O sistema cicloviário brasileiro revela uma situação marcada pela desigualdade e ineficiência, conforme evidenciado no estudo intitulado “Priorizar o transporte ativo por bicicletas!” realizado pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), vinculado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo.

O jornalista Flávio Soares, mestrando da Escola Politécnica (Poli) da USP e membro da equipe de pesquisa do CEM, destaca os principais aspectos analisados na construção de ciclovias e ciclofaixas nas cidades, comparando a realidade atual com as projeções futuras, especialmente no contexto das desigualdades sociais.

O estudo define ciclovias como pistas exclusivas para ciclistas, separadas fisicamente do tráfego comum por elevações ou barreiras de proteção. Estas, por sua vez, proporcionam um espaço seguro, afastando os ciclistas de automóveis e pedestres, identificadas por uma pintura diferenciada no asfalto e o símbolo de bicicleta desenhado no solo. Em contrapartida, ciclofaixas são áreas delimitadas na própria via, no mesmo nível da pista de rolamento, sinalizadas especificamente para o tráfego de bicicletas.

Outros espaços destinados aos usuários de bicicletas, como ciclorrotas, calçadas partilhadas e calçadas compartilhadas, são mencionados no estudo como formas de promover a mobilidade sustentável, embora não sejam exclusivos para ciclistas.

Lei Siclo

A Lei Siclo, que sanciona o Sistema Cicloviário do Município de São Paulo, abrange ciclofaixas, ciclovias, estacionamentos de bicicletas e outras infraestruturas, destacando a importância da regulamentação e implementação eficaz para influenciar positivamente na redução de espaços destinados a veículos. Paraciclos e bicicletários são mencionados como tipos de estacionamentos, sendo o segundo considerado mais seguro devido à presença de zeladoria presencial ou eletrônica.

No que diz respeito à implantação de ciclofaixas na cidade, o estudo enfatiza a necessidade de seguir as diretrizes estabelecidas pela legislação, incluindo a elaboração de um Plano Diretor e planos de mobilidade urbana pelo Plano Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU). O processo envolve propostas iniciais por órgãos governamentais de trânsito, feedback da população e o lançamento de projetos de curto, médio e longo prazo para estabelecer metas concretas.

Conforme o especialista, é realizado um diagnóstico momentâneo das estruturas, metas de quilometragem e, para finalizar, um mapa que vai servir de referência das localidades onde serão adicionados os traçados. 

Projetos propostos

Soares cita, em entrevista a Felipe Bueno do Jornal da USP, o caso de São Paulo para explicar esses projetos propostos: “São Paulo fez a sua primeira proposta, que inclusive teve participação social, a partir de uma rede de referência, o horizonte do pulmão. A meta é chegar a 1.800 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas até o ano de 2028 e estamos perto da metade desse caminho”. O estudo do CEM apontou que, em 2021, a extensão da malha cicloviária estava próxima dos 40% da meta.

O sistema cicloviário, juntamente com suas políticas de incentivo, tem o objetivo de promover a redução da emissão de gases de efeito estufa, do trânsito de automóveis individuais nas cidades e popularizar o uso da bicicleta como meio de transporte. Além disso, pretende contribuir na acessibilidade da população e efetivar o direito à cidade.

O professor explica que a falta de vivência nas ruas influencia no planejamento para construção de vias cicloviárias: “Um ciclista entende que uma via não é adequada por vários motivos, às vezes tem um tráfego de veículos pesados ou não tem a linha de desejo. Muita gente acha que o ciclista deveria circular somente em vias locais e, pelo contrário, as linhas de desejo passam pelas arteriais — avenidas da cidade que vão ser as oportunidades de trabalho, estudo ou comércio”. 

Impactos positivos e negativos

Segundo Soares, a implantação da infraestrutura cicloviária tende a apresentar resultados imediatos, como a ampliação do número de ciclistas, que se sentem mais seguros para iniciar a prática, e, especialmente, a quantidade de mulheres aumenta consideravelmente. Além disso, há uma canalização dos ciclistas que buscavam rotas mais seguras e mais conectadas para essas localidades.

