*Texto e entrevista feitos em parceria com o site “Pipoca com Pequi”, também acessível em:
 https://pipocacompequi.tumblr.com/post/178213489069/entrevista-o-diretor-daniel-nolasco-fala

 

Cena de “Paulistas” (2018), de Daniel Nolasco

Para quem não assistiu ainda a “Paulistas” (2018), o primeiro longa-metragem de Daniel Nolasco, as duas principais imagens de divulgação podem causar certo calafrio pela tensão que  evocam. 

A primeira, do pôster oficial inclusive, mostra uma televisão perfurada por tiros de espingarda, abandonada no meio do cerrado. A segunda, três jovens pilotando motos de rally, escondidos detrás de seus capacetes, devassando a vegetação nativa do campo.  

E é isso mesmo. De modo sutil, Nolasco veio trazer a tensão. Propor uma discussão complicada, mas necessária, sobre a dialética natural envolvendo o “novo x velho”, “antigo x moderno”.

O palco são as regiões de Paulistas e Soledade, no sul de Goiás. Em linhas gerais, a sinopse oficial do filme diz que não existem mais jovens nesses lugares, porque o êxodo rural intensificado com a expansão da monocultura e a exploração dos recursos hídricos – inclusive com a instalação de uma usina – provocou migrações em massa. Especialmente deles, os jovens.

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Pôster oficial de “Paulistas” (2018)

Quem tem raízes na região, entretanto, permanece regressando sempre para visitar os familiares. E é aproveitando esse movimento pendular que Daniel lança seu olhar sobre os contrastes entre aqueles que preferiram recorrer às cidades próximas para ganhar a vida, e os que não quiseram abandonar a rotina que já levavam no campo. O avanço tecnológico é a linha que usa para coser essas duas realidades.

Lançado no início do ano pela Sessão Vitrine Petrobrás, “Paulistas” acaba de ser disponibilizado nas plataformas de streaming. E aproveitando essa deixa, batemos um papo com Daniel Nolasco, que explica um pouco mais sobre o universo do filme. Você confere a entrevista na íntegra a seguir.


[ENTREVISTA]

João Paulo Tito: Em Goiás, muita gente tem ligação com a realidade do interior ainda, seja por ter familiares morando em pequenas cidades, seja por conviver, conhecer ou mesmo possuir um sítio. De modo que esse aspecto sentimental, inerente a um Estado com forte tradição ruralista como Goiás, parece ter escapado à análise de muitos críticos Brasil afora. Tendo em vista o fato de a família Nolasco ser a protagonista da obra, o quanto de nostalgia e de experiências suas, pessoais, existe no filme?

Daniel Nolasco: Eu nasci no Paulistas e fiz essa mesma trajetória que os meninos no filme – me mudei para Catalão e nas férias escolares voltava para visitar os parentes que ainda moravam na região. Dessa forma, o universo que o filme aborda e os sentimentos evocados são experiências muito próximas para mim. Apesar do filme em vários momentos criar cenas que possuem uma melancolia, eu não acho que o filme seja nostálgico; aliás, isso foi algo que tentei evitar durante a realização. Porque a nostalgia, para mim, evoca uma visão romântica do campo, ou do que eu chamo do campo místico, que quase sempre resulta em uma idealização dessa realidade.

Sobre essa questão que você coloca, do campo ter escapado à análise da crítica no Brasil, eu penso que isso é resultado de duas coisas: A primeira é que o campo, a população rural, a problemática da terra não é umas das pautas principais do momento. Existem várias outras questões que sinto que parecem ocupar mais atenção de críticos, cineastas e intelectuais. A segunda, que acaba sendo uma resposta do porquê a primeira acontece, é que essa realidade está “distante” dos problemas que o eixo Rio-São Paulo enfrenta diretamente. E pela minha própria experiência, penso que o centro só tem olhos para as questões que ele lida diretamente, sendo quase incapaz de pensar um outro Brasil, e outras realidades que não o refletem ou que não esteja voltado para ele. 

João Paulo Tito: O som, um aspecto importantíssimo no filme, nos retrata de forma mais concreta – ainda que também metafórica – a intromissão da modernidade naquele ambiente bucólico do interior. Como esse som foi pensado e desenvolvido no projeto?

Daniel Nolasco: Desde o desenvolvimento do projeto decidimos não utilizar nem entrevistas com as personagens e/ou especialistas, ou colocar algum tipo de narrador que oriente o espectador ao longo do filme. Isso gerou um problema – como colocar todas as tensões que existem na região que acreditávamos interessantes para narrativa? A principal delas é essa questão da modernidade, e as contradições que ela gera. Uma das soluções que encontramos foi a utilização do som tanto como comentário em algumas passagens, quanto para acentuar algumas questões. Todo o som do filme foi feito durante as filmagens, até mesmo os ruídos que aparecem em algumas sequências, como na cena das taperas. Uma das intenções do “Paulistas” era fazer o registro dessa região, e que isso tinha que ir além da imagem. Dessa forma, o som seguiu essa proposta. Por exemplo, devido aos agrotóxicos das lavouras existem poucos insetos, como os grilos. Então, as noites são muito silenciosas. Durante a edição de som e mixagem trouxemos essas texturas sonoras para trilha, o que resultou em filme que tem momentos bem ruidosos e outros bem calmos. 

