Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

China: a metáfora dos gansos-cisnes selvagens

A atuação da China no tabuleiro geopolítico internacional, a sua política de aliança com a Rússia e sua ação incisiva para consolidar e ampliar sua influência sobre seus parceiros comerciais na Europa, nas Américas e na África, bem como as tensões com os EUA, tem despertado, há muito tempo, o interesse pela história desse país.

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É curioso observar que há teorias e relatos sobre o contato de povos dessa região com as terras do Ocidente, antes da época moderna, apesar de muitos desses relatos serem alvo de contestações.

De acordo com os estudos realizados, até o momento, a conclusão mais aceita é a de que os primeiros habitantes humanos das Américas não eram autóctones, ou seja, originários da região. Os fósseis humanos encontrados e pesquisados nas Américas registram uma datação bem mais recente que as encontradas nos outros continentes.

A hipótese mais conhecida sobre o primitivo povoamento das Américas é a da corrente migratória pelo estreito de Bering. Segundo essa teoria, por volta de 15 mil anos atrás, grupos nômades que teriam vindo do extremo asiático seriam os primeiros habitantes da América. Assim sendo, muitos dos nossos indígenas teriam sua origem em grupos asiáticos.

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O osso de uma perna, descoberto em 2003 na China, foi submetido a análise genética. A conclusão desses estudos reforçou a ideia da primitiva migração de asiáticos para as Américas pelo estreito de Bering. Segundo a análise do DNA, os atuais asiáticos e os indígenas das Américas guardam a descendência comum com um grupo que habitou a China há pelo menos 40 mil anos.

Montagem autoral sobreposta à imagem do Google Maps

Outro momento interessante, que revela uma possível e remota relação entre a China e as Américas, encontra-se nas obras “1421: o ano em que a China descobriu o mundo” e “Who Discovered America? The Untold History of the Peopling of the Americas” (“Quem descobriu a América? A história oculta da ocupação das Américas”), best-sellers escritos pelo ex-comandante da Marinha britânica Gavin Menzies. Nessas obras Menzies defende a tese, muito combatida pela historiografia tradicional, de que os chineses teriam chegado à América 70 anos antes da expedição espanhola comandada pelo italiano Cristóvão Colombo, em 1492.

Entre 1368 e 1644 a China foi governada pela Dinastia Ming. Há relatos de que sob o governo dessa dinastia a China constitui uma vasta marinha e um exército com um milhão de membros.

Teria sido durante a dinastia Ming que, em 1421, os chineses teriam “descoberto” a América, antes dos europeus. Os comandantes chineses Zhou Man e Hong Bao teriam conduzido suas frotas até a foz do Rio Orenoco, na atual Venezuela, seguindo gradualmente pela costa mais ao sul, até chegarem ao Estreito de Magalhães, ao sul da atual Argentina. Essas expedições chinesas teriam sido articuladas por Zheng He, um eunuco muçulmano originário da Mongólia que prestou relevantes serviços náuticos aos imperadores chineses do período. No século XV ele realizou viagens marítimas pelo sudoeste asiático, chegou à Índia, ao Mar Vermelho e a Moçambique.

Mapa do mundo chinês por volta de 1430 (Imagem: Domínio público)

Bem, apesar de todas as críticas à essas narrativas, principalmente pela fragilidade metodológica e carência de provas consistentes, não há dúvida de que no século XV a China já possuía surpreendentes avanços náuticos e tinha projetos bem constituídos para avançar, o quanto pudesse, pelo oceano Pacífico com o objetivo de ampliar suas trocas comerciais com outros povos do Sudeste Asiático.

