Para entender como Cristóvão se tornou fonte de inspiração para estudantes indígenas, é preciso mergulhar em sua trajetória na educação. A infância de Cristóvão Tsereroodi Tsoropre se passou na aldeia de São Marcos, do povo Xavante, onde nasceu, localizada próximo a Barra do Garças, no estado do Mato Grosso, a 380 km de Goiânia. 

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“Todo o meu estudo, desde o ensino fundamental I e II, tudo foi na aldeia, letramento e alfabetização pelos missionários que vieram da Europa para trabalhar na catequização dos indígenas”, relata o professor e intérprete da Língua Materna Indígena, em entrevista à Sagres. 

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Ao concluir o ensino fundamental, precisou deixar a aldeia em Barra do Garças e seguir para a cidade, em Presidente Prudente, interior de São Paulo, cerca de 900 km distante da região onde nasceu. Foi nesse momento que houve uma espécie de virada de chave. Cristóvão entendeu que a educação indígena, como vinha sendo feita, precisava ser repensada. Por que não colocar intérpretes em sala de aula para acompanhar os alunos indígenas?

“Tinha muita dificuldade na língua [portuguesa], não falava muito bem, mas entendia algumas coisas, eu eu fui parar no meio de alunos não-indígenas, em que o professor só falava português, e todas as outras disciplinas nessa língua. Eu era apenas um intruso no meio da sala”, recorda. 

Porém, voltar para a aldeia e largar os estudos, àquela altura, não era uma opção. Caminhara até ali com muito esforço, e era preciso continuar. “A distância sempre impedia que eu desistisse daquilo que eu estava fazendo naquele momento, que era estudar. Mas para estudar é preciso entender, compreender quem está falando, dando aula. Então eu desafiei o meu mundo”, pondera. 

Concluído o ensino médio no interior paulista, Cristóvão retornou para a região Centro-Oeste, mais especificamente para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde cursou filosofia. 

“Um curso que exige muito a compreensão da língua, porque exige muito raciocínio, pensamento filosófico. Eu fui, mas não por saber metaforizar, porém era algo que eu queria saber fazer. Desafiei novamente o meu mundinho de desentendimento”, afirma. 

Terminado o curso superior como um dos melhores estudantes da turma, voltou para Barra do Garças, onde ficou com os pais por apenas seis meses, até que recebeu um convite. “Foi quando a Secretaria Municipal de Educação de Barra do Garças me requisitou para assumir o departamento de Educação Indígena para acompanhar a formação dos professores Xavante do nosso município”, conta. 

Conquistada a liderança do povo Xavante da aldeia de São Marcos, Cristóvão começava a se tornar uma referência também na formação de professores da região, e voltou para a universidade para cursar história e entender sobre a origem do preconceito contra o povo indígena, herança do chamado “descobrimento” do Brasil, com a vinda dos europeus para o continente americano. 

“O curso me mostrou que na verdade aquelas expressões ditas pelos não-indígenas em relação ao povo Xavante e de todo o Brasil não eram verdade, porque quando [os indígenas] eram chamados de preguiçosos, os indígenas trabalhavam carregando as madeiras para navios mercantis dos europeus. Os indígenas sempre trabalharam, tirando riquezas. Esse trabalho braçal não foi visto pelos não-indígenas. O que ficou marcado é que os indígenas sempre foram chamados de preguiçosos”, pontua. 

Grande desafio e transformação da educação indígena

Em meio ao trabalho realizado junto aos professores no Mato Grosso, surgiu a oportunidade a partir de um programa da Secretaria Estadual de Educação de Goiás, cujo objetivo era entender o motivo da evasão escolar por parte dos alunos indígenas em Aragarças. 

“Os gestores das escolas procuraram entender qual era o grande desafio. Se era a permanência na cidade, se era moradia, alimentação ou se era outra coisa. Perceberam que os indígenas tinham casa, tinham onde morar, mas não tinham segurança para permanecer em sala de aula, e que o fator principal que tirava os alunos de sala de aula era a língua. O ‘não entender’ a língua portuguesa foi um fator crucial para muitos alunos que se matriculavam”, relata. 

Foi então que Cristóvão propôs que professores indígenas pudessem entrar em sala de aula para ajudar na tradução a esses alunos que estavam nos ensinos fundamental I e II e médio, ideia acatada pela Secretaria, então ‘Seduce’, em 2015. “Em outubro de 2015 foi implantado esse programa através da Seduc: Intérpretes da Língua Materna”, afirma Cristóvão. 

