A pandemia da Covid-19, que teve o seu auge principalmente em 2020, transformou em muitos aspectos a vida em sociedade. O período ficou marcado pelas mais de 690 mil mortes no Brasil ocasionadas pela doença e por regras que precisaram ser cumpridas para combater a proliferação do vírus afim de evitar mais óbitos.

Durante alguns meses, os comércios estiveram proibidos de abrir as portas e somente os serviços essenciais poderiam continuar funcionando. Sendo assim, a orientação era para que as pessoas priorizassem ficar em casa e, quem pudesse, adotasse o método home office para trabalhar.

Ao passo que o poder público tentava controlar a pandemia, essas medidas acabaram elevando uma estatística perigosa. De acordo com um levantamento do Datafolha de 2021, 4,3 milhões de mulheres brasileiras foram agredidas fisicamente, o que representa que a cada um minuto 8 mulheres sofreram agressões durante a pandemia no Brasil.

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Mas o contexto não está restrito apenas aos anos em que o coronavírus foi a grande preocupação das autoridades do país. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, obtidos pelo portal g1, GloboNews e TV Globo, 699 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, uma média de quatro mulheres mortas por dia.

Este é o maior número registrado em um semestre e se comparado ao mesmo período de 2019, teve um aumento de 10,8%. Já o aumento em relação à 2021 é de 3,2%.

Dupla vulnerabilidade

Muitas mulheres, no entanto, além de combaterem a violência doméstica, também precisam lutar contra o racismo. Até porque segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 62% das mulheres vítimas de feminicídio são negras. Estatística que é resultado de muitos aspectos da sociedade.

“Nós, mulheres pretas e negras, muitas vezes temos homens ligados à essa identidade patriarcal. O conceito do marido como ‘o senhor’, em que a mulher tem que ser submissa ao ponto de não poder falar, de não poder escolher”, explicou Maria Elisângela Barretos, diretora presidente de remanescentes quilombolas na comunidade Recantos Dourados e coordenadora Municipal dos Direitos Humanos, da Mulher e da Igualdade de Abadia de Goiás.

“Tem mulheres que hoje têm 70, 80 anos, que dizem que só começaram a viver após a morte do marido porque eram estupradas todos os dias. Elas só serviam para ser progenitoras e empregadas domésticas, ‘servindo’ os seus senhores”, completou Eli, reforçando o patriarquismo existente em muitas estruturas familiares.

Na visão da diretora, ao longo dos anos é possível notar uma evolução neste tipo de pensamento, e coibi-lo se tornou uma prática mais corriqueira. Porém, ainda há um longo caminho a percorrer.

“Nós temos um avanço, mas não temos a libertação da senzala. Falta muito ainda para a introdução dessa política que já existe para a mulher branca, dentro da identidade não só da mulher negra, mas também das mulher indígena, cigana e da que está em situação de rua. Vejo a necessidade da introdução dessas políticas afirmativas”, disse Maria Elisângela.

A ideia da superioridade masculina utilizada como justificativa para os diferentes tipos de violência também existe em comunidades específicas, como por exemplo os quilombos.

“Existe uma diferença da mulher quilombola para a mulher preta. Nem toda mulher preta é oriunda da senzala. A mulher quilombola ainda está na roça, dentro das maneiras antigas de viver e ver a vida junto com esse parceiro, que na maioria das vezes é agressor. Essa submissão precisa ser quebrada para que a gente consiga combater a violência doméstica dentro do contexto quilombola”, reforçou.

A cor da resistência

A Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO) aderiu à campanha nacional de 21 dias de Ativismo Pelo Fim da Violência Contra a Mulher, que começou no dia 20 de novembro e terminará no dia 10 de dezembro, quando é celebrado o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Neste ano, a ação terá como foco a violência de gênero sob o recorte da vivência de mulheres negras, quilombolas, mulheres em situação de cárcere e também moradoras de ocupações urbanas, e será executada através do Núcleo Especializado de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher (Nudem). O objetivo é dar amparo e orientação para grupos mais específicos.

“Nós temos um projeto realizado pelo grupo de trabalho da Igualdade Racial, que é o ‘Escuta Quilombo’. Com o projeto, são feitas visitas aos quilombos e ofertado esse tipo de atendimento jurídico”, revelou Tatiana Bronzato, coordenadora do Nudem.

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“A grande parte das lideranças desses quilombos são mulheres e são elas que costumam solicitar essa presença. Sabemos que a violência doméstica e a pauta da desigualdade da mulher são presentes em todos os cenários, então, por isso, Nudem pretende também ingressar nesses espaços, para levar esse atendimento e essas orientações”, completou.

