Força, luta e superação são palavras que definem bem a vida de Liduina Alves de Sousa. Mulher, mãe e esposa, Liduina é uma das líderes da ocupação Beira da Mata, que fica entre os bairros Independência Mansões e o Riviera, em Goiânia. 

Liduina cresceu na casa da mãe no bairro Independência Mansões, e lá se tornou mãe, esposa e viúva. O primeiro marido a deixou grávida. O segundo, morreu após um acidente. Então, ela buscou vencer a depressão para voltar a trabalhar e encontrar um novo caminho na vida.

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Ainda morando com a mãe, Liduina viu seu terceiro marido impossibilitado de trabalhar por conta de um acidente de trabalho. Sem condições de ajudar nas despesas de casa e com sete filhos para criar, mudar para uma ocupação foi a única solução encontrada. 

“Viemos tentar uma nova vida, para ter liberdade e um cantinho para a gente. Onde estávamos não tinha mais condições de ficarmos, não tinha espaço, era gente demais, um lote para três, quatro famílias”, conta.

Na época, sem emprego, Liduina e o esposo se tornaram catadores de lixo reciclável. “Trabalhamos um tempo com material reciclável. Meu marido estava usando muletas, mas a gente ia de moto e conseguia catar algumas coisas pelo menos para comer, comprar o básico do básico mesmo”, lembra. 

Adversidades 

Hoje, Liduina e o esposo são líderes da comunidade Beira da Mata e convivem com as dificuldades de não terem acesso a serviços básicos como água potável, energia elétrica e um comprovante de endereço. 

“Tinha um poço artesiano que estava desativado há mais de 20 anos e pegávamos água lá. Mas era uma água bem feia, amarga e bem amarela, acho que pela ferrugem do cano”, relata. 

Além da ausência de saneamento básico, em menos de cinco meses morando na ocupação, a família passou por dois despejos, e até hoje convive com a insegurança de não saber o que esperar no dia seguinte. 

“As crianças ficaram traumatizadas, somos traumatizados até hoje, temos medo de dormir e acordar debaixo da terra. Temos medo de eles chegarem de madrugada e passarem a patrola por cima da gente dormindo com as nossas crianças”, afirma Liduina.  

“A maior dificuldade de viver em barracas é que elas são muito quentes durante o dia e muito frias durante a noite. Com chuva, a gente não dorme, porque venta muito e leva a lona. Então, não temos sossego”, completa. 

Sem comprovante de endereço, os moradores das ocupações também têm muita dificuldade de conseguir atendimento médico pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e de matricular os filhos na escola.

“Eu falo e fico emocionada, porque isso deixa a gente muito triste. Vivemos nessa dificuldade tão grande de morar nessa situação, porque ninguém quer, estamos aqui porque precisamos, não por prazer, e ainda temos que passar por esses obstáculos, que são direitos nossos. Direito à saúde, ao transporte, à educação, à moradia, isso está na Constituição e não somos atendidos”, lamenta.  

Apesar de toda luta, Liduina não desiste e entende que exercer uma posição de liderança na comunidade é muito importante para todos os moradores. 

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“Quando cheguei aqui eu era só uma esposa, uma mãe e uma filha. Mas na comunidade me tornei várias pessoas ao mesmo tempo, hoje sou ‘médica’, ‘advogada’, conselheira e muitas outras coisas, porque a comunidade necessita. Isso é muito gratificante, sinto que não posso desistir, que tenho que ser forte por eles. Me colocaram nessa posição de liderança porque confiam em mim, me sinto muito feliz e quero lutar por todos”, destaca. 

Movimentos sociais 

Dez de dezembro é o dia dos Direitos Humanos e, dentro dessa perspectiva, a moradia é um direito fundamental garantido constitucionalmente. Assim como Liduina, muitas mulheres têm se inserido como líderes dentro das ocupações urbanas bem como nos movimentos de luta pela moradia, mostrando um avanço no empoderamento feminino enquanto sujeitos políticos.

Ângela Cristina Ferreira é educadora popular e integrante da direção do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD-GO) e acompanha de perto a luta das mulheres dentro das ocupações.  

“Elas têm diversas violações em relação ao âmbito estrutural, de negação de direitos básicos. Nas ocupações urbanas, a maioria das pessoas é mulher, elas são as maiores impactadas pelos despejos, a maioria é mãe solo e elas são responsáveis pela sobrevivência da família, pela luta, pela organização dos territórios e pela defesa da vida e dos direitos humanos”, ressalta a educadora. 

Mulheres lideram a luta pelo direito à cidade (Foto: Instagram/MTD-GO)

Atualmente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, 11,6 milhões de lares são chefiados unicamente por mães solo e destas, 59,6% vivem abaixo da linha da pobreza. Já são quase 8 milhões de famílias brasileiras que têm seu direito à moradia digna negado. De acordo com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), a maior parte dessa população é do sexo feminino, o que representa 58,62% do total de pessoas nessa condição.

Outro ponto ressaltado por Ângela Cristina é que além da negação de direitos, existe muito preconceito da sociedade com os moradores das ocupações.

“Temos esse retrato da criminalização da pobreza. Essas famílias estão no campo da insegurança alimentar, estão tentando sobreviver e resistir, são trabalhadoras e trabalhadores, muitos trabalham de maneira informal, outros estão na reciclagem e há, sim, uma criminalização da pobreza. Junto à exclusão e ao racismo estrutural, como se os direitos não fossem garantidos a todas as pessoas”, afirma. 

Pandemia

Durante a pandemia de Covid-19, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) passou a impedir as desocupações e despejos até o dia 31 de março de 2022. Mesmo assim, o Brasil registrou um aumento de 333% no número de famílias despejadas de suas moradias.

Entre março e agosto de 2020, nos primeiros meses da emergência em saúde, 6.373 famílias ficaram desabrigadas. Conforme levantamento da campanha Despejo Zero, até fevereiro de 2022, esse número aumentou para 27.618 famílias.

Além disso, outras 132.291 famílias seguem ameaçadas de despejo em todo o país, um crescimento de 602% na comparação com março de 2020, quando 18.840 famílias estavam correndo risco de perder suas moradias.

Nos últimos dois anos, os estados que registraram o maior número de famílias despejadas foram: São Paulo (6.017), Rio de Janeiro (5.560) e Amazonas (3.731). Em Goiás, o número de famílias despejadas é de 1.623.

Ângela Cristina destaca que, nesse contexto, as periferias foram as mais impactadas pela pandemia e a alternativa de muitas famílias foi ir para as ocupações urbanas. 

“Estamos falando de 30 milhões de famílias que estão passando fome no Brasil, que estão no campo da insegurança alimentar. São cerca de seis milhões de pessoas que estão no déficit habitacional. No estado de Goiás estamos acompanhando oito ocupações urbanas e nós percebemos que há muito mais para lutar pela moradia”, ressalta.

Durante o 3º Encontro Mulheres em Luta pelo Direito à Cidade, realizado pelo MDT-GO, foi construída e assinada coletivamente uma carta pedagógica. 

“Esse documento relata que a ausência de CEP dificulta o acesso aos serviços mais básicos, como o da saúde, de matricular crianças nas escolas. Essa ausência de um CEP significa uma exclusão social por parte do Estado”, frisa. 

A educadora ressalta ainda que a luta dessas famílias não é apenas para ter uma moradia, e, sim, por direitos garantidos pela Constituição. “Queremos a luta pelo transporte, pela saúde, pela educação e pelo trabalho”.

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