LUÍS CURRO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Copa do Qatar tem sido pródiga em decidir a classificação das equipes na disputa de pênaltis, o que carrega os jogos de emoção e, não raro, consagra os goleiros.
Das 12 partidas dos mata-matas do Mundial –oito das oitavas de final e quatro das quartas de final– um terço teve disputa de penalidades máximas para definir quem avançava e quem voltava para casa.
E o resultado foi um baixo índice (61%) de pênaltis aproveitados. Dos 33 chutes nos quatro jogos que tiveram cobranças depois da prorrogação, 13 foram desperdiçados (39%).
Os chutes que partiram da marca da cal durante os jogos tiveram índice maior de acerto: 68% (13 de 19), mas, ainda assim, abaixo da média.
A empresa Sensorial, de Ribeirão Preto (SP), especializada em neurociência, afirma, com base em levantamento da Universidade John Moores, de Liverpool (Inglaterra), que “estatisticamente, 70% das cobranças de pênaltis são convertidas” –isso para jogos em geral, não apenas no torneio mundial.
Um outro estudo, feito pelos pesquisadores Mike Hughes (Instituto de Tecnologia de Carlow, Irlanda) e Julia Wells (Instituto Inglês de Esportes), considerando jogos de Copa do Mundo e Eurocopa, aponta que o índice de acerto dos batedores é de 75% nas decisões por pênaltis.
No Qatar, os erros dos cobradores incapazes de marcar ao chutar uma bola parada a uma distância de 11 metros do gol (que tem 7,32 m de largura por 2,44 m de altura) criaram heróis instantâneos entre os goleiros.
O croata Livakovic pegou quatro chutes (três contra o Japão, um contra o Brasil). O marroquino Bono defendeu duas vezes diante dos espanhóis, e o argentino Martínez, duas contra os holandeses.
Das outras quatro tentativas erradas, três acertaram a trave -uma delas a de Marquinhos, que eliminou o Brasil- e uma foi para fora, do argentino Enzo Fernández.
Erros em cobranças de pênaltis acontecem, às vezes mais (caso da Espanha, que desperdiçou todas as três chances na disputa com Marrocos), às vezes menos (a Croácia acertou 7 das 8 tentativas nas decisões com Japão e Brasil).
Hughes e Wells, no estudo “Análise de cobranças em disputa de pênaltis” (2002), concluíram que o pênalti batido com menos força é o que tem o menor índice de sucesso, sendo defendido pelo goleiro em 53% das vezes. A análise considerou 129 pênaltis.
O que diz a regra A regra atual nos pênaltis, chancelada neste ano pelo Ifab (o órgão que regulamenta as leis do futebol), é mais favorável aos goleiros, permitindo a eles manter só um dos pés sobre a linha, e não mais os dois, na hora em que o batedor chuta a bola.
Além da vantagem para o goleiro, que se torna mais móvel, há também a pressão sobre o batedor, que afeta mais ou menos determinados atletas, já que cada um tem uma personalidade e lida melhor ou pior com o lado emocional.
Esse componente diminui teoricamente em uma Copa do Mundo, já que os jogadores que estão nela costumam atuar em grandes clubes e estão habituados a lidar com a pressão.
O holandês Van Dijk, entretanto, com seus 31 anos e larga experiência, declarou que sentiu-se incomodado com, segundo ele, 80 mil torcedores argentinos o vaiando no estádio Lusail antes de bater –errar– o seu pênalti.
“É loteria”, declarou depois do jogo o zagueiro, repetindo uma justificativa usada para o fracasso em decisão por pênaltis desde que ela foi introduzida no futebol, em 1970.
Sorte ou treino? Tem quem diga que não é uma questão de sorte, mas de prática, como defendeu Luis Enrique (“se você treinar com frequência, vai melhorar”), treinador da Espanha na Copa, certamente frustrado e surpreso ao ver seus comandados errarem tudo. O técnico da França, Didier Deschamps, é outro que acredita no treino como meio para ampliar o êxito nos pênaltis.
O alemão Lothar Matthäus, porém, capitão da seleção alemã campeã na Copa da Itália-1990, declarou no documentário “The Long Walk”, da Fifa, que “você pode treinar o quanto quiser, mas não pode se preparar para se dar bem”, mencionando a impossibilidade de controlar aspectos como “o clima, a pressão e o cansaço que sente depois de 120 minutos”.
Mas deixando de lado a loteria, e se fosse possível eliminar o fator pressão, há um jeito de ampliar a chance de fazer gol em um pênalti? Sim, isso é sabido faz tempo. E depende, sim, de treino.
É uma questão de física. A combinação força e local escolhido para o chute é determinante para o êxito na batida, apontam os estudos.
A melhor opção é o chute forte (no qual a velocidade da bola atinja, de acordo com a Sensorial, 90 km/h) e alto, em um dos ângulos. Se isso for feito, o goleiro não tem tempo para chegar e é gol na certa.
“Um chute nessa velocidade chega ao gol em mais ou menos 450 milésimos de segundo. O goleiro tem menos de meio segundo para chegar na bola. Um tempo de reação rápido nessas condições varia entre 200 e 300 milésimos de segundo, isso só para reagir, sem contar o tempo necessário para chegar até a bola”, escreveu Milton Ávila, 37, doutor em neurociência pela USP e CEO da Sensorial.