Tatiana destacou ainda que o núcleo tem o interesse em abranger as ações para servir como rede de apoio para todas as mulheres que sofreram qualquer tipo de violência no Estado de Goiás. “Através da campanha dos 21 dias de ativismo, nós optamos por ressaltar essa questão da dupla vulnerabilidade da mulher negra e também colocando a vivência de mulheres quilombolas, de ocupação e mulheres presas, para trazer à tona essas vulnerabilidades”.

Desafios

Além da conscientização para evitar que as agressões aconteçam, outros existem outros desafios. Um deles é a autonomia financeira. Segundo Maria Elisângela Barretos, muitas mulheres permanecem no ambiente de violência ou voltam para ele por não terem como sobreviver em outro cenário.

Por isso, a estrutura dos Direitos Humanos da Mulher e da Igualdade de Abadia de Goiás promove várias oficinas, como de corte e costura e música, para que essas mulheres, que são atendidas, comecem a aprender e se dedicar a novas atividades.

“O objetivo é alcançar a mulher dentro da impossibilidade de sair do local de agressão. A maioria está na roça, bem longe dos olhos das autoridades e não sei porquê não têm autonomia [financeira]. Tem família que nós precisamos pedir permissão para o marido para a mulher fazer o curso”, contou Eli.

Segundo o Nudem, outros tipos de suporte são dados a essas mulheres através dos programas da Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO). Esse amparo é feito a partir de medidas protetivas, atendimentos extrajudiciais (palestras e rodas de conversas), pedido de ofícios solicitando orientações, atuações estratégicas com calendário de atendimento, principalmente com mulheres que estão presas.

Outro entrave que está bem presente no cotidiano das vítimas de agressão é o receio de denunciar. Muitas mulheres ainda são reticentes por terem vergonha ou medo, principalmente de voltarem a ser violentadas no futuro pelo mesmo agressor.

Por parte das autoridades há um incentivo para que vítimas denunciem e um trabalho psicológico para que ela não volte ao espaço anterior.

“Essa questão de estar segura, de que terá um apoio rápido caso precise, sem dúvida que é um desafio. Mas outro grande desafio é a questão do ciclo da violência. Ainda é muito constante o retorno desses relacionamentos abusivos mesmo depois de agressões, xingamentos e enforcamentos. Elas ainda estão vivendo muito esse ciclo: agressão, efetiva agressão e a lua de mel, e nesse período de lua de mel é onde há de fato o retorno para esse relacionamento”, destacou Tatiana Bronzato.

Força e representatividade

Maria Elisângela, a Eli Barretos, durante atividade em Abadia de Goiás (Foto: Arquivo Pessoal/Eli Barretos)

Maria Elisângela é muito mais do que diretora presidente de remanescente quilombolas na comunidade Recantos Dourados e coordenadora municipal dos Direitos Humanos da Mulher e da Igualdade de Abadia de Goiás. Ela é uma sobrevivente, foi assim que ela se definiu em entrevista à Sagres.

“Sou descendente quilombola nagô, sou oriunda de duas medidas protetivas, de várias tentativas de assassinato, vários estupros e várias violências. Sou sobrevivente, é isso que motiva. Vejo com muita propriedade essa necessidade de se alcançar a identidade cultural, as raízes de pertencimento étnico de cada mulher remanescente quilombola”.

Hoje, com o trabalho que faz em Abadia de Goiás, carrega muito mais do que as experiências que teve ao longo da vida. “Eu tenho em mim pedaços de muitas cores, pedaços de muitas carnes e dores de muita gente”, disse.

E para viver e reviver muitas histórias semelhantes às suas, Eli precisa ser forte, assim como foi na época em que era violentada. Mas não foi fácil, e ela precisou de ajuda para superar o momento mais difícil de sua vida.

“Vendo outras mulheres que estavam em ‘naufrágios’ assim como eu fiquei. Mulheres que por vergonha não conseguem falar e buscar ajuda”, contou a diretora, que afirmou que isso a motivou a combater a violência doméstica em todas as suas esferas.

Maria Elisângela ainda reforçou que é preciso olhar com carinho para todos os tipos de violência, destacando que cada uma deve ser cuidada de maneira diferente.

“A pior violência doméstica, para mim, é a moral e a financeira. Esse tipo de violência que mata a mulher as poucos, que faz com que ela não tenha mais desejo de passar um batom e de se olhar no espelho. A violência física é terrível, mas é a que menos leva ao entendimento das denúncias. Então, nós temos essas violências que precisam ser tratadas também de maneiras diferentes”, finalizou.

Leis

Desde 2006 entrou em vigor a Lei 13.340, conhecida como Lei Maria da Penha, que visa punir os casos de violência contra a mulher. Ainda mais recentemente, em março de 2015, foi promulgada a Lei 13.104, que passou a considerar crime hediondo os homicídios cometidos “por razões de condição de sexo feminino”, ou seja, os assassinatos perpetrados contra uma pessoa simplesmente por ela ter nascido mulher.

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