Recentemente, durante as expedições do projeto Deep-Ocean, financiado pela Fapesp, uma quantidade significativa de lixo foi identificada entre 200 e 1.500 metros de profundidade no mar, a aproximadamente 200 km da costa nos Estados de São Paulo e Santa Catarina.

A pesquisa, primeiro estudo científico sobre o lixo encontrado nas profundezas do mar brasileiro, publicado no Marine Pollution Bulletin por pesquisadores do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, foi liderada pela oceanógrafa Flávia Tiemi Masumoto e supervisionada pelo professor Marcelo Roberto Souto de Melo, ambos do Laboratório de Diversidade, Ecologia e Evolução de Peixes (Deep Lab) do IO.

Os peixes, considerados uma opção popular para uma alimentação saudável, podem carregar consigo fragmentos de lixo e substâncias contaminantes mesmo quando pescados em águas profundas, distantes das praias. A detecção desse tipo de material nas encostas continentais, que são habitats remotos e pouco explorados, evidencia a extensão do problema do lixo, que afeta todos os ecossistemas.

Inicialmente destinado a estudar a diversidade de peixes em águas profundas, o projeto encontrou uma quantidade surpreendente de lixo junto aos animais coletados. Embalagens de alimentos, sacolas plásticas, garrafas e utensílios de pesca foram comumente encontrados nas redes utilizadas, alguns dos quais eram materiais altamente tóxicos e prejudiciais ao meio ambiente, como tintas de embarcações e latas de óleo para motores.

Locais de coleta

Dos 31 locais de coleta, 16 a sudeste de Ilhabela (SP) e 15 próximos a Florianópolis (SC), apenas três não continham lixo junto aos peixes. O plástico foi o material mais prevalente, representando mais da metade dos detritos coletados e estava presente em todos os locais pesquisados. Em seguida, vieram os metais (14%), têxteis (11%), vidro (7%) e tintas de embarcações (6%). Outros tipos de itens somaram 17%.

Indícios sugerem que parte desse lixo pode estar no mar há décadas. Quando pesados, os objetos de vidro vencem, seguidos pelos de metal, de concreto e têxteis, com respectivamente 29%, 22%, 13% e 13% do peso total. “Nós conseguimos verificar a data de validade de alguns produtos. Tinha uma embalagem de coco ralado cuja data de fabricação era de 1996. Isso não significa que o material foi jogado naquela data, mas pode ser uma estimativa”, comenta Flávia, em entrevista a Ivan Conterno do Jornal da USP.

Flávia Tiemi Masumoto - Foto: Arquivo pessoal
Flávia Tiemi Masumoto – Foto: Arquivo pessoal

As coletas foram realizadas utilizando redes de pesca semelhantes às utilizadas na captura de camarão, arrastadas ao longo do fundo do oceano. Durante as expedições a bordo do Alpha Crucis, navio de pesquisa da USP, os resíduos sólidos eram triados e separados, e posteriormente analisados em laboratório, onde foram lavados, contados, medidos e pesados.

“Nas expedições, o foco eram os peixes de mar profundo, porém começou a vir muito lixo junto. Para mim, que estava na graduação, foi bem chocante. Então, Marcelo e eu decidimos triar o lixo que vinha junto ao invés de descartá-lo, separando por pontos de coleta.” Dessa forma, a estudante começou a descrever e mapear esse material em seu trabalho de conclusão de curso.

Descarte ilegal

Marcelo Roberto Souto de Melo - Foto: Lattes
Marcelo Roberto Souto de Melo – Foto: Lattes

O lixo marinho é mais prevalente na área próxima a São Paulo do que em Santa Catarina, possivelmente devido à densidade populacional mais alta no litoral paulista e ao maior tráfego de navios cargueiros na região, incluindo o Porto de Santos, o maior da América Latina, e às plataformas de exploração de óleo e gás na Bacia de Santos.

“A origem do lixo pode ser tanto o descarte no continente quanto diretamente no local. Como alguns compostos mais densos afundam rapidamente, é provável que tenham sido descartados pela tripulação de embarcações ou de plataformas, mas existe também a possibilidade de que as correntes marinhas transportem objetos com menor densidade, como as sacolas e embalagens plásticas” explica Marcelo.

Entre as maiores preocupações estão os blocos de tinta colhidos, que podem ser fonte de contaminantes. Nesse caso, o descarte durante a manutenção das embarcações seria a única explicação. “As tintas têm um composto que é justamente para que nenhum organismo fique aderido ao casco dos navios e plataformas, então são muito tóxicas para o meio ambiente”, ressalta Flávia.

Vale destacar que a descarga de substâncias nocivas ou perigosas no mar territorial brasileiro é proibida por lei desde 2000. De acordo com o professor, uma política para evitar essa poluição seria a fiscalização das empresas que operam no mar, com treinamento e conscientização da equipe a bordo. O material que já está no local, no entanto, dificilmente será retirado. “Recolher esse lixo não é viável tanto do ponto de vista econômico quanto logístico.”

Microplástico

Outro impacto apontado é a presença de microplásticos no oceano, que pode também resultar do processo de fragmentação de pedaços maiores de plástico e, consequentemente, ser ingerido pelos organismos, inclusive aqueles importantes comercialmente, como a merluza, por exemplo. 

Além disso, sabe-se que algumas espécies que migram verticalmente nos oceanos também podem ser uma fonte de microplástico para o mar profundo. “Algumas espécies de peixes ficam em regiões mais profundas durante o dia e à noite sobem para regiões mais rasas para se alimentarem. Eles servem como uma fonte de plástico para o mar profundo, porque podem comer o plástico da superfície e descer. Uma vez que são predados, esse material plástico pode passar na cadeia alimentar.”

Um indício de que os animais de mar profundo também consomem o que é despejado no oceano são grãos de milho e de soja encontrados no estômago de uma espécie de peixe-granadeiro coletada. Para entender melhor esse ciclo, o trabalho desenvolvido por Flávia em seu mestrado é o de estudar os impactos do lixo através da avaliação de microplástico ingerido pelos peixes apanhados no mesmo projeto. A próxima etapa será investigar a possibilidade de contaminação nos invertebrados encontrados em algumas amostras, como esponjas-do-mar, poliquetas e pequenos crustáceos.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 12 – Consumo e Produção Responsáveis; ODS 14 Vida na Água

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