Na última quinta-feira (14), foram completadas sete semanas desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. Em quase dois meses de batalhas, são mais de 2 mil mortes confirmadas de civis e outras dezenas de milhares de militares ucranianos e russos, além dos quase 5 milhões de refugiados e cerca de 12 milhões de desabrigados, no maior êxodo de civis no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial.
Em meio ao campo de guerra que se tornou o território ucraniano, o futebol no país, por motivos óbvios, parou. Na verdade, a bola não rola no Campeonato Ucraniano desde a segunda semana de dezembro por conta do severo inverno no Leste Europeu entre dezembro e janeiro. Depois de intertemporada em países ao sul da Ucrânia, a primeira divisão retornaria em 25 de fevereiro. Um dia antes, a invasão russa.
Um chute contra a guerra
Com os torneios paralisados desde então e nenhuma perspectiva para o retorno, os clubes ucranianos encontraram uma nova forma para se manterem ativos e, principalmente, exerceram o seu papel social. Desde a última semana, as principais equipes tiveram uma autorização excepcional para deixarem a Ucrânia por um motivo especial: a realização de partidas amistosas para arrecadar fundos a fim de ajudar o país.
Maior expoente do futebol local nas últimas duas décadas e também dono do único título europeu de um clube ucraniano, o Shakhtar foi quem puxou a fila. No último dia 9, enfrentou o Olympiacos na Grécia, enquanto na quinta-feira (14) visitou o Lechia Gdansk na Polônia. Na terça-feira (19), o amistoso será contra o Fenerbahçe, em Istambul. Na agenda, também tem um encontro com o Hajduk Split, na Croácia, no próximo dia 1º.
A iniciativa, de toda forma, não é exclusiva do Shakhtar. O Dínamo Kiev, maior campeão nacional, também já entrou em campo contra Legia Varsóvia e Galatasaray na última semana, e tem uma agenda movimentada até o fim do mês, com amistosos contra Cluj, Borussia Dortmund e Dínamo Zagreb. Todos os jogos nas casas dos adversários, como uma forma de propagar a mensagem de paz e arrecadar mais fundos.
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Turnê pela paz
Através de seu site, o Shakhtar ressaltou que a iniciativa se deu através de parceria com a patrocinadora SkyUp, companhia aérea ucraniana de baixo custo, e que também contou com apoio do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia. De acordo com o clube, “todos os lucros da venda de ingressos e publicidade serão repassados para organizações voluntárias, médicos e também em ajuda às crianças afetadas pela guerra”.
Em nota, o Shakhtar reforçou ainda as doações realizadas desde o início da guerra através de Rinat Akhmetov, empresário dono do clube e do conglomerado do setor energético SCM, considerado o homem mais rico da Ucrânia. Segundo o clube, cerca de 1,4 bilhões de grívnias – a moeda ucraniana (mais de R$ 220 milhões) – foram doados pela fundação e os demais negócios do magnata.
No primeiro jogo da Shakhtar Global Tour for Peace – Turnê Mundial pela Paz do Shakhtar, em tradução livre -, foram arrecadados 3,2 milhões de grívnias (mais de R$ 500 mil). Entre mensagens contra a guerra e manifestações de apoio à Ucrânia, o Shakhtar também homenageou as cidades que têm resistido às investidas russas, com seus nomes nas camisas de jogo, como Mariupol, Kharkiv, Chernihiv, Kherson e entre outros.
“Queremos falar sobre guerra e paz na Ucrânia durante esses jogos. Sobre a terrível guerra que a Rússia lançou contra a Ucrânia. Sobre o sofrimento e a destruição que essa guerra trouxe para o nosso país. Sobre paz e a necessidade de acabar essa loucura, voltar para a vida normal e reconstruir o país. As nossas mensagens são simples: ‘Parem a Guerra na Ucrânia’ e ‘Futebol pela Paz’, isso já diz tudo”. - Sergei Palkin, diretor executivo do Shakhtar
Como símbolo da mensagem, um garoto de 12 anos de Mariupol foi escolhido para entrar em campo pelo seu time do coração e marcar o gol da vitória contra o Lechia. Dmytro Keda, chegou a frequentar jogos do Shakhtar na Donbas Arena, onde o time de Donetsk não atua desde 2014. Depois de três semanas de tensão em uma das cidades mais afetadas, ‘Dima’ conseguiu fugir de Mariupol com a sua família a tempo.
