As consequências do abandono afetivo estão ganhando espaço nos processos do Judiciário brasileiro. O termo é ligado a formação psicológica das pessoas, que têm direitos fundamentais violados e por causa da falta de assistência desenvolvem problemas mentais.

A Constituição Federal garante direitos às crianças, aos adolescentes e aos idosos por parte da família, da sociedade e do estado. A lei maior do país destaca que uma vida saudável inclui qualidade de vida, saúde, alimentação, educação, lazer, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária.

Portanto, esses grupos devem ser protegidos de discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão e salvas de toda forma de negligência. Sol Oliveira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em Goiás (IBDFAM-Goiás), explica que o conceito de abandono afetivo é subjetivo e caracterizado pela negligência afetiva parental na criação e assistência.  

“Ele é caracterizado principalmente quando um pai ou uma mãe é negligente ou cumpre inadequadamente com as responsabilidades afetivas em relação aos filhos e isso pode causar danos psicológicos, emocionais e comportamentais”, destacou.

Negligência afetiva

O abandono afetivo não é previsto em lei, por isso é amparado pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Estatuto da Pessoa Idosa. Ele não prevê obrigações patrimoniais, mas uma negligência moral de ordem afetiva.

“Um pai pode estar cumprindo integralmente com a pensão mas não estar cumprindo com as suas obrigações afetivas, uma obrigação que é moral. E quando eu falo moral, ela não é peculiar e não tem viés patrimonial, é a violação do dever moral de estar presente na vida do filho”, exemplificou a presidente do IBDFam em Goiás. 

Outro exemplo apontado pela especialista está no fato de que cinco milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai no registro de nascimento.  “A maioria convive com os pais, mas não estão legitimados. É então uma falta de cuidado e a Constituição fala dessa obrigação que se tem em relação aos filhos e às crianças”, disse.

Abandono afetivo nos tribunais

Apesar de citar as crianças, Sol Oliveira lembra que o abandono afetivo também ocorre com as pessoas idosas. “É um abandono afetivo inverso, que nada mais é que o desprezo dos filhos em relação aos pais idosos”, contou. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que o Brasil será o sexto país do mundo com o maior número de pessoas idosas em 2025. 

Sol destaca que a organização também aponta que o país terá ao menos 70 milhões de idosos em 2030. Crianças, adolescentes e idosos são faixas etárias que necessitam de cuidados para que cresçam e se desenvolvam saudavelmente e que tenham assistência para viver bem na velhice. 

Antes longe dos tribunais, a falta de assistência afetiva a essas pessoas agora pode ser reparada na Justiça. “O dever de cuidar vai além da pensão alimentícia, então eu recomendo às pessoas que se sintam abandonadas que busquem a Justiça para que seja feito uma análise e, se for o caso, essas pessoas serão imunizadas e reparadas”, contou Sol.

Jurisprudências

Superior Tribunal de Justiça (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)
Superior Tribunal de Justiça (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

O Judiciário brasileiro não tem uma lei específica para tipificar o abandono afetivo. O que ocorre nos casos que a Justiça já recebeu são jurisprudências, que é uma ciência da lei sobre decisões sedimentadas numa interpretação majoritária de um tribunal e torna-se entendimento repetidamente utilizado nos processos.

“O assunto é polêmico e controverso, o Supremo (STF) hoje já tem várias decisões e várias jurisprudências. Não tem uma lei, mas a própria Constituição fala que é um direito da criança ter assistência social e moral. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto da Pessoa Idosa também dizem desse cuidado e reciprocidade, e o Código Civil fala da reciprocidade familiar de cuidado entre pais e filhos”, explicou Oliveira.

De acordo com a especialista em direitos da família, o assunto também é controverso dentro do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “No STJ tem decisões diferentes e isso é assunto para muito tempo”, argumentou. Os casos são julgados sob as jurisprudências existentes, porém de forma individual.

“Hoje uma decisão sobre abandono afetivo é feita de forma individual analisando cada caso e por isso são jurisprudências. Então não tem uma lei e ela é fundamentada a partir de laudos e perícias de equipes especializadas de médicos e psicólogos. São esses laudos que fundamentam uma decisão do Judiciário”, explicou.

A identificação do abandono afetivo

Abandono afetivo gera problemas mentais e comportamentais (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Abandono afetivo gera problemas mentais e comportamentais (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Como mencionado no parágrafo anterior, a Justiça utiliza de perícias e laudos médicos para fundamentar uma decisão sobre abandono afetivo. A perícia identifica se a falta de assistência afetiva gerou problemas emocionais ou comportamentais para aplicar uma reparação civil.

Sol Oliveira exemplificou a identificação ou não do abandono afetivo em dois casos julgados que são de seu conhecimento. No primeiro, ela contou que um casal se separou e eles tinham um filho, e que logo em seguida o pai da criança constitui uma nova família.

“Ele mudou completamente [a vida da criança]. Tirou o plano de saúde do filho, mudou a escola particular para uma escola pública alegando um novo casamento, mas o pai continuou no mesmo emprego, com a vida dele estável e ele mudou a vida do filho dele”, disse. 

“Nesse caso nem precisou de um laudo técnico, ele foi amparado porque houve claramente um abandono afetivo. Ele simplesmente mudou a vida do filho”, afirmou.

Um caso sem abandono 

No segundo exemplo, Sol Oliveira destacou uma história em que uma moça procurou a Justiça para ter reconhecimento de paternidade e indenização por abandono afetivo. “Mas esse pai provou que ele não tinha conhecimento dessa filha”, resumiu.

Segundo a presidente do IBDFam, o pai da moça morava no interior e conheceu a mãe dela, que era de outra cidade, numa festa. “Eles ficaram uma noite juntos e ela foi embora, então nesse caso a Justiça negou. O que quero dizer é que a Justiça reconheceu a paternidade com os exames, mas negou o abandono afetivo em razão de que ele não tinha conhecimento da filha”, explicou.

Os casos são julgados individualmente e amparados nas três leis citadas no início: Constituição Federal, ECA e Estatuto da Pessoa Idosa. Mas Sol Oliveira disse que as pessoas estão procurando o Judiciário em busca dessa reparação.

“São dois casos que não tem nada a ver um com o outro, são diversos e tem acontecido muito. E hoje o direito das famílias é multidisciplinar, ou seja, ele trabalha com psicólogos e médicos para análise de perícia ou laudo, para que o ordenamento jurídico seja justo”, pontuou.

Vai virar lei?

Quando um processo ocorre na Justiça sem tipificação específica abrem-se as jurisprudências e elas dão início a discussão de uma nova lei. Isso acontece agora com o abandono afetivo no Judiciário brasileiro. “A lei não existe, mas eu já posso adiantar que está havendo a reforma do Código Civil e estamos trabalhando nisso”, compartilhou.

Segundo ela, o IBDFam faz parte de comissões que estão discutindo a atualização do Código Civil no Congresso Nacional. “Estamos tratando do abandono afetivo e possivelmente na reforma do Código Civil vamos ter lei específica em relação a isso. Mas como eu disse, é subjetivo”, finalizou.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes.

Leia mais: