Para além da escola, os professores são verdadeiros agentes transformadores de vidas. E Maria Aparecida Santana, a professora Cida que ensina português, já viu muitos alunos chegarem para o primeiro dia de aula e dizer que são capazes de aprender. “Que sentido tem eu ser professora se o aluno não precisa de mim?”, questionou.

Cida já lecionou para todas as faixas etárias nos seus 23 anos de profissão. Ela começou com aulas de geografia para adolescentes, já ensinou crianças e atualmente é professora do Centro de Educação para Jovens e Adultos (CEJA). “É um ensino diferenciado por serem adultos. Às vezes você senta ao lado e dedica um tempo para eles. Isso é gratificante, me preenche como professora”, afirmou. 

Salvador Antônio Rodrigues diz que o amor de Cida pela profissão é visível em sala de aula. “Ela me ensinava com educação, com prazer, parecia que sentia assim e a gente via aquilo ali”. Seu Salvador foi aluno da professora por um ano e meio em uma unidade do CEJA, quando já depois de aposentado ele resolveu voltar para a sala de aula e concluir o ensino médio.

Seu Salvador está com 66 anos de idade. Natural de Rubiataba e criado no município de Orizona, ele cresceu na roça e viveu no meio rural até os 19 anos de idade. Depois disso, trabalhou com terraplanagem até se mudar para Goiânia e ingressar na tesouraria da empresa HP Transportes. “Fui tesoureiro por muito tempo e acabei trabalhando no transporte coletivo até me aposentar em 2016. Hoje eu estou aposentado, mas em plena saúde, graças a Deus. Estou vivendo e levando minha vida”, contou. 

Enquanto ainda trabalhava na tesouraria, Salvador sonhava em se formar contador. No entanto, tinha algo em sua história que o impedia de realizar o desejo. 

“Lá na roça a gente estudava para fazer o nome e pronto. Então, quando eu vim para Goiânia foi justamente para estudar. E comecei a estudar, arrumei um emprego bom e achei que aquilo ali era pra sempre. Em determinado tempo lá [na tesouraria da empresa], eu não posso deixar de falar o que aconteceu, eu pendi para o lado da bebida alcoólica e parei de estudar. E aquilo era um peso que eu carregava nas costas”, relatou.

A realização de um sonho

Salvador disse que tinha tudo para realizar o sonho de ser contador e afirmou que ficou “meio revoltado” quando não conseguiu. Desta forma, seguiu na tesouraria até se aposentar em 2016. “Quando me aposentei, eu achei essa oportunidade de fazer o CEJA Universitário. Me matriculei para fazer o ensino médio lá e tirar esse peso das costas”, lembrou.

E foi sem mais sonhar em ser contador, mas com a firme meta de tirar o diploma de ensino médio que Salvador Antônio ingressou no CEJA depois dos 60 anos. Ele relata que não sentiu dificuldades e que foi muito bem recebido na escola, porém, ressaltou que recebeu críticas pela decisão.

“Você tem que aceitar as críticas porque não é fácil depois de sessenta e poucos anos falar que vai voltar a estudar. As pessoas, hoje principalmente essas mais novas, começam a te criticar. Mas foi um período muito bom e fui com a certeza que eu queria aquilo ali para mim”, disse. 

Salvador elogiou bastante os docentes da unidade escolar, mas tem uma professora em especial com quem ele mantém contato mesmo depois de formado. “Encontrei um quadro de professores muito bom que me ajudou muito nos meus estudos. Inclusive, com a professora Cida Santana de português conversava muito em particular sobre os problemas que eu tinha na vida e ela me ajudou a me recuperar”, contou. 

Cida Santana (Foto: Arquivo pessoal)

Salvador Antônio descreve a professora como “uma pedra brilhante que encontrei no caminho”. Ele diz que no momento que a conheceu precisava bem mais do que aprender português. “Eu estava envolvido na bebida alcoólica, virei aquela pessoa revoltada e não aceitava as coisas. E lá com ela, encontrei essa pessoa que me ouviu e me abri com ela. É uma pessoa que foi excelente no meu caminho nesse sentido, além de professora”, contou. 

Salvador garante que não era um aluno “tão difícil assim de aprender”, mas faz questão de ressaltar a paciência de Cida. “Eu gosto muito dela. E não é só por causa dela ser uma professora  que me ensinou, foi uma pessoa que apareceu na minha vida justamente no momento que eu estava precisando. Eu precisava mais de conversar com alguém naquele momento do que mesmo aprender o português”, disse.

