “ficamos eu, Talles e Edson. Tentamos e não conseguimos, até que chegou um momento em que desistimos e falamos ‘vamos embora para casa. Se está perigoso aqui e está perigoso em casa, é melhor passarmos perigo em casa. Pelo menos temos uma cama para deitar e um banheiro para tomar banho’”.

Em meio a um desencontro com um taxista que levaria o grupo de volta à Lviv, “passamos por um carro. O Talles olhou e tinha uma bandeira do Brasil e começou a acenar. A moça abriu o vidro e perguntou: ‘você é a Jessyka?’, e eu já comecei a chorar. Um dia antes, nesse grupo de brasileiras na Ucrânia, falaram da nossa situação na Polônia”.

Jessyka, Talles e Edson foram três dos vários brasileiros salvos por Clara e o grupo Frente BrazUcra (Foto: Arquivo pessoal)

Acolhidos por Clara, o trio partiu para outra fronteira por conta do longo engarrafamento na entrada da Polônia. O outro país mais próximo era a Eslováquia, contudo, “quando chegamos na fronteira, estava um congestionamento de quase 60 km”. A nova alternativa para fugir da Ucrânia foi a Hungria, cuja travessia mais próxima estava a 70 km.

Também com muito congestionamento, embora menor, os brasileiros tiveram de esperar 16 horas para que a fronteira húngara fosse aberta na cidade de Záhony. Na manhã seguinte, a sonhada saída do território ucraniano. “Foi um sentimento de alívio e gratidão à Deus por ter nos sustentado esse tempo todo sendo fortes”, afirmou Jessyka.

Ao lado de seu namorado Talles e do agora amigo Edson, a goiana reforçou que “fomos muito fortes, e a única explicação foi Deus, que nos sustentou ali, porque vimos cenas absurdas e passamos por momentos absurdos. Nós três, um apoiando o outro. Quando um estressava, o outro acalmava. Quando um chorava, o outro acolhia”.

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Na fuga da Ucrânia, o casal Jessyka e Talles passou por momentos inimagináveis (Foto: Arquivo pessoal)

Hoje na capital húngara Budapeste, o casal aguarda um posicionamento do Rukh Lviv para definirem o seu futuro. “No momento, é difícil até para eles, porque a qualquer momento podem ser recrutados para ajudar o país, e não tem como ficar em cima para resolver a minha situação. Estamos esperando alguma novidade”, ressaltou Talles.

Com mais três anos de contrato com o clube ucraniano, o atacante afirmou que “queremos, sim, retornar ao Brasil para ver os nossos familiares, mas não sei dizer (quando acontecerá). Estamos aguardando alguma resposta oficial do clube em relação ao contrato e o que planejam, mas ainda realmente não sei”.

Grato pela passagem no Vila Nova em 2020, Talles afirmou que “seria uma grande possibilidade de retornar ao Vila, um clube em que, graças a Deus, pude ser muito feliz, conquistando o acesso e sendo campeão também. Foi de onde saí para o mercado europeu, que era o que eu realmente queria”.

“Seria uma ótima possibilidade, sim, mas ainda não tem nada certo. Não tem como falar com os diretores do clube, então acredito que temos que esperar alguns dias para tentar definir isso o quanto antes”, completou o jogador de 23 anos, que, ao lado da namorada Jessyka, não sabe se um dia voltarão a morar na Ucrânia.

Segundo o mineiro, “até então, estamos divididos. Foi uma situação muito difícil e esperamos que isso termine logo, porque o país tem que se reerguer”. Já a goiana frisou que “as pessoas não merecem o que estão passando. Ficamos muito divididos (sobre voltar), porque gostamos muito de lá, mas ainda estamos um pouco abalados por dentro”.