O programa teve início com Cristóvão e mais dois professores, em um trabalho incialmente realizado em três escolas de Aragarças. De acordo com um levantamento feito por Valéria Cavalcante da Silva Souza, atual gerente de Educação do Campo, Indígena e Quilombola da Seduc-GO, em monografia intitulada “INTÉRPRETES DA LÍNGUA INDÍGENA NAS ESCOLAS REGULARES NO ESTADO DE GOIÁS 2015 A 2017”, a partir da implementação do projeto, a então Seduce passou a levar em conta os seguintes critérios nas escolas da região:

1) A escola ao receber a matrícula de estudante indígena deve comunicar a Coordenação Regional de Educação, Cultura e Esporte a qual é solicitado o acompanhamento e orientação da Gerência do Campo, Quilombola e Indígena; 

2) Ao detectar neste acompanhamento e nas orientações que o estudante indígena se encontra com dificuldade em leitura, escrita, oralidade e interpretação na língua materna e língua portuguesa este estudante tem o direito a um professor intérprete na língua materna; 

3) Deve ser feito pela equipe da escola uma visita à família deste estudante para verificar quais as causas da vinda para a cidade e em que condições sociais e culturais estão residindo; 

4) O contrato do professor intérprete deve respeitar o sistema de linhagem e os clãs existentes em algumas etnias; 

5) Na maioria destes casos o professor indígena não é graduado, portanto, é preciso que este professor também esteja estudando para desenvolver o trabalho como professor Intérprete na língua materna; 

6) O professor Intérprete na língua materna precisa ter o domínio nas duas línguas e habilidades de leitura, escrita, oralidade, interpretação e numeramento.  

De acordo com o levantamento, as unidades escolares à época foram “orientadas a rever os Projetos Políticos Pedagógicos suas metas e ações em relação ao trabalho do professor intérprete na língua materna, aos estudantes com toda a diversidade e as demandas política, pedagógica, social e cultural a qual a escola está inserida”.

A partir de então, era responsabilidade dos professores indígenas garantir a segurança dos alunos indígenas em sala de aula e acompanhá-los na alfabetização para compreensão da língua portuguesa e na tradução de todos os conteúdos ministrados nas demais disciplinas. 

“Trabalhar em sala com eles na tradução, no entendimento, na alfabetização, no numeramento. Tudo o que se fazia na alfabetização cabia ao nosso trabalho. A partir daí fomos evoluindo e compreendendo a dimensão desse trabalho, esse papel que a Seduc nos responsabilizou: acompanhar aluno indígena nas escolas”, argumenta. 

No fim de 2022, Cristóvão Tsereroodi Tsor concluiu o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEO), da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Câmpus Cora Coralina, na Cidade de Goiás, tornando-se o primeiro indígena do PPGEO a defender sua pesquisa intitulada “Pandemia da Covid-19 para o povo Xavante da aldeia de São Marcos (MT): relatos de um cacique”, sob a orientação da professora doutora Lorranne Gomes da Silva e coorientação do professor doutor Edevaldo Aparecido Souza.

“Essa pesquisa é de muita importância para o fortalecimento dos debates e reflexões sobre os povos indígenas no Brasil. A universidade se faz como um espaço essencial de direito, portanto, ainda é incipiente o ingresso de indígenas, sobretudo, em programas de pós-graduação”, afirma Lorrane Gomes. 

Ao centro, Cristóvão em defesa de dissertação de mestrado pela UEG em 2022 (Foto: UEG TV/YouTube)

Fortalecimento 

De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), os povos indígenas têm direito a uma Educação bilíngue, diferenciada, específica e intercultural. Ou seja, a Educação Indígena segue conteúdos didáticos, currículos e programas diferenciados que se adequam à realidade das comunidades.  

De acordo com a Seduc, o fortalecimento das práticas culturais e da língua materna de cada comunidade é um dos objetivos da Educação Indígena. A Pasta reitera que essa educaçaõ deve reafirmar as identidades étnicas e dar acesso a conhecimentos técnicos e científicos.

Ainda segundo a Seduc, durante a pandemia, nas escolas regulares, o atendimento por profissionais intérpretes também se tornou remoto, com ajuda de plataformas digitais. Essa relação entre aluno e intérprete, segundo Valéria Cavalcante, foi um dos fatores que garantiram a inexistência de evasão escolar de estudantes indígenas entre os anos de 2020 e 2021.

“Esse acompanhamento do profissional intérprete não é só na língua, com a oralidade, leitura, escrita e atividades de numeramento. Mas é a inclusão deste estudante em uma tentativa de construir as perspectivas de interculturalidade de saberes”, afirma Valéria. “Apesar das dificuldades, o trabalho tem acontecido e o processo de ensino-aprendizagem tem avançado”, complementa.

À Sagres, Cristóvão relata que tem trabalhado com alunos da Escola Estadual Luiz Dias Paes Leme, em Aragarças, sendo 4 no sexto ano, e 1 no sétimo. De 2015 para cá, seis estudantes ingressaram no ensino superior e dois já concluíram. No caso mais recente, a graduação em enfermagem, no início de 2023.

Para Cristóvão, a única forma de garantir a segurança do aluno indígena nas escolas e a continuidade dos estudos sem evasão escolar é o acompanhamento em sala de aula. 

“As minhas experiências, aquilo que aprendi durante essa trajetória, me deu essa segurança de que realmente eu tenho que trabalhar em sala de aula com os alunos, porque se não tiver alguém que os oriente, que os acompanhe em todo esse processo, será muito fácil eles perceberem que exista outro caminho fora da educação. Se eu cheguei até aqui, muitos deles podem chegar também”, conclui.

Foto: UEG TV /YouTube

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