A tarefa de realizar analises acerca dos eventos internacionais é, sem dúvida, complexa e fascinante. Por vezes nos deparamos com eventos e coincidências, que eu diria que são, no mínimo, perturbadoras. Ao realizarmos as pesquisas e discussões para a edição 144 do podcast Sagres Internacional, eu e o jornalista Rubens Salomão nos remetemos a uma estarrecedora comunicação, entre o Controle da Nasa e os tripulantes da Missão dedicada ao reparo do telescópio espacial Hubble. Atente para o teor do diálogo dessa comunicação:

– Controle da Nasa (Houston): – Explorer, aqui é Houston.

– Nave Explorer, em missão para reparar o telescópio espacial Hubble: – Pode falar, Houston.

– Controle da Nasa (Houston): – Temos a informação que um satélite russo foi alvejado por um míssil. O impacto gerou uma nuvem de destroços orbitando a 32 km/hora. A atual órbita dos destroços não interfere em sua trajetória. Vamos mantê-los informados sobre qualquer mudança…

– Nave Explorer: Entendido, Houston.

(…)

– Controle da Nasa (Houston): – ISS, aqui é Houston…, Explorer, aqui é Houston…

– Nave Explorer: – Prossiga, Houston.

–  Controle da Nasa (Houston): – Abortar missão, repito, abortar missão. Iniciar desconexão de emergência do Hubble, começar procedimento de reentrada. ISS, iniciar evacuação.

– Nave Explorer: – Entendido, Houston, em ação. Matt, retorne imediatamente para a Explorer.

(…)

– Matt Kowalski, comandante da missão de conserto do telescópio Hubble: – Houston, elabore…

– Controle da Nasa (Houston): Destroços do ataque a míssil causou uma reação em cadeia que alcançou outros satélites criando novos destroços, viajam mais rápido que uma bala em direção à sua altitude…

(…)

– Matt Kowalski: – Houston, atualize…

– Controle da Nasa: Temos uma reação em cadeia em larga escala, está confirmado que é um efeito involuntário da destruição de um satélite pelos russos.

– Matt Kowalski: – Os russos destruíram seu próprio satélite. Provavelmente um satélite espião sem utilidade, virou uma granada. (…).

– Controle da Nasa: – Explorer, novos dados chegando. (…) A reação em cadeia está fora de controle e se expandindo rapidamente.  Múltiplos satélites atingidos e outros serão destruídos. (…) Os sistemas de telecomunicação estão inativos, espera-se um blackout nas comunicações a qualquer momento…

(…)

– Matt Kowalski: – Metade da América acabou de perder o Facebook…

Bem, na verdade esse diálogo não é de uma situação real. Trata-se das cenas iniciais do filme “Gravidade”, lançado em 2013, ganhador de sete oscars ou óscares, dirigido por Alfonso Cuarón e estrelado por Sandra Bullock e George Clooney. Todavia, nosso interesse inicial aqui não é o filme em si, mas como, por vezes, a ficção aproxima-se da realidade de forma surpreendente e até assustadora.

Sandra Bullock foi uma das protagonistas do filme Gravidade (2013).

Acredito que quando se busca estabelecer uma relação entre a ficção científica, levada às telas de cinema e que antecipam eventos que depois se concretizam na vida real, é praticamente inevitável não fazermos uma referência antológica ao filme, de 1902, “Le Voyage dans la lune” (Viagem à Lua), produzido pelo cineasta francês George Mélies, no qual um canhão projeta um foguete no olho da Lua. Porém, o que parecia mera ficção, tornou realidade décadas depois, em 1969, com o projeto da Nasa, Apollo 11, quando Neil Armstrong, primeiro homem a pisar na Lua, proferiu, naquele dia 20 de julho, a célebre frase:

“Um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade”.

