No mês de julho, a pauta da Educação Domiciliar (Homeschooling) voltou a aparecer entre as pautas do poder judiciário no país. No Distrito Federal, uma reunião promovida pelo Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) declarou como inconstitucional ação que pretendia legalizar a prática da modalidade no território.

Nesse sentido, entre os argumentos usados, está o fato de que a regulação entraria em confronto com princípios estabelecidos por documentos como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A discussão

Um dos casos mais conhecidos envolvendo a Educação Domiciliar no país ocorreu em 2015, quando família do município de Canela (RS), recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), a fim de receber autorização para prosseguir com a prática da educação domiciliar.

Em 2018, o STF realizou o julgamento da possibilidade à nível nacional e, por 9 votos a 2, os ministros do Supremo não reconheceram a legalidade da modalidade. Ainda assim, a pauta persiste como alvo de discussões entre diferentes setores da sociedade.

Um exemplo das manifestações recentes é o Projeto de Lei n°1338, que chegou ao Senado Federal em 2022 e defendia a oferta domiciliar da educação básica.

“Não há hoje legislação que regulamente o homeschooling, então, qualquer análise sobre esse assunto deve ser feita pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, com alteração pelo Congresso Nacional, por se tratar de Lei Federal”, explica a professora do curso de Direito na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Maristela Souza.

Segundo ela, a situação atual no país aponta para ausência de legislação correspondente, o que inviabiliza o exercício reconhecido da modalidade. Nesse sentido, ela explica que é possível considerar que famílias que exercem a modalidade estão “sob risco jurídico”.

Constituição

“A educação domiciliar tem como base o princípio constitucional que deriva de um direito humano, que é o de liberdade educacional. Os pais e os próprios estudantes têm o direito à liberdade de escolher o modelo de ensino que deve ser ministrado a eles”, defende o representante da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), Carlos Reis.

A instituição é conhecida nacionalmente como representante das famílias que defendem a causa da Educação Domiciliar. Nesse sentido, atua na promoção de ações, cursos, palestras e outras mobilizações a favor da temática.

Segundo ele, a ANED interpreta que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não definiu a prática da Educação Domiciliar como inconstitucional, mas que “precisa de regulamentação”, aponta.

“Oficialmente, até o presente momento não existe uma legislação que respalde esse currículo na educação domiciliar”, afirma. Para ele, as 35 mil famílias que praticam a Educação Domiciliar no país, segundo dados da ANED, estão desamparadas.

“A regulamentação vai dizer, no caso brasileiro, como deve ser a avaliação e certificação desses estudantes. As famílias querem fazer, mas são prejudicadas porque o sistema não consegue absorvê-las nesse sentido”, diz.

Nesse contexto, a instituição defende a possibilidade de que escolas realizem a certificação dos estudantes advindos da educação domiciliar. Atualmente, famílias aderem ao Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), para o acesso do certificado de conclusão de etapas escolares.

Escolarização

Por outro lado, a pauta do chamado Homeschooling mobiliza críticas por grande parte dos educadores no país. Entre os pontos levantados, estão o prejuízo à socialização, a ausência de diversidade e o risco para comunidades mais vulnerabilizadas, em casos onde famílias optem pela modalidade, mesmo sem dispor das condições necessárias.

“Nada substitui a escola. Ela é o locus privilegiado para que as crianças obtenham aprendizado, socialização e tenham contato com a diversidade”, afirma a pós-doutora em Educação, Maria Celi Chaves Vasconcelos.

Para a pesquisadora, a escola representa um ponto importante no sentido de formação de memórias e desenvolvimento do indivíduo. Além disso, ela considera que o aumento das discussões em torno do tema também revela a influência de contextos distantes.

“Em um surpreendente movimento que ocorre a partir dos anos de 1990, muito por influência norte-americana, nós vamos ter uma onda de processos que estão demandando esse ‘novo’ formato de educação”, afirma.

Nesse sentido, ela avalia a possibilidade de que os pais selecionem os conteúdos que compõem o processo de aprendizado. “Uma das semelhanças desse movimento com o que se via no século XIX, é que quando não havia um sistema instituído com uma Base Comum, a própria família escolhia o que os seus filhos iriam estudar”, explica.

No Brasil, vigora a Base Nacional Comum Curricular, que teve atualização aprovada em 2017. Assim, o documento determina as competências, habilidades e aprendizagens para os anos da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.

