Arthur Barcelos
Arthur Barcelos
Apaixonado por futebol e geopolítica, é o especialista de futebol internacional da Sagres e neste espaço tem o objetivo de agregar os dois temas com curiosidades e histórias do mundo da bola.

Além do dinheiro: religião atrai jogadores muçulmanos para novo mercado

Desde jogadores consagrados, como Cristiano Ronaldo e Neymar, a jovens promessas, como Gabri Veiga, até atletas disputados por gigantes, como Marcelo Brozovic e Sergej Milinkovic-Savic. Por que tantos craques do futebol europeu preteriram a Champions League e aceitaram jogar na Arábia Saudita?

A princípio, o dinheiro é, talvez, o principal argumento para justificar transferências até então inimagináveis na vida real. Mas será que somente os milionários salários, bônus e acordos comerciais explicam todas essas mudanças? Para muitos que toparam o novo desafio, provavelmente sim, foi apenas pelo dinheiro.

Entretanto, uma situação tem sido subestimada nessa nova tendência do futebol. O aspecto financeiro, com certeza, tem um grande peso, mas não necessariamente explica tudo. Um fator que não conseguimos quantificar e que, no fim das contas, tem um valor importante em uma escolha como essa é a religião.

Em uma sociedade onde jogadores são celebridades, com grandes mansões e supercarros, esse é um assunto que passa despercebido muitas vezes. Mas para além dos contratos milionários, até acima do patamar financeiro dos gigantes europeus, é possível observar uma característica peculiar de algumas novas estrelas do Campeonato Saudita.

A invasão muçulmana na Saudi Pro League

Apoiado pela política de investimentos do governo saudita, através do programa Visão 2030, que busca transformar a Arábia Saudita em um centro global, o Fundo de Investimento Público (PIF, na sigla em inglês) trouxe grandes estrelas para a liga de futebol local. Entre eles, estão alguns jogadores muçulmanos.

Se o príncipe-herdeiro Mohammad bin Salman quer melhorar a imagem do país no exterior e usa o sportswashing para isso, todavia não quer perder a identidade do seu país. Afinal, se consolidar como a maior nação muçulmana, e servir de referência e orgulho para o mundo árabe, também está entre as ambições da Arábia Saudita.

Ou seja, ter jogadores que sigam a fé islâmica e promovam essa imagem para o resto do mundo também é fundamental dentro do projeto. Do outro lado, morar no país da cidade sagrada do Islã, Meca, e passar os valores da religião cotidianamente também são atrativos importantes para os atletas e suas famílias.

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Dos 26 contratados pelo PIF para os quatro maiores clubes da liga – Al Hilal, Al Ittihad, Al Nassr e Al Ahli -, 10 são declaradamente muçulmanos. Muitos, inclusive, praticantes fiéis. Por isso, estar em um lugar e em um campeonato que respeitam a cultura, os ritos e a rotina da religião influencia consideravelmente.

Não é novidade que jogadores muçulmanos enfrentam barreiras para praticar sua fé na Europa, mesmo as grandes estrelas, como Mohamed Salah, atacante egípcio do Liverpool. Seja por conta do calendário e a rotina de jogos e treinos, como também pela discriminação e o desrespeito com suas práticas religiosas.

No Al Hilal, maior campeão nacional, estão o marroquino Yassine Bounou e o senegalês Kalidou Koulibaly. Já o Al Ittihad, atual campeão saudita, contratou os franceses N’Golo Kanté e Karim Benzema. No Al Nassr, chegaram o marfinense Seko Fofana e o senegalês Sadio Mané.

Mas a maior legião de atletas muçulmanos que reforçaram a liga está no Al Ahli, que subiu da segunda divisão e foi quem mais contratou na última janela. Além do brasileiro Roberto Firmino, a equipe também contratou o senegalês Édouard Mendy, o turco Merih Demiral, o marfinense Franck Kessié e o argelino Riyad Mahrez.

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Koulibaly (direita) é um muçulmano assíduo (Foto: Divulgação/Twitter @kkoulibaly26)

Capitaine du Coeur

Quem falou abertamente sobre a mudança para a Arábia Saudita foi Koulibaly, em entrevista ao jornal italiano La Gazzetta dello Sport em junho. Um ano depois de ser contratado pelo Chelsea, após passagem marcante no Napoli, o zagueiro senegalês se transferiu para o Al Hilal de Jorge Jesus e Neymar.