 

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Cena de “Paulistas” (2018)

João Paulo Tito: Além do som, símbolo dessa quebra entre o bucólico e o moderno, a imagem, capturada por você, também é um personagem em si, na medida em que também altera o modo natural de viver das pessoas retratadas. A preocupação do Seu Wander em tocar o violão corretamente, inclusive conversando com você, é um exemplo dessa intromissão da câmera, do olhar externo. Como foi seu processo de filmagem, nesse sentido? Quais as dificuldades para manter a forma de documentário observacional, principalmente dentro da sua própria família? O quanto de real e espontâneo existe no filme?

Daniel Nolasco: O filme teve uma pesquisa bastante longa e durante esse processo resolvemos fazer um curta, o “Febre da Madeira”, para saber como seria a interação das personagens com a câmera. Durante um tempo achei que fazer o curta tinha sido um erro, porque pensava que quando voltássemos para filmar o “Paulistas” as personagens iram achar que estávamos fazendo o mesmo filme de novo. Quando começamos a filmar percebi o contrário; o fato de fazer o curta fez com que as personagens tivessem uma noção de como funciona um set. Com relação às personagens jovens têm um fator extra que facilitou muito o processo – o celular e o fato deles estarem sempre se fotografando ou fazendo vídeos deles mesmos ou dos amigos.

Todas as ações que estão no filme são coisas que as personagens fazem cotidianamente tanto no Paulistas quanto na Soledade. O que aconteceu muito foi de combinar com as personagens a forma de como filmar algumas cenas. Por exemplo, a cena do Rafael falando no celular com a namorada – aquilo era algo que ele fazia todos os dias, quando chegou o momento de filmar combinei com ele qual seria a melhor forma de construir a cena. Então é uma cena documental, mas que tem uma decupagem e montagem que lembra muito uma estética mais associada ao cinema dito de ficção.

João Paulo Tito: Doeu muito cortar a versão completa da canção do seu Wander, com o assobio direitinho, para manter-se firme ao propósito do projeto inicial (risos)?

Daniel Nolasco: Essa cena foi a última que gravamos. Durante o tempo que passamos lá, era comum ver o Wander tocando violão no final do dia. Quando eu propus para ele a cena, ele pediu alguns dias para se preparar. Quando fomos gravar aconteceu isso: ele sempre esquecia a letra e pedia pra recomeçar. Na edição, percebemos como esse esquecimento da letra de uma música sertaneja dizia muito sobre a realidade do Paulistas. Com relação ao corte do último momento dele tocando a música, depois do assobio ele erra novamente a letra, assim o corte antes disso foi exatamente para criar a sensação que, talvez, agora podia dar certo.


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Cena de “Paulistas” (2018)

João Paulo Tito: Você acredita que a força do filme esteja mais nas contradições evidentes entre o jovem e o velho e a visão de mundo de cada um sobre, por exemplo, trabalho e tecnologia, ou acredita que está no lado conciliador, na medida em que mostra a convivência harmônica entre o jovem e o velho – também essa relação como característica daquela comunidade do Paulistas?

Daniel Nolasco: Para mim, o mais interessante do filme, é como ele deixa em aberto essas questões entre a modernidade, representada principalmente pela tecnologia, e um modo mais “tradicional” de se viver no campo. Essas questões aparecem principalmente como os jovens que vêm da cidade lidam com a paisagem, com o tempo ocioso e o trabalho braçal. Durante a pesquisa percebi que a relação dos personagens com a tecnologia possuía várias nuances e contradições. Percebi que a chegada da eletricidade, do sinal de telefone, das máquinas, etc., facilitaram o trabalho na região, ao mesmo tempo que provocou um efeito colateral danoso, principalmente por causa do impacto ambiental. Também provocou uma mudança na dinâmica do trabalho no campo, que levou ao êxodo rural, e que resultou na situação que temos no Paulistas e na Soledade hoje – em que não há mais jovens morando na região. Quando os meninos chegaram durante as filmagens com seusmartphones, computadores, etc., ficou muito claro que aqueles personagens tinham uma ligação muito diferente com a tecnologia, se comparado com as pessoas mais velhas. Então, resolvemos trazer isso para filme e na montagem procuramos criar esses contrapontos entre as diversas formas de se relacionar com a tecnologia, e os efeitos dela na região.

João Paulo Tito: Sabemos que a realidade da produção audiovisual em Goiás é bastante áspera, tanto em questão de financiamento quanto escoamento. Quais as dificuldades que você teve para produzir a obra?