Em contrapartida, quando essas estruturas não são construídas na linha de desejo dos ciclistas ou não são interligadas às principais vias, não ocorre esse aumento imediato de bicicletas.

A questão da segurança viária também é vital para esse impacto: “Ciclistas que estão na contramão, porque é o caminho mais curto, na calçada, ou seja, fora da estrutura, buscam proteção”, afirma o professor.

No Brasil

Um levantamento, feito entre 2022 e 2023 pela Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas), analisou todas as capitais brasileiras e apontou que o País apresenta uma tímida evolução do sistema cicloviário. No último ano, por exemplo, foi apresentado um acréscimo de 4%, atingindo a marca de totais 4.365 km e, em média, as capitais brasileiras apresentam 161,7 km de rota — foram incluídas apenas ciclofaixas e ciclovias no monitoramento e não foi analisada a qualidade das infraestruturas.

O PNMU determina que o transporte não motorizado seja priorizado nas cidades com mais de 20 mil habitantes, ou seja, esse número indica o baixo esforço das Prefeituras na construção de espaços destinados a bicicletas. Foi realizada uma relação entre o número de ciclofaixas e ciclovias e o de habitantes nas capitais, sendo o primeiro lugar do ranking ocupado por Florianópolis, que disponibiliza uma média de 22 km de malha cicloviária por 100 mil indivíduos.

Além disso, Palmas (TO), Maceió (AL) e Brasília (DF) ocupam os três primeiros lugares na lista das cidades que mais cresceram, em números porcentuais de quilômetros construídos durante o período, com cerca de 40%, 27% e 21%, respectivamente.

Na lista que relaciona o número das vias exclusivas para ciclistas e de moradores, o município de São Paulo aparece na 19ª posição, mesmo apresentando a maior malha cicloviária entre as capitais do País, com 689,1 km. Isto se conecta com o fato de a cidade possuir a maior frota de veículos do Brasil, concomitantemente. Apesar dos quase 700 km de ciclovias e ciclofaixas, parte delas está sumindo por conta da deterioração das estruturas e de obras de recapeamento.

Cenário desigual

A cidade de São Paulo não mensura e não monitora as desigualdades relacionadas à mobilidade ativa, apesar do seu sistema cicloviário ter o objetivo de reduzi-las. A partir disso, o estudo do CEM apontou vários fatores que reforçam relações desiguais na cidade, como a restrição das bicicletas compartilhadas e a concentração de ciclovias e ciclofaixas nas regiões centrais, mais ricas e com mais automóveis.

As poucas estruturas localizadas nas áreas periféricas estão, em geral, desconectadas da malha principal e, nas zonas com baixo índice de veículos, nota-se a ausência dessas vias exclusivas.

Flávio Soares comenta que esse cenário exclui a população que mais necessita do transporte ativo: “É investido mais no centro, onde já possui estrutura de transporte público com curtas distâncias e onde as pessoas andam de veículo motorizado, isto é, você já tem oferta de transporte para as pessoas migrarem”.

Censo 2010 apontou que a renda média do município de São Paulo é de R$ 1.125,00. Nesse sentido, um levantamento expôs que os moradores a 300 metros das ciclovias, ciclofaixas e bicicletas compartilhadas possuem renda 43% e 223% maior, respectivamente, do que a média e quase 80% da população dispõe de automóvel individual.

Essas zonas com maior infraestrutura cicloviária possuem concentração de pessoas brancas de classe alta, enquanto nas regiões menos atendidas por essas infraestruturas moram majoritariamente indivíduos negros de classe baixa. “É uma população de alta renda e branca, principalmente, e, com isso, a cidade passa a ser para menos pessoas do que ela deveria ser”, finaliza o professor.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 10 – Redução das Desigualdades; ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis

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