O Brasil enfrenta sérios problemas com o ensino médio. O país tenta repaginar a etapa de ensino desde que lançou a lei 13.415 em 2017 para alterar a estrutura curricular e ofertar formação técnica e profissional. No entanto, o modelo falhou. A afirmação é de Ana Paula Corti, doutora em educação e pesquisadora de políticas educacionais, juventude e ensino médio, que diz que a reforma não prepara os estudantes para a universidade e tampouco para o mercado de trabalho.

“Alguns pesquisadores falam no ‘nem’, que é essa sigla para dizer que nem forma para a universidade e nem forma para o mercado de trabalho, porque ela [a reforma] traz um esvaziamento curricular muito grande e diminui as disciplinas do currículo, as disciplinas científicas, filosóficas e humanísticas”, diz.

A reforma do ensino médio aumentou a carga horária em pelo menos mil horas anuais. O novo currículo diminui a carga horária para as disciplinas comuns do da formação geral básica: matemática, português, biologia, física, química e outras. Isso porque o novo modelo inclui itinerários formativos e técnicos para os estudantes saírem do ensino médio com uma formação técnica. “Os itinerários formativos são os grandes fiascos da reforma”, argumenta Corti.

O ensino médio deveria preparar o superior

Os problemas com o ensino médio resultam em problemas com o ensino superior. Isso porque a negligência com a formação geral básica prejudica o acesso dos estudantes a uma universidade. “O ensino superior no Brasil ainda apresenta uma desigualdade muito grande em termos de acesso, mas a gente observou que nas últimas duas décadas houve uma ampliação muito significativa desse acesso”, conta a especialista.

Dados apontam que o percentual de pessoas com 25 anos ou mais que cursaram educação de nível superior no país era de 7,9% em 2010. A ampliação saltou para 23% na mesma faixa etária em 2023. Porém, a média brasileira é menor que a média de outros países da América Latina analisados pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A OCDE destaca que países como Argentina (40%), Chile (34%), Colômbia (29%) e Costa Rica (28%).  A média brasileira ainda é menor que a média geral das nações que integram a OCDE, que é de 44%.

O problema do ensino superior, explica Ana Paula Corti, é que o ensino médio do país não prepara os jovens para cursar o ensino superior. Para exemplificar, a especialista destaca a ampliação do ensino superior no Brasil a partir do ano 2000. 

“Essa ampliação começa de maneira tímida no ano 2000 e vai ganhando força. E isso está relacionado principalmente com a ampliação nas décadas anteriores, anos 1980 e principalmente anos 1990, da expansão do ensino médio no Brasil, que foi uma expansão tardia porque um dos requisitos para entrar no ensino superior é ter o ensino médio completo”, conta.

Desigualdades no ensino médio

O Brasil apresenta desigualdades no acesso dos estudantes no ensino médio e superior. Logo, uma etapa de ensino está relacionada com a outra. Corti explica que entre os anos de 1950 e 1980 poucas pessoas conseguiam completar o ensino médio, na época chamado de ensino de segundo grau. Mas o cenário mudou com a expansão desta etapa de ensino a partir da década de 1990.

“Quando isso se amplia, você tem uma pressão maior pela etapa posterior ao ensino médio, que é justamente o ensino superior”. Os anos 90 foi a década da expansão, de explosão de matrículas no ensino médio e não à toa a década seguinte é que vai pressionar pelas vagas no ensino superior”, destacou.

Consequentemente a essa necessidade, o Brasil criou o Exame Nacional do Ensino Médio em 1998. O primeiro objetivo do Enem era avaliar o desempenho dos estudantes no fim da formação geral básica, mas atualmente a prova é a principal seleção para universidades do país. 

Desigualdades no ensino superior

Para muitos estudantes brasileiros, sobretudo os pertencentes às famílias de baixa renda, o ensino médio já apresenta desigualdades sociais para completar a etapa de ensino. “Muitos jovens no caso do Brasil já trabalham enquanto fazem o ensino médio”, conta Corti.

A etapa final da formação geral básica é como o fim de uma linha para as famílias, é até onde elas conseguem bancar um filho estudando. Depois disso, para os jovens de baixa renda, o trabalho torna-se uma questão de sobrevivência e a educação superior pode desaparecer do horizonte.

Taxa líquida no Ensino Superior
Educação superior (Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil)

Certamente o ensino médio é um teto em que a família consegue sustentar esse jovem e aí ele consegue ir para o mercado de trabalho. Então, o curso que esse jovem vai conseguir entrar, se ele conseguir entrar no ensino superior, será nos cursos noturnos”, diz a educadora.