Daniel Nolasco: Quando iniciamos o projeto tentamos viabilizar o filme pelos meios mais tradicionais de fomento, principalmente, colocando o projeto em editais. Mas nunca conseguimos um retorno positivo. Como as transformações no Paulistas são constantes, o filme tinha uma certa urgência para ser feito, porque se esperássemos demais as personagens poderiam não estar mais ali. Então, resolvemos fazer o filme sem grana mesmo e contando com a ajuda de várias pessoas que se interessaram e acreditaram no projeto. Com relação à distribuição, o filme foi lançado comercialmente pela Sessão Vitrine Petrobrás, que sempre lança filmes produzidos fora do eixo Rio-São Paulo. O “Taego Ãwa” do Henrique Borela e da Marcela Borela, tanto foi distribuído dentro da Sessão Vitrine. A distribuição dos filmes não é só uma questão para os filmes feitos fora dos tradicionais centros de produção; acho que é uma problemática para os filmes nacionais como um todo. Então, os filmes quase sempre são distribuídos em um circuito bem restrito.

João Paulo Tito: Como foi para encontrar a equipe que você considerou ideal para produzir? 

Daniel Nolasco: Quase toda a equipe foi composta por pessoas que eu já tinha trabalhado em outros projetos. São profissionais que acredito muito no trabalho, além de serem amigos e parceiros na vida. No set eram apenas três pessoas, eu, o Larry Machado, que fez a fotografia, o Felipe Carneiro e a Nara Sodré, que se revezaram fazendo o som direto. Essa equipe reduzida foi fundamental para conseguirmos fazer o filme da forma que desejávamos. O filme é uma co-produção entre a Panaceia Filmes, que é uma produtora de Goiás, e a Estúdio Giz, que é do Rio de Janeiro. Eu já havia trabalhado com ambas em outros projetos. Essa co-produção também ajudou muito na realização do filme, já que ele foi produzido em Catalão, mas a finalização foi feita no Rio de Janeiro.

João Paulo Tito: É a sua primeira experiência no documentário? O resultado do projeto atendeu às suas expectativas? Quais os seus próximos projetos?

Daniel Nolasco: “Paulistas” foi o meu primeiro longa-metragem, mas já tinha feito alguns curtas que são documentários, como o “Febre da Madeira”, o “Tatame” e o “Plutão”. Os dois primeiros têm essa observação: o uso do cinema direto e uma proposta de encenação da realidade. Como o filme foi feito sem financiamento e sobre pessoas muito próximas, considero o resultado regular. Mas é um filme que aliena parte do público, principalmente, se levarmos em consideração a diversidade do público que pode ter acesso ao filme. Como a narrativa não se preocupa em explicar vários aspectos da região, acredito que pessoas que não conhecem muito a realidade do campo e do interior de Goiás fiquem muito distanciadas dos temas, das personagens e das questões que colocamos no filme. Acho que, para essas pessoas, o filme não passa de uma sequências de situações rotineiras montadas em ordem aleatória. 

Sobre meus próximos projetos, atualmente estou finalizando meu segundo longa, o “Mr. Leather”, que é um documentário sobre a comunidade fetichista gay de São Paulo. A produção está sendo feita pela Dafuq Filmes e pela Cecília Brito. Também estou começando a preparação para o “Vento Seco”, que é meu primeiro longa de ficção, que vai ser filmado em Catalão no próximo ano, e está sendo produzido pela Panaceia Filmes.  

“Paulistas” está disponível nas seguintes plataformas streaming:

Itunes: R$ 19,90 (Venda) R$ 11,90 (aluguel)
Now: R$ 14,90 (aluguel)
Google: R$ 29,90 (Venda) e R$ 9,90 (Aluguel)
VivoPlay: R$ 11,90 (aluguel)

SOBRE O DIRETOR:

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Daniel Nolasco é natural de Catalão – Goiás, bacharel em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense e bacharel em História pela UFG. Dirigiu e roteirizou os curtas metragens: “Sr. Raposo” (2018), selecionado para mostra Foco, principal categoria da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes; “Netuno” (2017), premiado como melhor filme na sessão Curta Carioca do Rio Festival de G&S no Cinema 2017; “Tatame” (2016), prêmio de Melhor Montagem, Menção Honrosa do Júri Especial ABD-PE/APECI no no 3º MOV (PE); “Febre da Madeira” (2015), premiado como Melhor Diretor e Melhor Filme Documentário no 18º FICA; “A Felicidade Chega aos 40” (2014), premiado no edital Festcine; “Urano” (2013),  terceiro lugar na categoria de vídeo experimental no Festival Internacional de Cinema da Bienal de Curitiba; “Os Sobreviventes” (2013) adaptado da obra homônima de Caio Fernando Abreu, que recebeu o Prêmio Casa França Brasil de melhor filme no Festival de Curtas de Brasília (2013) e o prêmio de Melhor Curta da Mostra na Mostra Miragem (2013); “Gil” (2012), filme selecionado para participar do Munich International Festival of Film Schools 2012 e do Festival Internacional de Cine UNAM 2013 e outros vinte festivais.