Não é só o Salvador Antônio que admira a professora Cida. É recíproco. “Dentre muitos alunos, o seu Salvador se destacou com essa sede de aprender. Ele já era escritor, mas só depois dos 60 anos ele confessou que escrevia. E eu lia alguns poemas dele com palavras erradas, faltando letras, do jeito que ele fala ele escreve”, se divertiu ao relembrar os momentos.

Vidas transformadas

O Centro de Educação para Jovens e Adultos pode representar muito mais que o retorno à escola. Cida ressaltou que no CEJA é importante que os professores valorizem mais as pessoas e entendam que o aluno não absorverá tudo que é ensinado. 

“O que a gente vê nesses alunos é muito além do que eles podem aprender e EJA precisa enxergar esse outro lado do aluno. A EJA precisa dar importância ao que o aluno já sabe. Ele [Salvador Antônio] já era um poeta e o que foi bom da EJA é que ele criou coragem de ler a poesia dele para os outros”, contou.

Hoje, Salvador Antônio se descreve com muita facilidade e entusiasmo. “Sou uma pessoa que gosta de fazer letra de moda de viola, poesia e sou conhecido como o poeta goiano”, disse. 

Foto: Arquivo pessoal/Salvador Antônio

O poeta goiano sempre gostou de poesia. Escreve homenagens de Dia das Mulheres, Dia das Mães e aniversários, mas a maioria ainda faz para deixar guardado. Na poesia, na escrita, seu Salvador guarda aquilo que ainda sonha. “Eu já gravei três CDS falando os poemas, aquelas que quero fazer letra de moda de viola. Deixo gravado para caso alguém se interessar, se alguma dupla se interessar a gravar uma letra minha está à disposição”, relatou. 

O reconhecimento do universo sertanejo o poeta goiano ainda não tem, mas a felicidade de saber que a professora Cida gosta de suas poesias faz o Salvador Antônio mais feliz. “Eu fico tão grato quando ela fala que sou o poeta goiano ou então fala “bom dia meu poeta”. Eu fico muito satisfeito e muito contente de ter o reconhecimento dela”, revelou.

Foi aos 62 anos que Salvador Antônio deu o pontapé inicial para tirar das costas o “peso” que carregava por não ter cursado na adolescência o ensino médio. O poeta goiano estudou entre janeiro de 2018 e julho de 2019. No dia da formatura a felicidade que sentiu da foi tão grande que ficou pequena para o tamanho de uma unidade escolar do CEJA.

“Parece que eu estava me formando na faculdade mais granfina do planeta. Sabe aquela sensação de ‘eu venci’? Aquela sensação de ‘eu consegui’? E ainda me colocaram no oratório para falar em nome dos outros. Eu me senti realizado e foi ótimo”, compartilhou.

Durante a fala no oratório, Salvador surpreendeu a professora Cida Santana com uma homenagem. “Foi uma oportunidade que tive naquela hora de prestar uma homenagem à professora Cida Santana e dizer naquele momento para os outros professores que todos foram importantes na minha vida. Citei diretamente ela porque eu acho que foi uma peça-chave na minha vida e eu não podia deixar de prestar essa homenagem”, disse.

Maria Aparecida se recorda da homenagem que recebeu naquele dia com muito carinho. “A admiração dele para mim foi inédita. A gente sempre tem uns alunos que admiram a gente como professora, mas a admiração dele parece que excede. Na formatura ele levou a esposa e as filhas e me apresentou para a família dele com uma admiração extraordinária. Isso faz a gente se sentir e valorizada”, disse.

Foi dentro de uma sala de aula que Salvador Antônio, aposentado e com problemas pessoais, encontrou em uma professora a ajuda para transformar o seu sonho de concluir o ensino médio em realidade, mas também uma pessoa que o ajudou a transformar o seu dia a dia em algo muito melhor. 

“Ensinar é um dom. Ser professora para mim é exercer o dom que Deus me deu e eu exerço com muito prazer. […] Na escola dou aula e faço com prazer aquilo que estou fazendo. Eu não chamo sala de aula de trabalho, para mim é um prazer mesmo estar lá ajudando, transmitindo, sendo uma ferramenta”, relatou.   

Mesmo depois de já ter formado seu aluno, Cida continua recebendo mais uma homenagem de Salvador Antônio. “Fiz uma homenagem, coloquei num quadro e dei para ela de presente. Para mim foi um prazer da vida”, disse.

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