Para Ana Paula Corti, as barreiras para acessar o ensino superior começam na formação do ensino médio. “Seja porque no próprio ensino médio ele teve acesso a uma escolarização mais precarizada e depois porque essa questão da desigualdade já bate no ensino médio e o trabalho se impõe como uma prioridade na sua sobrevivência e da sua família. E o ensino superior muitas vezes acaba sendo um sonho muito distante da realidade desses jovens”, argumenta.  

O peso da reforma

Ana Paula ressalta a importância do Enem para entender os problemas do ensino médio e do acesso ao ensino superior. Em 2014, o número de inscritos para a prova chegou ao recorde de mais de 8 milhões de candidatos. O número de participantes caiu progressivamente, ano após ano, com pouco mais de 4 milhões de inscritos em 2023.

“Isso está mostrando algumas coisas para a gente e uma delas é que o próprio projeto de entrar no ensino superior tem a ver com sentir que o ensino médio te dá formas para isso e eu acho que a gente está agravando sensivelmente as chances dos jovens, principalmente os mais pobres, de entrar no ensino superior com a reforma do ensino médio”, aponta Corti.

A especialista afirma que a reforma esvaziou o currículo do ensino médio e que a etapa de ensino não prepara os estudantes para acessar uma universidade. Para ela, o Enem é a forma mais democrática de acesso ao ensino superior, mas ao mesmo tempo, a reforma do ensino médio tirou a oportunidade desse acesso.

“Essa conexão entre o currículo do ensino médio e o acesso ao ensino superior é muito importante porque não adianta nada a gente ter uma política de inclusão ao ensino superior e dar com uma mão e tirar com a outra. Ou seja, a gente cria a vaga no ensino superior com uma mão, mas com a outra mão a gente esvazia o currículo do ensino médio e tira os conteúdos que os estudantes vão ter que aprender para fazer o Enem e os vestibulares”, explica.

Os problemas do novo ensino médio

A nova estrutura do ensino médio não deu certo. Ana Paula afirma que o resultado já era esperado por especialistas, que já haviam percebido que  o sistema de ensino não comporta o teto de itinerários. “Para a gente ter os itinerários, teríamos que construir uma nova escola, contratar professores e criar um outro modelo que permitisse isso”.

Os investimentos necessários não ocorreram e as escolas tiveram que organizar as mudanças com o que tinham ao alcance delas. Corti diz que faltou infraestrutura e faltou professores em todos os lugares porque “a metade dos municípios brasileiros têm apenas uma escola de ensino médio”.

“O que a reforma do ensino médio fez foi substituir o conhecimento por itinerários que trazem temas muitas vezes irrelevantes para a formação dos jovens”, diz. 

“Não tem uma estrutura para ofertar um ensino diferenciado, não tem um laboratório, e no caso do ensino técnico, o que a reforma do ensino médio traz não é o que a gente chamava de ensino técnico de nível médio. […] tem que ter uma carga horária mínima, tem que ter laboratório e tem que ter professor com formação na área”, pontua.

Novas mudanças

Ana Paula aponta que as escolas tentaram aplicar as mudanças do novo ensino médio. Para os itinerários, os estados fizeram convênios com sistemas privados de formação profissional e cursos que não são técnicos. Mas, segundo ela, a prática nunca atingiu a proposta de oferecer aos estudantes itinerários que resultam chances reais de empregabilidade no mercado de trabalho.

A reforma então teria criado um problema: o ensino médio não prepara os estudantes para acessar uma universidade e nem para conseguir uma vaga no mercado de trabalho. “Ele tira o conhecimento para fazer o vestibular porque você está tirando os conhecimentos da formação geral do currículo. Então, nesse sentido, esse jovem não tem mais chance de entrar no mercado de trabalho e ele tem piorado as suas chances de entrar na universidade”, diz. 

Então como deve ser o ensino médio? Não há um consenso para responder essa pergunta, apenas novas ideias para serem votadas no Congresso Nacional.

“O documento da Conae (Conferência Nacional de Educação) traz como reivindicação a revogação da reforma do ensino médio e nós temos hoje um projeto de lei do MEC que visa fazer algumas modificações na lei do ensino médio.  E eu acredito que essa pauta é estratégica para a gente pensar o acesso ao ensino superior no Brasil e democratização do acesso ao ensino superior”, conclui.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 4 – Educação de Qualidade.