Por mais de uma vez seu Vanderli avisou para o Fio não sair da viela da rua três andando de bicicleta. A viela tinha pouco movimento e era plana: “Andar fora daqui só quando estiver maior e conseguir pedalar por cima do cano”.

Andar de bicicleta por baixo do cano é uma arte. O menino se dobra entre a coroa e o cano de cima, a bicicleta vai pra lado direito ele pro esquerdo, a bunda vai no ar tomando vendo e os pés movimentam os pedais continuadamente, ainda que precise ir freando.

Existiam dois tipos de freios: um manual, numa aste presa debaixo do guidão, que ao ser puxada, encostava duas borrachas, uma de cada lado, na parte interna do friso e o outro de pé, girando o pedal pra trás e um cubo dentro da catraca travava a roda traseira e parava a aranha.

A do seu Vanderli era uma Monark branca, guidão alto, em cada um dos três encontros dos canos que compunham o quadro, tinha um pedaço pintado de amarelo. Seu Vanderli tinha comprado uma vespa prata e andava todo exibido. Até falava em vender a aranha. Tinha um açougue lá no mercado de Campinas e quando ele ia para o trabalho o Fio esmerilava a aranha. Dona Eutália não se incomodava, desde que ele não desobedecesse o pai.

Já tinha 10 anos, mas a altura era de sete. Baixinho, gorducho, cheio de amigos e todas as professoras lá do Grupo Municipal que funcionava no Centro Espírita Eurípedes Barsanulfo gostavam dele. Dona Inês Antonieta então era só paparico. Mesmo assim o Fio as vezes exagerava.

Numa tarde de agosto, cheio de vento ele foi andar de bicicleta. Bundinha empinada para o lado de fora do quadro, ia e vinha pela viela todo-todo, enquanto os outros meninos soltavam raia lá do pátio da marcenaria do seu Haroldo.

Corriam para colocar as raias no ar e depois subiam no monte de tora e ficavam conversando sobre o que viam na televisão. O assunto do momento era a série Bonansa. A maioria descalça, calça curta, sem camisa. Naquela época as crianças vizinhas se juntavam na rua das casas para brincar e andar sem camisa e descalço era comum. Só o Branco ia todo vestido e com camisa de mangas longas.

Era albino e não podia tomar sol, mesmo assim ficava o dia todo debaixo dele, embora completamente vestido e de chapéu de pano que a dona Mirtes fez pra ele. Um pra ele e outro pro Marquês, irmão mais velho que era um poço de ciúmes – o que a mãe fazia para o irmão tinha de fazer pra ele. Mas era companheiro do Branco. Ái de quem se metesse com Branco!!! O Marquês entrava na briga mesmo.

Brigas eram comuns e os pais nem tomavam conhecimento. “Alguns tapas trocados eram bons pra ajudar o menino ser homem de verdade” – diziam eles. A exceção era a dona Maura, com o Luiz Carlos. Estava sempre querendo escolher o melhor lugar no alto das toras e sempre levava uns petelecos, enrolava a linha na lata de extrato de tomate e corria pra casa pra chamar dona Maura, que vinha igual uma galinha pra cima de quem brigou com o filho. Assim o Luiz Carlos tinha poucos amigos, mas ia todos os dias onde a molecada se juntava para brincar.

No ir e vir do Fio, na aranha do pai, ele viu que a raia do Divaldo arrebatou a linha e descambava céu abaixo, lá pros lado do Educandário Campinas. Girou com agilidade o pé de vela, olhando pra frente e pro alto, ao mesmo tempo. Quando a raia caiu, no Campo do Galo, ele já estava lá. Pegou a raia e levou de volta para o Divaldo.

Naquela época não existia cerol, nem disputa de quem cortava a linha do outro. A disputa era de quem fazia a raia mais bonita e quem levantava mais alto. A do Divaldo era linda: lado direito preto, lado esquerdo vermelho, com rabiola em corrente, um elo vermelho outro preto da ponta ao pé. As cores eram homenagem ao Atlético, time que quase todos ali torciam. Não tinha graça ficar um com algo do outro, pois os colegas se afastavam.

Ao resgatar a raia do Divaldo, o Fio viu que podia ir mais longe na bicicleta sem correr risco. Já não aguentava de vontade andar por cima do cano. Um dia foi lá no Passe Bem, de onde o Darciso de Sousa estava apresentando A Sorte é Sua, o Programa que Fala da Rua. O Darciso falava da rua e a Dalva de Oliveira ficava no estúdio. Todo mundo ouvia aquele programa.

O Fio falou na Difusora, pediu Verdes Campos da Minha Terra, dedicou pra dona Eutália, que adorava a música do Aguinaldo Timóteo e ainda ganhou uma lata de marmelada. O contentamento foi tanto que Dona Eutália colocou panos quentes e seu Vanderli, apenas repetiu pro Fio não sair da viela na bicicleta. Só que o fio não obedecia.

Subia lá pra cima da casa do seu Andraws Encheik Andraws e descia todo serelepe. Teve um dia que lá pra cima da casa do seu Andraws o Fio aproveitou que estava ladeira abaixo e passou a perna direita por cima do cano. Mesmo sentado no cano, os pés não alcançaram os pedais e a bicicleta era de freio de pé. O vento até assoviava nos ouvidos do Fio.

Empinou o corpo para a esquerda tentando colocar o pé no pedal que girava com o embalo da roda traseira o pedal bateu na barriga da perna: a dor foi tanta que ele desequilibrou e caiu. A bicicleta ficou e ele deslizou rua abaixo ralando todo, no cascalho da Pouso Alto.

