“A ideia inicial não era abrir uma escola, mas buscar um espaço educacional que pautasse sobre as identidades negras”. É o que relata em entrevista à Sagres, Cristiane Coelho, diretora da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, em Salvador, Bahia. O sonho, porém realizado, é da idealizadora, professora e doutora em Ensino de Química e consultora pedagógica Bárbara Carine Soares Pinheiro. Em suma, construir a escola veio a partir de uma preocupação com a educação da sua filha. 

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Foi em 2019, contudo, que a unidade de ensino básico, para crianças de 2 a 10 anos, abriu as portas pela primeira vez. Trilíngue, as aulas na Escola Maria Felipa são aplicadas metade em língua portuguesa e a outra em libras, a língua brasileira de sinais. Ademais, os alunos aprendem inglês. 

Bárbara Carine, idealizadora da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa (Foto: Arquivo Pessoal)

“A maioria das pessoas que procuram a escola para seus filhos e filhas, são famílias que já entendem o projeto que é a Maria Felipa. São famílias que já sabem o que buscam, que já têm uma ideia do que querem, do que entendem enquanto reflexão, enquanto prática para seus filhos”, afirma.

Desse modo, o objetivo é tornar o ambiente igualitário e emancipatório em relação à socialização dos saberes. Trata-se de um símbolo, portanto, de luta contra qualquer tipo de discriminação, desvalorização ou opressão. 

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“Temos falado tanto em empoderamento, em representatividade. É importante falar da estética, da questão física, mas também é preciso potencializar através do que temos de muito potente, que é a ciência, a matemática, a escrita, as invenções africanas que, inclusive, facilitam a vida da humanidade até os dias atuais”, afirma Cristiane. 

História dos povos negro e indígena por toda parte

Além disso, o espaço respira ancestralidade, ou seja, muito além do eurocentrismo dos livros tradicionais. Nesse sentido, as turmas da Escola Maria Felipa possuem nomes de reinos ou impérios africanos e povos indígenas como Império Axante, Império do Mali, Reino de Daomé, Povo Pataxó, Povo Yanomami, Civilização Asteca e Império Inca, entre outros. De acordo com Cristiane, entre 70 e 80 crianças estudam na unidade atualmente.   

“Em todo espaço físico da escola você estará dialogando visualmente com alguma informação de produção das práticas dessas crianças. Tudo que elas produzem estão expostos aqui nos murais, na cantina, cozinha, em todos os espaços. Desde a entrada você já respira algo de muito potente”, descreve a diretora. 

Conforme a escola, “ser afro-brasileira significa valorizar a cultura afro-brasileira reconhecendo nela a mesma ou superior significância que conferimos à cultura europeia”. Significa, dessa maneira, “pensar uma escola que problematize desde cedo a questão racial de modo a superar pela via educacional o racismo estrutural que vivemos em nossa sociedade”.

Segundo Cristiane Coelho, entretanto, é preciso que a educação vá além das Leis nº 11.645/08 e 10.639/03, e que mais instituições se engajem nesta causa. “Que mais espaços possam surgir. Nós fomos os primeiros, mas que cheguem muito mais escolas, entidades, instituições que pautem sobre o ensino antirracista, ensino afetuoso, afroafetivo. Nós precisamos trazer esses conhecimentos que foram invisibilizados. Há muita coisa a assimilar com esse povo que é precursor, as invenções que a gente tem, que ressignificam a nossa vida. Não existe outra forma de emancipar crianças, de potencializar nossas crianças pretas”, afirma. 

Por que Maria Felipa?

A página da Escola Maria Felipa na internet, desta forma, conta quem foi a mulher que inspirou a construção da unidade de ensino infantil e fundamental. 

“Maria Felipa foi uma heroína da independência do Brasil na Bahia. Nascida na Ilha de Itaparica, na Baía de Todos os Santos, descendente de africanos escravizados do Sudão, negra, marisqueira, pescadora e trabalhadora braçal, ela liderou um grupo de 200 pessoas, entre mulheres negras, indígenas tupinambás e tapuias nas batalhas contra os portugueses que atacavam a Ilha de Itaparica, a partir de 1822. Somente o grupo de Maria Felipa foi o responsável por ter queimado 40 embarcações portuguesas que estavam próximas à Ilha.

Liderando um grupo de mulheres e homens de diferentes classes e etnias, fortificou as praias com a construção de trincheiras, organizou o envio de mantimentos para o Recôncavo e as chamadas “vedetas” que eram vigias nas praias, feitas dia e noite, a fim de previnir o desembarque de tropas inimigas, além de participar ativamente de vários conflitos. Durante as batalhas, seu grupo ajudou a incendiar inúmeras embarcações: a Canhoneira Dez de Fevereiro, em 1° de outubro de 1822, na praia de Manguinhos; a Barca Constituição, em 12 de outubro de 1822, na Praia do Convento; em 7 de janeiro de 1823, liderou aproximadamente 40 mulheres na defesa das praias de Itaparica. Armadas com pexeiras e galhos de cansanção seduziram e surraram os portugueses para depois atear fogo aos barcos usando tochas feitas de palha de coco e chumbo.

A diretora da Escola Maria Felipa, Cristiane Coelho (Foto: Sagres Online)

Maria Felipa, como tantas outras mulheres negras, foi uma grande guerreira apagada e silenciada da história. O nosso intuito em nomear a nossa escola com a sua graça é de homenagear esta grande mulher negra que nos ensinou o valor da resistência e do combate por meio da organização do seu povo, do pensamento estratégico e quilombola.”

Criticidade e reflexão

A Escola Afro-Brasileira Maria Felipa recebeu, em novembro de 2022, juntamente com outras oito unidades de ensino, o selo de excelência pelo comprometimento com a educação antirracista. A escola baiana foi contemplada com o Prêmio Ubora. Aliás, na solenidade, a idealizadora Bárbara Carine frisou a importância de crianças brancas conhecerem e aprenderem sobre a história e cultura africana afro-brasileira e indígena.

“É muito adoecedor para elas acharem que estão no centro do mundo. É muito saudável que elas compreendam sobre as memórias ancestrais potentes, positivadas e altivas de pessoas negras e indígenas”, reforçou. “A gente não faz esse trabalho por conta do Selo, mas ele nos valoriza”, completou Bárbara.

“Uma educação antirracista é uma educação emancipatória. Essa escola é para todas as crianças. É uma escola afro-brasileira que pauta pela diversidade. A ideia é que a gente possa construir uma sociedade crítica, reflexiva e antirracista”, conclui a Cristiane Coelho, à Sagres. 

Ouça a entrevista a seguir

*Este conteúdo está alinhado ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 04 – Educação de Qualidade.

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