Neil Armstrong (1969)

Porém, gostaria de ousar um pouco mais nessa relação, na qual a ficção se materializa no mundo fático. Dessa forma, não vou me restringir apenas às aspirações genéricas do ser humano, como chegar à Lua ou utilizar aparelhos de alta tecnologia, para as quais já há algum estudo ou projeção. Interessa-me apontar como exemplo uma espantosa situação na qual a narrativa ficcional mais parece um prenúncio ou profecia, tamanha verossimilhança.

A situação em questão é o episódio 17 da 11ª temporada da série de desenho animado “The Simpsons”, que foi ao ar em 19 de janeiro do ano 2000 — “Bart to The Future” —, nesse episódio, Bart Simpson tem uma visão do futuro e pôde ver a eleição da irmã, Lisa Simpson, para presidente dos Estados Unidos, em 2030. Como presidente eleita, Lisa se via diante de um difícil desafio, qual seja, recuperar a economia dos EUA depois de um desastroso governo do presidente Donald Trump. A questão é que o episódio é do ano 2000 e Trump só se elegeria presidente em 2016. Uma “previsão” da ficção com 16 anos de antecedência. É precisamente disso que estou falando.

Lisa Simpson se torna presidente dos Estados Unidos no episódio “Bart to The Future”.

Mas retornemos ao diálogo das cenas iniciais do filme “Gravidade”, estrelado há 8 anos, e de como podemos relacioná-lo com eventos atuais.

No mundo real, no último dia 15 de novembro de 2021, a Rússia realizou um teste com um míssil espacial e utilizou como alvo um de seus antigos satélites espiões, desativado, o Kosmos-1408, pesando mais de uma tonelada e lançado em 1982.  O problema é que a destruição desse satélite gerou cerca de 1,5 mil destroços viajando a uma velocidade de 28 mil km/h, e com os quais a Estação Espacial Internacional (ISS) cruzou várias vezes. Esses destroços representaram uma ameaça para a ISS, que orbita a 420 km da superfície terrestre, e forçaram a tripulação, composta por quatro estadunidenses, um alemão e dois russos, a se abrigarem em cápsulas para evasão, ou seja, naves de retorno.

O jornal inglês Daily Mail divulgou, no dia 17 de novembro, o áudio do momento dramático, no qual alertava o astronauta da Nasa e engenheiro de voo da ISS, Mark Vande Hei, que a tripulação precisava se proteger em virtude da possibilidade de uma grave colisão com os destroços do satélite russo. Só depois de duas horas de tensão, durante as quais a ISS passou duas vezes pelo campo de destroços, é que a Nasa avaliou que a situação era de segurança e a tripulação pode sair do estado de alerta.

Jens Stoltenberg, chefe da Otan, criticou com veemência o teste dos russos. Segundo ele, foi um ato irresponsável e que gerou grande quantidade de lixo espacial, o que representa um risco para a atividade civil no espaço.

Acrescentou ainda que as entidades internacionais devem ficar alertas, pois a Rússia, ao desenvolver e testar seus novos sistemas de armas, que podem derrubar satélites, é uma ameaça para a infraestrutura de informações e telecomunicações de outras nações.

Segundo o secretário de Defesa do Reino Unido, Ben Wallace, a ação deliberada dos russos mostra desprezo total pela segurança, proteção e sustentabilidade do espaço.

É importante salientarmos que esse tipo de teste não é inédito e já provocou reações semelhantes, em momentos anteriores. Assim, já estamos vivenciando uma espécie de guerra nas estrelas há algum tempo.

No contexto da Guerra Fria, a URSS saiu na frente na Corrida Espacial e lançou, em 1957, o primeiro satélite artificial no espaço, o Sputnik I. Este feito dos soviéticos deixou os EUA sobressaltados.

O presidente Dwight Eisenhower criou o termo Crise do Sputnik para classificar a ameaça concreta que a URSS passou a representar para a segurança militar dos EUA, pois um foguete similar ao que lançou o Sputnik poderia, facilmente, levar uma ogiva atômica a qualquer parte do planeta em questão de minutos. Eisenhower determinou total empenho para alcançar e superar os soviéticos. Os EUA lançariam seu primeiro satélite, os Explorer I, em janeiro de 1958.  