Diversidade

“O problema é que se você não estuda a diversidade e não tem um olhar crítico sobre as questões, essa formação se dará dentro de um único ponto de vista”, aponta a pesquisadora.

“A importância da escola é que quando ela oferece todos os conhecimentos, ela oferece para se discutir, debater, concordar ou não”, complementa.

Em contrapartida, para o representante da ANED, o cenário atual das escolas não permite o contato com a diversidade. Para Carlos Reis, conselheiro da instituição, entre os motivos para a adesão à Educação Domiciliar está o que classifica como “aprendizado personalizado”.

“Em uma escola, pública ou particular, em um bairro mais nobre ou na periferia, quando a criança entra em uma sala de aula, desde o primeiro até o último horário, ela só convive basicamente com os iguais”, sugere.

Memórias

“As memórias da escola fazem parte da nossa constituição. As memórias que nos fizeram como somos. Muito do que nós por vezes acabamos fazendo em nossa vida, é consequência daquilo que na escola nos propomos fazer ou superar”, defende a pesquisadora Maria Celi Vasconcelos, autora de estudos científicos sobre o tema.

Ela defende que os elementos que compõem o universo da escola, e que refletem na construção do aprendizado e do desenvolvimento do cidadão, não podem ser reproduzidos em nenhum outro lugar.

“Assim como se proporciona desafios e memórias frustrantes, também proporcionam incentivos, perseveranças. Fora da escola, a casa nunca vai ter conseguir esses elementos e vai fazer com que as pessoas oriundas desse sistema desconheçam as possibilidades que esse espaço oferece”, alerta.

Diante disso, a professora sugere que a regulamentação da Educação Domiciliar considere apenas casos específicos, mediante apresentação de justificativas pelos pais.

“Nós temos algumas crianças cujos pais trabalham constantemente, famílias de artistas, esportistas ou circenses, por exemplo. Manter a possibilidade em casos restritos”, aponta.

Desenvolvimento

“Saber conviver em grupo, como é o caso do ambiente escolar, não exclui a dimensão da individualidade de cada aluno ou aluna. Um bom professor sabe que é importante conhecer cada aluno e ao mesmo tempo, conhecer cada grupo de cada sala de aula com a qual trabalha, pois cada grupo vai criando sua própria dinâmica e sua própria história”, aponta a Consultora e Pesquisadora Sênior do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas (FCC) e representante do Núcleo Ciência Pela Infância, Maria Malta Campos.

De acordo com a pesquisadora, o núcleo de pesquisas realizou estudo específico sobre a temática e, entre os resultados observados, chama a atenção a perda significativa no desenvolvimento físico.

“Fomos um dos países que ficamos com as escolas fechadas mais tempo, quase 2 anos letivos completos, e a pesquisa da UFRJ com crianças do Rio de Janeiro (RJ) e de Sobral (CE) mostrou que sem ir a pré-escola, as crianças demonstraram em testes específicos uma perda significativa em seu desenvolvimento físico”, afirma.

Para representantes da Associação Nacional de Ensino Domiciliar, a modalidade não exclui a possibilidade de atividades extracurriculares, entre elas, exemplos praticados ao ar livre. Para Carlos Reis, a modalidade oferece “flexibilidade e maior adaptação”.

Demandas

“No caso brasileiro também seria importante consultar nossas estatísticas sobre dados a respeito: da escolaridade da população conforme a faixa de renda e o número de filhos; da existência de livros e recursos didáticos importantes nos domicílios, tais como espaço adequado para as crianças fazerem suas tarefas escolares, com os recursos necessários para isso”, afirma Maria Malta Campos.

Para ela, o ambiente escolar precisa ser reforçado como indispensável, sobretudo em contextos marcados por mudanças complexas e aceleradas. “Em eras passadas, as famílias e certos grupos humanos davam conta de preparar as crianças e jovens para a vida adulta, mas hoje isso não é mais possível na maior parte do mundo”, ressalta.

“Além da questão da formação específica do professor, que é diferente conforme a faixa de idade do aluno, a relação dos pais com os filhos possui uma outra especificidade. Por outro lado, eles podem ser importantes auxiliares dos filhos no estímulo e apoio a sua escolaridade, e é importante colocar o pai e a mãe, as pessoas próximas, e não somente a mãe, ou quem faz o papel dela”, complementa a pesquisadora.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 04 – Educação de Qualidade

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