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Reconstrução do time
Em meio a isso tudo, tem o lado esportivo do Shakhtar, um time acostumado a grandes competições continentais e com craques internacionais. Dos 13 brasileiros originais do elenco desta temporada, seis tomaram outro rumo após a janela especial criada pela Fifa, que permitiu que atletas de clubes ucranianos e russos se transferissem. Foi o caso de muitos brasileiros, como Edson Fernando, contratado pelo Atlético Goianiense.
O Internacional foi quem mais esteve atento à situação, com o uruguaio Carlos de Pena, do Dínamo Kiev, e Wanderson, do Krasnodar, enquanto do Shakhtar trouxe o zagueiro Vitão, por empréstimo, e o meio-campista Alan Patrick, em definitivo. Já o Corinthians repatriou o volante Maycon e o atacante Júnior Moraes, ambos também do Shakhtar. Ainda deixaram o clube o atacante Tetê, para o Lyon, e o lateral Vinícius Tobias, para o Real Madrid.
Seguem vinculados ao Shakhtar os laterais Dodô e Ismaily, o zagueiro Marlon, o volante Marcos Antônio, o meia-atacante Pedrinho e os atacantes David Neres e Fernando. Entre os estrangeiros do elenco, também entram na lista os atacantes Manor Solomon, de Israel, e Lassina Traoré, de Burquina. Sem esquecer do treinador italiano Roberto De Zerbi e a sua comissão técnica, que seguem comandando o time nos amistosos.
Os brasileiros e os demais, no entanto, ainda não se juntaram ao grupo – e nem há perspectiva para que isso aconteça em um primeiro tempo -, que atualmente conta apenas com ucranianos. Diferente dos estrangeiros, os ucranianos não puderam deixar o país no início da guerra. Depois de quase dois meses abrigados em bunkers, só receberam a licença após permissão especial do governo.
O jovem Giorgi Sudakov, que chegou a organizar entregas de mantimentos aos mais necessitados, também não se juntou aos compatriotas na Turquia. No seu caso, para acompanhar a esposa e o nascimento de seu filho. Para completar o grupo para os amistosos, o Shakhtar recrutou jogadores de outras equipes, ex-atletas da sua base e desempregados, além de jovens do time sub-19.

Do time principal, participaram dos dois primeiros jogos amistoso os goleiros Anatolii Trubin e Andriy Pyatov, os zagueiros Valerii Bondar e Mykola Matviienko, o volante Taras Stepanenko e o meia-atacante Mykhailo Mudryk. Um misto de juventude e experiência, com veteranos da geração super campeã do clube junto com crias da promissora geração lançada recentemente. Todos serão importantes na reconstrução do time.
Do time sub-19, foram convocados Dmytro Kapinus, Danyil Udod, Maryan Farina e Kyrylo Siheev, enquanto também foram jogadores do Mariupol, como Petro Stasyuk, Dmytro Topalov e Dmytro Myshnyov, assim como Artem Bondarenko, Dmytro Kryskiv, Maksym Chekh e Andrii Boriachuk, atletas ligados ao Shakhtar e que estavam emprestados ao próprio Mariupol e entre outros clubes.
O principal destaque, entretanto, é Yaroslav Rakytskyi, defensor ucraniano que rescindiu contrato com o Zenit depois da invasão russa. Cria do Shakhtar, é considerado um dos principais jogadores da sua geração, mas desde a transferência para o clube de São Petersburgo, controlado pela Gazprom, estatal russa e maior exportadora de gás do mundo, em janeiro de 2019, passou a ser ignorado pela seleção ucraniana.
O próprio jogador não facilitou muito a sua situação no período, após ter se recusado a cantar o hino ucraniano durante algumas ocasiões depois que separatistas pró-Rússia tomaram conta da região de Donbas, em 2014. Mas a rescisão de contrato com o Zenit foi uma volta atrás de Rakytskyi, convidado pelo Shakhtar para se juntar ao grupo durante o mês de amistosos e retornar ao seu clube de origem.
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