Presidente Dwight Eisenhower.

O processo de corrida espacial foi tão acelerado e envolveu tanto investimento que, em outubro de 1959, os EUA realizaram o primeiro teste de uma arma antissatélite, quando um avião bombardeiro B-47 lançou um foguete para interceptar o satélite estadunidense Explorer 6. Este feito materializava as palavras ditas em 1957 pelo presidente Eisenhower:

“Deve ser dada a máxima prioridade a objetivos de defesa relacionados com o espaço, porque contribuem para nossa segurança imediata”.

O presidente Dwight Eisenhower (1957)

A verdade é que quanto mais avançam as tecnologias, mais as disputas pelo espaço extraterrestre e as demonstrações de força se intensificam. O mais preocupante é que, diferentemente do período da ordem bipolar (EUA x URSS), na atualidade mais países estão desenvolvendo armas e estratégias que envolvem satélites potencialmente armados com bombas, armas laser e espaçonaves para evasão em casos de emergência. Assim, passamos de uma fascinante narrativa de ficção científica para uma realidade dura e muito perigosa.

Em janeiro de 2007, a China confirmou que havia feito um teste com míssil antissatélite e destruído um de seus antigos satélites, mas reagiu às críticas dos EUA e de outros países, negando as denúncias de que estaria alimentando uma corrida armamentista no espaço.

Liu Jianchao, porta-voz da China à época, afirmou que o teste chinês não tinha sido dirigido contra nenhum país e que não representava ameaça. Segundo ele, a China sempre defendeu o uso pacífico do espaço, é contrária à colocação de armas nesse território e, portanto, não alimentava a ideia de incentivar uma corrida armamentista. Mas, apesar dessas declarações, estava patente a demonstração do poderio chinês na disputa pelo poder militar espacial.

Em novembro do mesmo ano, o presidente norte-americano, George W. Bush, conseguiu aprovar um orçamento de US$ 100 milhões para a criação de armas espaciais capazes de atingir alvos em qualquer lugar do planeta em apenas duas horas.

Em fevereiro de 2008, os EUA destruíram um de seus satélites espiões defeituoso, que orbitava a 210 quilômetros acima do Oceano Pacífico. Segundo o Pentágono, o satélite USA 193 carregava combustível tóxico que poderia ser liberado em uma grande área e teria perdido o controle pouco depois de seu lançamento, em 2006, representando uma ameaça concreta.

O governo dos EUA afirmou que apenas o tanque de combustível foi atingido, o que permitiria a reentrada segura do objeto na atmosfera terrestre. Apesar dessa justificativa, a China acusou os Estados Unidos de agir de forma unilateral e de acordo com suas conveniências, uma vez que havia criticado ferozmente uma ação semelhante dos chineses em 2007.

A Rússia também teceu duras críticas à operação estadunidense e considerou que a ação do governo de Washington não passou de uma desculpa esfarrapada para dar uma resposta à altura à demonstração de força feita pela China em 2007.

Em março de 2019, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, anunciou pela TV, com grande orgulho, que a “Missão Shakti” (Difícil de Alcançar), para desenvolver um míssil ASAT (termo para Arma Antissatélite), havia sido um sucesso, ou seja, o serviço militar indiano havia obtido êxito no teste de um míssil, especializado em abater objetos na órbita da Terra.

Primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi.

Com muito entusiasmo, afirmou que o satélite artificial indiano havia sido totalmente destruído e que, assim, a Índia inseria-se no seleto grupo das superpotências espaciais, agora composto por EUA, Rússia, China e Índia. Outro aspecto importante do sucesso dessa missão foi o claro recado para seus principais adversários regionais, China e Paquistão.

Em dezembro de 2019, o presidente Donald Trump oficializou o financiamento para uma unidade do Pentágono focada na guerra no espaço, a Força Espacial dos Estados Unidos. Na ocasião, Trump afirmou que o espaço se constituía no mais novo campo de guerra do mundo.

Com um orçamento inicial de US$ 40 milhões, em seu primeiro ano, o objetivo prático da Força Espacial não é colocar tropas militares na órbita terrestre, mas, sim, operar sistemas capazes de proteger principalmente os satélites, dos Estados Unidos e de seus aliados, usados para comunicação, vigilância e monitoramento meteorológico. Além disso, é uma resposta efetiva aos avanços, nessa área, realizados pela China e Rússia.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, reagiu ao anúncio de Trump com a afirmação de que a expansão americana no espaço representa uma ameaça aos interesses da Rússia. Segundo Putin, os EUA se consideram os únicos com direito de realizar ações militares no espaço e que a Rússia saberia dar resposta à altura.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin. (Foto: Evgenii Sribnyi/Shutterstock.com)

O que se questiona diante de todos esses eventos preocupantes é: não há nenhum tipo de acordo a respeito dessas questões?

Bem, logo no início da corrida espacial essa já era uma preocupação, tanto assim que em 1959 EUA e URSS concordaram em debater a questão espacial e foi criado Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (Copuos, sigla em inglês), que foi composto inicialmente por 24 países participantes. Porém, as duas superpotências entenderam que as questões militares, pertinentes ao espaço, deveriam ser estabelecidas separadamente em um outro tratado.

Após anos de debates, em 10 de outubro de 1967 foi elaborado o acordo aprovado por 107 países, incluindo o Brasil. O tratado tem um nome longo: Tratado Sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes ou, de forma mais simplificada, Tratado do Espaço.

Esse tratado está em vigência até os nossos dias e é considerado como “Carta Magna” do espaço exterior. Por esse tratado, o espaço exterior não poderá ser objeto de apropriação por nenhuma nação, estabelecendo-se o princípio da não-apropriação do espaço cósmico.  Nesse sentido, o tratado busca deixar claro que o espaço fora da terra é um território da comunidade internacional.

Assim, ao longo dos anos outros acordos têm sido feitos para questões cada vez mais específicas. Porém, o se questiona é até que ponto esses acordos têm efetiva aplicação prática ou são apenas meras orientações. Caso sejam meras orientações, em caso de descumprimento não resultaria em sanções objetivas contra os infratores. Essa situação parece deixar claro que o tratado em questão já necessite de profunda atualização diante dos eventos que têm marcado as duas primeiras décadas do século XXI. Não há duvida de que estamos diante de uma nova corrida espacial com tons de corrida armamentista. 

Não bastassem todas essas questões que envolvem os governos, há ainda a novidade da exploração privada do espaço, que carece de uma regulamentação muito mais específica

O presidente dos EUA, Donald Trump. (Foto: Isac Nóbrega/PR)

Em abril de 2020, durante a gestão do presidente Donald Trump, foi feito um acordo entre a Nasa e o Departamento de Comércio dos EUA, que autorizou a atuação do setor privado no espaço, dando direito à exploração comercial e ao uso de qualquer recurso ali encontrado. Será que essa atitude unilateral, do governo estadunidense, não compromete, em alguma medida, o Tratado do Espaço?

Pois bem, entendo que esse tipo de discussão estará cada vez mais presente no nosso cotidiano. Questões como: a ameaça que o lixo espacial na órbita da terra representa para as comunicações, comércio e monitoramento de segurança; a fragilidade dos acordos internacionais sobre o a exploração e o uso do espaço; a ambição de nações em se colocarem como potências espaciais.

Bem, a partir dessas reflexões acredito que podemos concluir que é inegável que todos esses aspectos representam, verdadeiramente, uma realidade preocupante que definitivamente saiu da mera ficção para a nossa realidade imediata.

Norberto Salomão é advogado, historiador, mestre em Ciências da Religião, especialista em Mídia e Educação, professor de História e Geopolítica.