Seu Andraws estava voltando lá do Armarinho que tinha na 24 de outubro e correu para socorrer o Fio. Além dos arranhões do lado esquerdo do corpo, ainda tinha um papo na barriga da perna esquerda. Seu Andraws o levou e dona Latiffa passou um remédio que ela mesma fez com cânfora na cachaça. A aranha teve os punhos e a capa do cilim arranhados. Seu Andraws levou o Fio em casa.

Seu Vanderli já tinha chegado do açougue. Agradeceu o libanês, que pediu para não danar com o menino, que era bonzinho. Tanto seu Vanderli, quanto dona Eutália esperaram o Andraws sair e caíram de bronca no Fio, que só não levou uma pisa porque estava todo arranhado. Seu Vanderli cuidou logo de vender a aranha para o Osmir e o Fio ficou sem a condução.

Mas houve compensação, o Fio ganhou dois grandes amigos: seu Andraws e dona Latiffa. O casal veio pra Goiânia após as forças aliadas libertar os judeus das mãos dos nazistas. A família foi presa nos campos de concentração na Áustria. O casal em um, os dois filhos de 10 e 12 anos, em outro e quando foram libertados não encontraram os filhos mais. Optaram por viver em Campinas. Ele era biólogo e ela fazia os serviços da casa. Trocavam o P pelo B e não pronunciavam o R no final dos verbos, mas falavam o português compreensivo.

Os campineiros faziam piada com o jeito do casal falar. Contavam que quando seu Andraws sentiu dor no peito e foi se consultar com o Dr William Metran, recebeu orientação para comer bastante verdura e após perguntou: “Dr. bode come carne?” No que o médico respondeu: “Só se for no Líbano, aqui no Brasil bode come capim”. Na verdade o libanês queria saber era se podia comer carne. Embora biólogo, ao chegar em Campinas ele foi consertar máquinas de costura e de escrever. Depois que ganhou um dinheirinho, comprou o Armarinho do seu Isolino, que resolveu voltar pra Bahia.

Depois do tombo o Fio ficou sabendo que o homem era biólogo, então poderia ensinar ciências pra ele. Era uma matéria do terceiro ano primário, que falava de vida de bicho e o Fio que amava português, detestava ciência. Dona Inês tinha de repetir várias vezes para ele entender. Foi por isto que ele apareceu no Armarinho a primeira vez. Foi bem recebido e entre a venda de um zíper, um botão e meio metro de elástico, seu Andraws foi ensinando e o Fio aprendendo. Depois o Fio passou frequentar a casa e se deliciar com as coisas gostosas que dona Latiffa fazia.

No aniversário de 12 anos do Fio, seu Vanderli e dona Eutália convidaram e o casal libanês foi. Seu Andraws levou um livro, O Pequeno Príncipe, de presente: “Vai aprender muito com este livro e depois vou te dar um do Gibran Khalil Gibran”- disse Andraws ao entregar o livro.

Nos fundos da casa na Vila Operária, o casal libanês tinha um canteiro de rosas brancas. Fazia as mudas em litros de óleo contados ao meio. Quando a roseira estava no ponto de ir para terra, seu Andraws levava as mudas para plantar nas praças campineiras. O Fio logo quis saber porque: “Na vida a gente colhe o que planta. Quem planta ódio, colhe ódio e quem planta flor, colhe satisfação. Quem não planta nada, não colhe nada”.

Os cuidadores das praças não só permitiam que seu Andraws plantasse as rosas, mas zelavam delas. Até o aborrecido do Parrudinho, lá da Praça Joaquim Lúcio agia assim. E assim as praças campineiras ficaram mais floridas e as rosas brancas dominavam o cenário.

Na segunda feira de manhã, quando ia para o Grupo, o Fio viu que a casa do seu Andraws estava movimentada. Mudou de rumo e foi lá ver o que era. O libanês havia morrido. Dona Latiffa abraçou o menino que desesperou quando viu o corpo inerte sobre a cama. Morreu dormindo e parecia estar sorrindo: “Temos a hora para entrar e sair da festa. Não podemos sair depois que a roupa está toda suja, que a bebida tira o domínio do equilíbrio e a noção das palavras, que os donos da casa já estão cansados da nossa presença. Não chore meu filho, Alá tirou Andraws da festa ainda bonitão e feliz” – falou a viúva.

Enquanto preparavam o corpo, serviço que era feito em casa, naquela época, Fio voltou e disse que não ia pra aula. Os pais compreenderam a dor do menino. Fio foi na Praça Joaquim Lúcio. O Parrudinho já sabia da morte e permitiu ao garoto colher as rosas brancas. Era verão e de muito sol. Tinha poucas rosas com pétalas firmes. Colheu as cinco que encontrou. Quando chegou no velório o corpo já estava no caixão. Fio enfiou as cinco rosas brancas entre as duas mãos do seu Andraws Encheik Andraws e pensou: “Quem planta flores tem o direito de levá-las consigo”. Todos admiraram a atitude do menino gordinho.

O libanês foi sepultado segurando as flores das roseiras que plantou. A plantação feita no canteiro da vida do Fio, naqueles três anos de convivências também floriu. Depois de médico, se dedicou à literatura, escrevendo poemas sobre rosas, plantio e colheitas, com o nome de Vanderli Filho. Na segunda página do primeiro livro estava escrito em negrito: “Ao jardineiro que plantou rosas nas praças, ternura e poesia no meu coração, dedico este livro”.