A história de Toni e David começa em Londres, na Inglaterra, ainda em março de 1990. O paranaense Toni Reis estava no país como parte de uma maratona de viagens na Europa. Do outro lado, estava o britânico David Harrad. 

Após décadas marcadas por trâmites na justiça, lutas para reconhecimento e barreiras jurídicas e sociais, o casal adotou três crianças: Alyson, Jéssica e Filipe. Hoje, os três estão com 22, 20 e 17 anos, respectivamente.

David e Toni são conhecidos por abrir caminhos para a comunidade a qual defendem. Afinal, foram o primeiro casal homoafetivo a adotar crianças no Brasil, apoiados por uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

Marcos importantes

Após 33 anos juntos, David e Toni colecionam marcos importantes quando se trata de reconhecimento de direitos. A começar pela decisão do Conselho Nacional de Imigração que, em 2005, permitiu pela primeira vez que um estrangeiro permanecesse no Brasil por ter união com brasileiro do mesmo sexo. 

Antes disso, David passou por uma sequência árdua de pedidos à justiça, insegurança e em certo momento, até precisou retornar ao Reino Unido por um período. Além disso, o casal também celebra o fato de terem sido o primeiro casal gay no estado do Paraná a possuir união estável reconhecida em cartório.

Não menos importante, também são pioneiros no campo da adoção homoafetiva. Para a Constituição Brasileira, a família é definida como uma das principais instituições no país. No entanto, foi apenas em 2015 que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito à adoção por casais homoafetivos.

Família

“Desde antes de nos conhecermos, os dois tinham vontade de ser pais. Naquela época,há 40 anos atrás, não parecia ser possível que um casal gay adotasse crianças”, relembra David. Ele conta que depois de três anos juntos, tomaram a decisão de entrar oficialmente com o processo de adoção. 

Porém, o processo só seria possível após David receber o visto que permitisse sua estadia permanente no Brasil. “A maior dificuldade que eu tive não foi a reação das pessoas, mas de não ter uma legislação que permitisse eu ficar enquanto parceiro de uma pessoa do mesmo sexo. Passei pelas maiores dificuldades durante anos para poder resolver isso”, destaca David ao pensar nos primeiros anos no país.

Naquele cenário, a adoção por pessoas solteiras era permitida, mas não havia casos antecedentes de adoções feitas por casais homoafetivos. Para ambos, era importante que a adoção fosse conjunta, uma maneira de oferecer às crianças a garantia de direitos. Além disso, na ausência de um deles, o outro passa a ter a guarda oficial.

 Assim, a possibilidade de não adotarem como um casal não estava em discussão. Estavam decididos a “bater na porta” das autoridades que poderiam viabilizar o sonho compartilhado.

“Fizemos um planejamento, um mapa de risco, lemos muitos livros sobre adoção, fizemos muitos cursos, e em 2005 decidimos entrar com toda a papelada”, conta Toni. 

Desafios

Foi apenas em 2011 que todos os esforços começaram a dar sinais de que algo estava prestes a mudar. Na época, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não havia publicado decisão oficial sobre a adoção por casais homoafetivos (ela viria apenas em 2015).

Em 2008, o casal chegou a receber autorização para adotarem, porém, com restrições. “O juiz decidiu que poderíamos adotar meninas acima de 10 anos. A idade era porque ele queria que a criança tivesse discernimento de que tipo de família iria adotar ela”, afirma David.

O casal considerou a decisão preconceituosa. Na época, o Tribunal de Justiça do Paraná chegou a anular a decisão. No entanto, o Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ). 

A afirmação era de que casais do mesmo sexo não formavam uma entidade familiar, e assim, não poderiam adotar em conjunto.

”Era uma decisão nossa. Sabíamos o que nós queríamos e então buscamos advogadas, padrinhos, madrinhas, amigos. Algumas pessoas diziam que ‘estavam arrumando para a cabeça’”, relembra Toni.

Reconhecimento

Em maio de 2011, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou pela primeira vez as relações entre pessoas do mesmo sexo às formadas por homens e mulheres. Na prática, a decisão formalizou a garantia de novos direitos.

Um ano antes, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), identificou cerca de 60 mil casais homoafetivos no país.

Assim, a decisão do STF passou a embasar juízes de instâncias inferiores e em cada estado, os profissionais poderiam fazer avaliações individuais.

“Uma juíza do Rio de Janeiro, de onde vieram as 3 crianças, entendeu a decisão do STF como suficiente para a adoção”, recorda David. 

Foi assim que em 2011, Toni e David conheceram Alyson, o menino de 10 anos e a primeira criança a ser adotada pelo casal. No final do período de convivência, em julho de 2012, ganharam a guarda definitiva do filho.

