Arthur Barcelos
Arthur Barcelos
Apaixonado por futebol e geopolítica, é o especialista de futebol internacional da Sagres e neste espaço tem o objetivo de agregar os dois temas com curiosidades e histórias do mundo da bola.

Arábia Saudita: a nova ordem do futebol mundial

É possível competir com o futebol europeu? Tentativas não faltaram, no Ocidente e no Oriente. Estados Unidos, Arábia Saudita, Japão, Emirados Árabes Unidos, Catar e China são exemplos de países que apostaram alto para popularizar e desenvolver o esporte nacionalmente e, claro, atrair atenção internacional.

Desde os anos 1970, com as transmissões mundo afora e o futebol cada vez mais dominante no gosto popular, nações sem tradição no esporte buscaram investir em grandes nomes para crescer. Maior campeão mundial, o Brasil naturalmente foi o principal alvo e diversos jogadores experientes foram para mercados ditos alternativos.

E apesar dos craques brasileiros terem tido uma presença marcante e muito popular, esses países seguiram marginalizados no cenário internacional do mundo do futebol. Para além de serem ídolos do clube do coração ou de um time popular do Brasil, o sonho do aspirante a jogador profissional seguiu sendo a Europa.

Isso ainda não mudou, inclusive. Por diversos fatores, o futebol europeu segue soberano quando se trata de poder financeiro e competitivo. Querendo ou não, para se tornar um jogador histórico hoje, você precisa ter uma carreira consolidada no Velho Continente. É o que o mercado determina.

O esporte como ferramenta geopolítica

Com o dinheiro praticamente infinito das riquezas naturais da região, como petróleo e gás, o mundo árabe entendeu essa lógica com o passar do tempo. Ao invés de tentar competir como outrora, passou a ser parceiro. Não só no futebol, a propósito. Aliás, a parceria se tornou muito mais determinante em outros setores.

Ao reconhecer o seu papel decisivo na economia, os países árabes também passaram a aspirar um protagonismo geopolítico. Depois de décadas de parcerias com o mundo ocidental, se tornando importantes aliados com as maiores nações, perceberam também a importância do esporte para conquistar esse lugar de liderança mundial.

O último grande exemplo foi a Copa do Mundo de 2022, realizada pelo Catar – a primeira por um país do Oriente Médio. Mas a realização do maior evento do futebol não está à altura da ambição dos países da região, que sonham com mais competições, como os Jogos Olímpicos. O último Mundial é a prova de que investimento no esporte atrai atenção.

Enquanto emiradenses e cataris seguem sócios e aliados dos europeus, com o controle de grandes clubes do dito melhor futebol do mundo e investimentos bilionários, os sauditas querem mudar essa lógica. Ao aproveitar a crise que a Europa passa, financeira e política, querem deixar de ser o intermediário e tomar o protagonismo.

Com as altas taxas de juros e a inflação no mundo ocidental, o dinheiro saudita é muito bem-vindo pelos países europeus. Em contrapartida, a Arábia Saudita tenta limpar as manchas de uma nação com histórias que a cultura ocidental não tolera. Trata-se do maior exemplo de sporstwashing atual. Ou seja, o uso do esporte como arma geopolítica.

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A compra do Newcastle, no ano passado, foi o primeiro grande passo nesse sentido. Para isso, contou com o poderoso Fundo de Investimento Público (PIF, na sigla em inglês), fundo soberano administrado pela monarquia saudita, que pressionou o governo britânico a persuadir a Premier League a aceitar a entrada do país na maior liga de futebol do mundo.

A ambição é acompanhada pelos mais de 600 bilhões de dólares, cerca de R$ 3 trilhões, que o fundo é avaliado. O dinheiro parece infinito, mesmo para o custoso mundo do futebol. Se a Copa do Mundo de 2030 parece um sonho distante, até para manter as boas relações com o Ocidente, a edição seguinte é um desejo mais que real – assim como a Olimpíada.

Outro passo importante foi trazer Cristiano Ronaldo, um dos principais jogadores do futebol mundial e que, por si só, atrai muita atenção. Com um contrato que vai além dos serviços que o português pode prestar dentro de campo, e vencimentos de 200 milhões de dólares por ano, o atacante rapidamente entendeu a sua função no cenário.

Apesar do insucesso no primeiro ano pelo Al Nassr, o jogador desconversou sobre estar insatisfeito em viver e jogar na Arábia Saudita. “Estou feliz aqui e continuarei a jogar no Campeonato Saudita na próxima temporada. Se continuar nessa direção, dentro de cinco anos a liga se tornará uma das cinco maiores do mundo”, disse CR7.

A princípio, as falas do português não chamaram atenção. Já sem espaço de relevância no futebol europeu, a ida para o mundo árabe foi entendida como um “plano de aposentadoria”, como foi para muitos craques brasileiros do passado. No entanto, a lógica rapidamente inverteu nas semanas seguintes.

A nova ordem do futebol mundial

Ao anunciar o controle dos quatro principais clubes do país, através do “Projeto de Investimento e Privatização de Clubes Desportivos”, com o fundo responsável por 75% da propriedade de Al Ittihad, Al Nassr, Al Hilal e Al Ahli, o PIF mostrou o seu verdadeiro objetivo: tornar a Arábia Saudita uma potência do futebol.

Para isso, a promessa de um poderoso investimento de 1 bilhão de dólares para atrair novos jogadores e popularizar a liga nacional para o resto do mundo. Cristiano Ronaldo, portanto, foi apenas o primeiro de uma série de craques do futebol europeu a desembarcar no país, contrariando a tendência de outros tempos.

Ao invés de jogadores de veteranos ou promessas de clubes sul-americanos, desta vez o alvo voltou-se para jogadores consolidados na Europa. Como Karim Benzema, atual Bola de Ouro, que abriu mão do contrato com o Real Madrid para assinar com o Al Ittihad, atual campeão saudita, logo acompanhado de N’Golo Kanté, ex-Chelsea.

O investimento também não tem se limitado a atletas em fim de contrato, e o Al Hilal já desembolsou mais de 55 milhões de euros pela transferência do volante português Rúben Neves. E não deve parar por aí: Bernardo Silva (Manchester City), Mohamed Salah (Liverpool) e Romelu Lukaku (Chelsea) são alguns dos craques na mira dos sauditas.

Questionamentos

Na nova lógica do mercado, os jogadores deixaram de ser procurados por um clube específico para serem negociados através de um fundo de investimento. Al Ittihad, Al Nassr, Al Hilal e Al Ahli servem apenas de destino para os atletas, enquanto é o PIF quem negocia e contrata as novas estrelas do futebol local.

Para além do conflito de interesses, como o Chelsea, que negociou Édouard Mendy, Kalidou Koulibaly e Hakim Ziyech com o PIF, um dos investidores no fundo que controle o clube inglês, instituições tradicionais e jogadores consolidados do futebol se tornaram meros peões, manipulados por algo muito maior.

Apesar de ter rejeitado a proposta de 400 milhões de dólares por ano para ser jogador do Al Hilal, Lionel Messi, a maior estrela do esporte há quase duas décadas, também está profundamente envolvido no processo de sporstwashing saudita. “Embaixador do turismo” do país há um ano, aceitou ceder a sua imagem para ajudar na promoção da Arábia Saudita para o Ocidente.

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