De Nápoles para Londres e, agora, Riade, tudo em menos de 12 meses. Em contraste com a mudança da Itália para a Inglaterra, “agora de forma radical e profunda. Mudei o continente e também o estilo de vida. Mas sabe de uma coisa? Estou muito contente pela minha escolha, por muitos motivos”.

Sobretudo, “estou feliz porque sou muçulmano e chego no país certo. É estimulante ser um dos primeiros a chegar em um campeonato em evolução, e espero ajudar a Arábia Saudita e o Al Hilal a escrever uma nova história no esporte. E, claro, tem esse contrato muito importante e valioso”.

Com o novo salário, “poderei ajudar toda a minha família a viver bem, dos meus pais aos meus primos, e sobretudo apoiar as atividades sociais da minha associação no Senegal, Capitaine du Coeur (“capitão do coração”, em francês). Começamos a construir uma clínica pediátrica na vila onde meus pais nasceram e se casaram, Ngano”.

“A clínica ajudará pelo menos 15 vilas próximas, onde hoje muitos que precisam de um hospital devem andar por cerca de 50 minutos. Mas tenho muitas outras ideias: investiremos muito no Senegal e na África Ocidental e ajudaremos os jovens. Eles são o futuro do país e do mundo”, afirmou.

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Koulibaly tem investido na vila onde seus pais cresceram, Ngano, no Senegal (Foto: Divulgação/Twitter @kkoulibaly26)

A porta não está aberta para todos

Em contraste com a chegada de estrelas internacionais, não são todos os migrantes que são bem-vindos na Arábia Saudita. O país, que depende da mão de obra estrangeira não só no futebol por causa de seu ambicioso programa de desenvolvimento, é acusado de diversas violações de direitos humanos, como contra os trabalhadores.

Se os que encontram emprego muitas vezes vivem em condições precárias e análogas à escravidão, outros nem mesmo conseguem atravessar a fronteira do país. De acordo com relatório do Human Rights Watch (‘Observatório dos Direitos Humanos’, em tradução livre do inglês), forças de segurança sauditas estão sistematicamente assassinando migrantes e refugiados da Etiópia.

Em um país onde as mulheres ainda precisam de um guardião legal e a liberdade de expressão é cerceada, até mesmo a presença dos craques estrangeiros levantou alguns questionamentos. Por exemplo, como eles poderão se comportar diante da sociedade saudita? Terão liberdade para fazer o que bem entenderem?

Futebol e religião

Quando Cristiano Ronaldo fez o sinal da cruz após comemorar um gol, logo surgiu essa dúvida. Afinal de contas, o catolicismo e a prática pública de outras religiões que não o islamismo são proibidos na Arábia Saudita. De uma maneira geral, o culto e a união de católicos e outros cristões só é possível de forma privada.

Itens como bíblias, crucifixos e entre outros objetos com símbolos religiosos que não pertencem ao islã também só devem ser utilizados privativamente. Em 2023, a Arábia Saudita ficou em 13º lugar na lista de lugares mais difíceis para ser cristão, do Open Doors World Watch (‘Observatório Mundial de Portas Abertas’, em tradução livre do inglês).

Em contraste com essas regras, Neymar foi outra estrela a mostrar um símbolo cristão sem o menor pudor. Durante seu desembarque em Riade, o atacante brasileiro usou um crucifixo. Mas assim como com Cristiano Ronaldo, não houve qualquer repercussão. Luxos de quem está praticamente acima da lei e estão lá para melhorar a imagem do país.

Afinal, mais do que apenas jogadores de futebol, Neymar, Cristiano Ronaldo e companhia são também garotos-propaganda da Arábia Saudita. Além da dupla, até mesmo Lionel Messi, que não atua na liga e rejeitou uma transferência para o Al Hilal, tem acordos comerciais milionários para promover o turismo no país.

Bem diferente de uma década atrás, quando o colombiano Juan Pablo Pino foi detido pela polícia religiosa da capital saudita. Isso por causa de suas tatuagens com referências cristãs, após a reclamação de clientes de um shopping. Pino precisou se desculpar e foi liberado após um funcionário do Al Nassr, seu clube, conversar com a polícia.

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