O neurocientista e físico Ronald Ranvaud, ex-professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo e estudioso do tema, foi à TV, em 2009, explicar o funcionamento do “pênalti perfeito”.
“Goleiro nenhum pega a bola. Não tem como”, declarou ele no Globo Esporte sobre a combinação de velocidade, que nem precisaria ser de 90 km/h, acima de 80 km/h bastaria, e precisão -o chute tem que ir no ângulo.
A reportagem realizou um teste prático com profissionais do Grêmio Barueri, na Grande São Paulo, e, de dez cobranças feitas no estilo proposto e recomendado, o goleiro não pegou nenhuma.
Se existe um jeito de acertar quase sempre caso a técnica seja precisa -o “quase” é usado justamente por haver o fator emocional envolvido-, por que os jogadores não o utilizam?
Porque não é fácil, exige treinamento exaustivo, pois é fato que é mais difícil acertar o ângulo com um chute forte do que bater de outro jeito, qualquer que seja o escolhido, e em outro ponto do gol.
Uma desculpa que, segundo Matt Miller-Dicks, professor sênior de aquisição de habilidades da Universidade de Portsmouth (Inglaterra), não cola. “A margem de erro é apenas um pouco menor mirando nessa parte do gol”, disse ele, à agência de notícias Reuters, sobre o chute no ângulo.
Os pesquisadores Hughes e Wells dão números aos pênaltis batido com “força total”: 31% não acertam o gol, independentemente do local escolhido pelo cobrador.
A reportagem assistiu a todos os 33 pênaltis batidos nas disputas entre as seleções que valeram a sobrevivência na Copa do Qatar. Não houve um único jogador que arriscou um petardo no ângulo.
Até o uso da força em si foi pouco utilizado. Só 9 dos 33 pênaltis tiveram chutes visivelmente potentes, ou 27%. Seis deles (incluindo um do Brasil, de Casemiro) entraram, ou 67%. Dos errados, dois foram na trave e um, do holandês Berghuis, parou em Martínez, que acertou o canto.
Sendo o uso da força adequado, basta seguir o conselho de um comentarista de TV, o ex-jogador inglês Chris Sutton, para ser feliz no pênalti: “Na dúvida, encha o pé.”
‘JOGO MENTAL’
Além de ter de se dedicar nos treinos para chutar com força e no alto acertadamente, o cobrador também precisará deixar de lado a graça de enganar o goleiro, de mandar em um canto e o rival ir para o outro, de ousar com uma “cavadinha” -criada pelo tcheco Antonín Panenka em 1976.
Muitos atletas não abrem mão desse “jogo mental” com o guarda-metas, esperando, em corrida lenta até a bola, que ele se mova para um lado, para em seguida empurrar a bola para o canto oposto -Neymar (cujo aproveitamento em pênaltis é de 83%) e o polonês Lewandowski (acerto de 89%) fazem isso.
Vale lembrar que a “paradinha”, artifício que teria sido criado por Pelé nos anos 1960 e que passou a ser usado desde então por vários cobradores de pênalti -Neymar entre eles-, não é mais permitida há 12 anos.
Disse a Fifa sobre a paradinha, em 2010, que “ameaçar chutar a bola uma vez que o jogador completou a corrida é agora uma infração da lei número 14 e um ato antiesportivo pelo qual o jogador deve ser punido”. A punição é o cartão amarelo.
Do lado dos goleiros, há os que estudam os adversários para saber a frequência com que cada um bate em qual canto.
Cientes disso, saltam para esse lado e, caso o batedor não mude o que costuma fazer, ampliam sua chance de defender.
Outros usam outra estratégia, a de observar o pé de apoio do cobrador -o lado para o qual este está apontado indicaria o local do chute.
“Duas pessoas se digladiam, um cérebro contra o outro. O jogo de cérebro é evidente, sobre quem consegue antecipar melhor o movimento do outro”, diz Ávila, da Sensorial, ressaltando que esse duelo cerebral no pênalti entre batedor e goleiro no pênalti sempre existiu no futebol.
Para ele, que citou o atacante Henrique Dourado (ex-Fluminense e ex-Flamengo), o segredo do jogador que quase nunca falha é conseguir “manter a visão ao mesmo tempo na bola e no goleiro”.
Porém em uma Copa do Mundo até mesmo os melhores batedores correm maior risco de errar, afirma o neurocientista, porque “os aspectos emocionais influenciam na contração muscular, o que influencia na precisão”.
BATER O 1º PÊNALTI FAZ DIFERENÇA?
Em Copa do Mundo, não.
Levantamento do blog O Mundo É uma Bola, editado pelo autor desta reportagem, mostra que houve até hoje 34 disputas de pênaltis em Mundiais. O time que começou batendo venceu 17, e o time que cobrou o segundo pênalti ganhou as outras 17.
Até mesmo nesta Copa há empate: quem iniciou a disputa das penalidades máximas saiu vencedor duas vezes (Croácia contra o Brasil e Marrocos contra a Espanha) e perdedor nas outras duas (Japão contra a Croácia e Holanda contra a Argentina).