Roma: A grandiosidade nas pequenas coisas. (Foto: internet/divulgação)

Diz-se que a fotografia em preto e branco é a mais fácil de criar, porque é naturalmente linda. Sebastião Salgado (fotógrafo brasileiro reconhecido internacionalmente pela sua expertise na técnica) há de discordar – com razão e autoridade!

“Roma”, novo filme de Alfonso Cuarón, elogiadíssimo pela fotografia em preto e branco, conta com o selo Netflix de qualidade. Aliás, esse é um dos cartões de visita do filme, que angariou certa polêmica desde o início, ao ser rejeitado pelo Festival de Cannes. O festival francês proibiu a competição de filmes que não houvessem sido exibidos em salas comerciais francesas – o que, na prática, afeta diretamente as plataformas de streaming. Em seu discurso de vencedor como melhor diretor, no Globo de Ouro, Cuarón inclusive alertou para o perigo desse tipo de limitação… mas isso é assunto para outra hora.

É um filme belíssimo. E é um filme chato. Depende do espectador. Porque o que está em jogo na obra de Cuarón não é a busca pelo sucesso comercial, mas o exercício pleno e supremo de técnicas cinematográficas apuradíssimas. E com um pé na nostalgia. Se o que você procura é diversão fácil, recomendo que vá dar mais uma volta pelo catálogo da empresa de streaming.

A produção traz o dia-a-dia de uma família mexicana, nos idos da década de 70, na Cidade do México, com um enfoque especial em Cleo, uma das empregadas. O nome do filme vem do bairro onde essas pessoas moram – Colonia Roma, ou simplesmente La Roma. Curiosamente, traz também uma aproximação com o gênero do neorrealismo italiano, inaugurado por Roberto Rosselinni em 1944, com o filme “Roma, cidade aberta”. A estética escolhida por Cuarón aqui lembra bastante esse movimento, que buscava a valorização da realidade, e a representação das características sociais e econômicas de determinada época e local (no Brasil, esse reflexo é sentido principalmente na filmografia de Nelson Pereira dos Santos e de todo o Cinema Novo, de modo geral). São filmes com extremo realismo, beirando o documentário, mas obviamente escorados nos alicerces da ficção. A escolha de Yalitza Aparicio, que não é atriz, para o papel principal reforça essa aproximação. A crítica social que permeia várias das cenas também guarda relação com o gênero.

Cuarón declarou recentemente que aproximadamente 90% do que vemos em seu filme vem diretamente de sua memória. É praticamente uma reconstituição da infância do diretor mexicano. E por esse motivo, pelo caráter pessoal e biográfico, é que ele quis assumir não só a direção, mas também o roteiro, a fotografia, a montagem e a produção do filme. É um verdadeiro “filme de autor”. E ainda assim, em sua fala quando recebeu o Globo de Ouro, disse que se sentia como um charlatão ao ser reconhecido por uma obra que contou, basicamente, com o registro de uma casa que já existia, com atores e atrizes que representaram a realidade de modo tão cru e natural. Quase um documentário. Modéstia do cara (não que o elenco não mereça todo o reconhecimento também, claro).

O que sobressai, entretanto, é mesmo a fotografia, que alguns podem achar simplista pela opção ao preto e branco – ‘achismo’ não conta. O que Cuarón faz na tela é uma aula de cinema. De técnicas cinematográficas. Desde os elementos de mise-en-scène (que, grosso modo, é a disposição dos elementos em cena), a coreografia dos personagens e, principalmente, dos figurantes; os movimentos de câmera sutis, mas capazes de ampliar absurdamente os cenários; a iluminação que reforça sem rebuscar… o espectador mais ansioso pode assistir e achar chato, porque aquilo é a representação perfeita da realidade, com o seu tempo vagaroso, seus detalhes excessivos. Mas ter a consciência de que é uma representação artificial, construída e planejada para ser assim, traz uma ideia da grandiosidade do trabalho que foi feito. A sincronia de elementos aparentemente casuais na tela, como o quebrar de uma xícara ou o vôo de um avião, tornam a experiência assustadoramente mágica (repare na minuciosidade da cena do protesto). Nada é acaso na tela que Cuarón pinta.

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Cleo (Yalitza Aparicio) brinca com Pepe (Marco Graf). O garoto seria o próprio Cuarón, na infância. (Foto: divulgação/internet)

À parte a questão visual, que é um verdadeiro deleite aos olhos, o filme capricha também na parte emocional, escorada na nostalgia. A vida de Cléo (inspirada em Libo, que trabalhou na casa de Cuarón em sua infância, e para quem o filme é dedicado) é a vida de milhares de outras empregadas domésticas no mundo inteiro. Parte essencial no funcionamento de inúmeros lares, mas nem sempre reconhecidas. Ela tá ali, em todas as cenas: discreta e essencial. Tímida, mas protagonista. E a última cena – não se preocupe, não vou contar – é a homenagem máxima do diretor à sua amiga, elevando-a a um status angelical mas lembrando sempre: tudo passa.

Domingo passado (6), “Roma” levou dois Globos de Ouro (melhor direção e melhor filme em língua estrangeira). Já havia levado o Leão de Ouro em Veneza, ano passado. Domingo agora (13), foram mais quatro estatuetas no Critic’s Choice Awards (o prêmio da crítica americana) – melhor filme estrangeiro, melhor filme, melhor fotografia e melhor direção. A temporada de premiações continua. E, ao que tudo indica, o caminho está só começando.