Xilogravura representando os navios de Zheng He (Imagem: Domínio público)

O navegador Zheng He morreu quando retornava de uma viagem ao estreito de Ormuz, no Irã, em 1433. Sua sepultura fica na cidade chinesa de Nanquim, na colina de Niushou. Mas, o nome desse grande navegador não foi apagado pelo tempo, pois tem sido retomado pela administração do atual presidente chinês Xi Jinping no contexto da estruturação da chamada “Nova Rota da Seda”.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos (2018)

O presidente chinês Xi Jinping apresentou, em 2013, a proposta para o estabelecimento de uma “nova Rota da Seda”, com a denominação de “Um Cinturão e Uma Rota”, passando a ser chamada, posteriormente, de “Iniciativa Cinturão e Rota” (Belt and Road Initiative – BRI -). Atualmente é um dos principais pilares da política externa chinesa. Inicialmente esse plano consistia na formação de uma grande rede de infraestrutura para conectar a Àsia, o Leste Europeu e parte da África, porém, com o tempo e o avanço econômico e geopolítico chinês, essa iniciativa tem se expandido e englobado territórios de todos os continentes.

Em 2017, quando houve o primeiro “Belt and Road Forum (BRF)” que visava estruturar o planejamento para o início implementação da “Nova rota da Seda”, o nome do navegador Zheng He foi evocado pelo presidente Xi Jinping. O mandatário chinês afirmou que Zheng He, como outros de sua época, não entraram para a história como guerreiros conquistadores, mas sim como emissários amigáveis, seja em caravanas de camelos ou em navios repletos de tesouros, exercendo as práticas comerciais na antiga Rota da Seda. Assim, eles buscaram construir, por gerações, uma ponte para a paz e cooperação entre o Ocidente e o Oriente.

Essa referência de Xi Jinping a Zheng He não foi despretensiosa, mas muito bem orientada, pois, em um cenário de tensões geopolíticas, a China busca justificar sua atuação histórica e supostamente pacífica. Essa narrativa é bastante estratégica e busca consolidar a imagem de uma China que prefere as parcerias econômicas e os acordos internacionais à beligerância. Assim, a China segue investindo recursos em várias partes do mundo, como é possível observar nas iniciativas de construção de portos e estradas em países da África, da Ásia e da América Latina.

Estamos falando do “soft power” chinês, ou seja, o poder de influenciar o comportamento ou interesses de outros atores políticos por meio de narrativas culturais ou ideológicas, apresentando uma imagem conciliatória e de identificação de interesses comuns, como por exemplo, a contestação à hegemonia do dólar na economia mundial.

Xi Jinping (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Dessa maneira, ao mesmo tempo em que o presidente chinês faz uma visita cordial ao presidente russo Vladmir Putin, a China articula, com o Brasil e a França, uma proposta de paz para pôr fim à Guerra da Ucrânia. De outro lado, sob a justificativa de manutenção de sua soberania e unidade nacional, faz ameaçadores exercícios militares, com munições reais, para intimidar Taiwan.

É com base nessa política do “morde e assopra” que o “soft power” chinês vem avançando e angariando cada vez mais aliados.

Ah! E a questão dos gansos-cisnes selvagens?

Os gansos selvagens são aves migratórias que, todos os anos, viajam milhares de quilômetros, através de rotas bem definidas. os antigos chineses usavam essas aves para levar e trazer mensagens presas às suas patas. Assim, o ganso selvagem passou a simbolizar aquele que leva a mensagem a longas distâncias.

Bem, no emblemático “Belt and Road Forum (BRF)”, em 2017, foi distribuído um resumo elencando os principais pontos do discurso de Xi Jinping, no qual constava que as nações representadas naquela cúpula se comprometiam a promover a “cooperação prática por estradas, ferrovias, portos, vias marítimas e internas de transporte por água, aviação, oleodutos e gasodutos de energia, eletricidade e telecomunicações”.

Para reforçar essa ideia de cooperação e esforço conjunto, Xi Jinping usou a metáfora dos “gansos-cisnes selvagens”. Segundo ele, os gansos-cisnes são aves grandes e selvagens raras, típicas da Ásia, que só conseguem voar muito longe e em plena segurança vencendo ventos e tempestades, porque voam em bandos e ajudam-se uns os outros, formando uma verdadeira equipe.

Norberto Salomão é advogado, historiador, professor de História, analista de Geopolítica e Política Internacional, mestre em Ciências da Religião e especialista em Mídia e Educação

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