A adoção virou notícia e a repercussão dividiu opiniões. Para o casal, o debate foi importante, visto que trouxe a questão à tona. Ambos acreditam que a visibilidade é fundamental para a formação de uma nova consciência sobre o tema.

“Família para mim são as pessoas por quem você tem amor, afeto, carinho, responsabilidades e preocupações. Pessoas com quem você pode contar. Pelo menos é isso o que eu tenho na minha família, muito amor”, defende Toni.

Três viram cinco

Um pouco mais de dois anos após Alyson entrar para a família, Toni e David, que já haviam sinalizado interesse em adotar mais uma criança, receberam um comunicado do serviço social da mesma Vara, no estado do Rio de Janeiro.

Naquele outono de 2014, eles poderiam conhecer Jéssica, de 11 anos. Mas desde o princípio, o casal foi avisado de que ela convivia com um irmão, Filipe, de 8 anos. Nesse sentido, a adoção deveria ser conjunta.

Foto: Arquivo Pessoal

Foi assim que os três, agora, eram uma família de cinco. A história que começou na Inglaterra, agora misturava três crianças do Rio de Janeiro, no novo lar em Curitiba.

Nas palavras de Toni, foi após os primeiros encontros com as crianças e pela escuta da palavra “pai”, que a noção de paternidade foi construída.  “Foi um momento emocionante, eu não chorei perto das crianças mas chorei separadamente. Essa palavra pra mim é uma canção de ninar”, compara.

Construção

“Foi tudo muito novo, mas foi bom”, diz Filipe, o filho caçula entre os três irmãos. Até os 8 anos, Filipe estava acostumado a conviver apenas com a sua irmã Jéssica. Após a adoção, as relações também aumentaram, assim como suas oportunidades.

“Para uma criança que saiu do Rio de Janeiro e não sabia nem ler e escrever… Eu já escrevi um livro, o Alyson também. E a gente continua correndo atrás”, diz. Ele conta que assuntos como preconceito e diversidade não demoraram para aparecer na família.

“Era conversado bastante. Meus pais sempre falavam dos LGBTs e sobre os preconceitos. Quando ficamos maiores, foi se aprofundando mais no assunto. Eu não me arrependo de ter conhecido, é bom abrir a mente”, destaca.

Sobre o assunto, Toni destaca que na casa da família, não havia espaço para tabus, sobretudo para os desafios que fazem parte de pessoas da comunidade LGBTQUIA+.

”Conversamos sobre tudo e toda pergunta será respondida com a verdade. Nós temos tranquilidade para administrar os conflitos de forma muito saudável”, explica.

Velhos dilemas

Filipe, hoje com 17 anos, é o único que continua a morar na casa dos pais. No entanto, não esconde o desejo de apostar em seus sonhos. “Eu estudo, corro atrás das minhas coisas”, garante. Ao falar sobre os irmãos, ele diz que “cada um tem suas estratégias”, e diz que o trio ainda está no processo de descobertas sobre planos para o futuro.

Como um típico adolescente, carrega mais de um tipo de paixão. Ao responder sobre como se vê nos próximos anos, diz que gosta de “tudo um pouco”. Os interesses vão desde a veterinária, até os esportes. Mas, uma carreira parece se sobressair. 

“Se fosse por mim, eu seguiria a carreira de luta”, diz sorrindo. Com o pai, David, ao lado, o assunto já parece ter sido tópico de conversas passadas.

“Sobretudo com o Felipe, não posso chegar e falar: tem que fazer assim ou assado porque já sei que não vai cair bem”, brinca David.

História em páginas

“Família Harrad Reis: Uma família de todas as cores e todos os amores”, esse é o título do livro escrito “à dez mãos” e lançado em 2021. Na obra, aparecem detalhes da história de Toni e David, o processo para assumirem a sua sexualidade e a jornada de adoção.

“Para mim foi um pouco diferente. No começo eu achei meio estranho um livro com uma família inteira escrevendo. Mas, no final, ficou muito bonito e incrível. O livro conta a nossa história, o que meus pais passaram e o que a gente passou pra chegar até aqui”, define Filipe.

Em 1992, Toni e David criaram o Grupo Dignidade, pautado pela luta por políticas públicas para pessoas da comunidade LGBT e a articulação de campanhas contra o preconceito. Além do livro em família, já publicaram outros livros sobre a temática.

“Eu vejo que estamos bem melhor do que 500 anos atrás. Existem pessoas que estão lá na Idade Média. E há pessoas que não se atualizaram ainda nos conceitos. Então, é uma questão cultural. A cultura  não dá saltos, mas ela está mudando”, reflete Toni.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 10 – Redução de Desigualdades.

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