Imagine um lugar em que a simplicidade parece ser lei, e o acolhimento a maior virtude. A pequena vila de Andrequicé, distrito de Três Marias, em pleno sertão mineiro, tem essas características. José Antônio Vicente de Souza, um de seus moradores mais ilustres, explica como tudo começou, há quase três séculos, com a primeira construção do local, a Igreja de Nossa Senhora das Mercês.

“Conta a história que o irmão de um padre de Diamantina-MG veio caçar aqui e teve uma morte súbita, exatamente neste local. O padre então mandou construir essa igreja. O dado que a gente tem é que havia uma data de 1725, que era o marco a construção da igreja”, relata José Antônio, que é presidente da Samarra, a Sociedade dos Amigos do Memorial Manuelzão e de Revitalização de Andrequicé.

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No início, porém, a vila era ponto de encontro de tropeiros que vinham de Goiás durante o Ciclo do Ouro. O nome vem do capim-andrequicé. Mas foi na década de 1950 que o lugar foi eternizado na literatura brasileira e mundial.

“Andrequicé abre as páginas do Grande Sertão: Veredas. Foi aqui o início do romance em que se começava a discutir a distinção entre o bem e o mal, a existência de Deus e do demônio. Andrequicé é essa vila bucólica, com o Museu Manuelzão, com essa majestosa igreja, a casa onde Guimarães Rosa dormiu [em 1952] quando veio com a boiada”, enumera José Antônio.

Boiada

José Antônio Vicente de Souza, presidente da Samarra (Foto: Sagres TV)

Em 1952, Guimarães Rosa percorreu o trajeto de 240 km, que ficou conhecido como “A boiada”, liderada por Manuel Nardy, o Manuelzão, vaqueiro de Andrequicé. Foi ele o capataz e grande amigo do literato mineiro.

“Manuelzão tornou Três Marias uma referência na área cultural, em razão de que o escritor Guimarães Rosa colocou ele como principal vaqueiro daquela boiada. E o Manuelzão era aquela pessoa que sabia contar um ‘causo’, que sabia te atrair pela palavra, que sabia muito o que estava fazendo aqui e qual era a sua missão”, afirma o secretário de Turismo de Três Marias, Roberto Carlos Rodrigues da Silva.

Manuelzão

O apelido famoso veio do amigo Guimarães Rosa. Antes, o vaqueiro era chamado de ‘Manelão’. Filha mais velha de Manuel Nardy, dona Maria Nardi só ouvia falar dos causos de Manuelzão. Única remanescente da família em Andrequicé, já que todos os outros familiares se mudaram para outras regiões, ela conta um pouco de como era a pessoa de Manuelzão.

“Ele era uma pessoa muito boa, mas quem via achava que ele era fechado. Era bom pai demais para a gente, só que a gente não tinha regalias como os de hoje. Mas naquele tempo também, né?”, relembra.

Museu Manuelzão guarda pertences do vaqueiro amigo de Guimarães Rosa (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

Manuelzão nasceu em Dom Silvério, a 450 quilômetros de Andrequicé. Na vila, o vaqueiro passou apenas os últimos 20 anos de vida. Em 1997, faleceu em razão de uma embolia cerebral.

“Era muito dedicado, cuidava da gente. Hoje o que eu sou, a educação que tenho foi ele que me deu. Ele ajudava todo mundo, gostava de fazer amizade, era um ser humano incrível. Era bem sistemático, porém um homem muito bom”, conta a neta Adriana Nardi.

Foto de Manuel Nardy, no Museu Manuelzão, onde era a casa do vaqueiro, em Andrequicé (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

O vaqueiro é retratado em obras como “Manuelzão e Miguilim” e “Grande Sertão: Veredas”. Neste último, o personagem Riobaldo é que possui todas as características de Manuelzão.

Também neto, Jackson Manuel Nardi fala da capelinha construída por Manuelzão em 1952, no povoado de Pedras, a cerca de 70 quilômetros de Andrequicé, em homenagem à mãe.

Capelinha construída pelo vaqueiro no Cemitério Manuelzão, no Povoado de Pedras (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

“Ele construiu a capela, só que o padre não queria benzer, pois foi feita por conta própria. Na época ele falou ao padre ‘se o senhor não quer benzer, estou fazendo de bom coração e Deus então vai abençoar, pois estou fazendo uma coisa boa’”, relata.

“Lá naquele lugar da capela, tinha uma árvore que eles pararam para descansar. Minha mãe disse ‘nossa, nesse lugar dá uma capelinha, uma igreja tão bonitinha. Logo ela morreu e ele enterrou ela lá nesse lugar que ela falou, que é onde está a capela’”, conta dona Maria Nardi.

Atualmente, é possível visitar a capelinha no Cemitério Manuelzão. O acesso é pela Estrada da Consciência, que não é asfaltada e praticamente margeia o Rio São Francisco.

Cenário vivo

Entre moradias das primeiras famílias de tropeiros e fazendeiros que se instalaram na região, desde os Alexandre aos Leal, primeiros sobrenomes a se estabelecerem na vila, está a Casa Verde, onde Guimarães Rosa dormiu por uma noite na década de 50.

A Casa Verde em Andrequicé (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

“O distrito merece que a gente traga para aqui e trabalhe essa questão dessa imortalidade do Manuelzão e o que ele se tornou diante da obra de Guimarães Rosa. Nós temos aqui, nesse pedaço do sertão de Minas Gerais, o cenário vivo da obra de Guimarães Rosa”, avalia o secretário.

Além dos tropeiros, Andrequicé também abrigou famílias de ciganos, como explica Deuzane Rocha, professora de História e filha de mãe cigana.

 “Quando a gente fala dos ciganos, eles aparecem em várias obras de Guimarães Rosa. Em Grande Sertão: Veredas aparece como a Ana Dazuza e Nhorinhá, que são duas personagens. Em Sagarana ele aparece no conto Corpo Fechado. Já no livro Tutameia, os ciganos aparecem em três contos: O Faraó, Nas águas do rio, que inclusive fala de Andrequicé e do riachão que passava aqui perto; e também em Zingarêsca”, relata Deuzane.

Deuzane conta que foram os ciganos os responsáveis por levar o primeiro cinema para a Andrequicé. Ademais, o CineClube, atualmente, é palco de oficinas culturais em Andrequicé, e fica localizado na praça que leva o nome do escritor mineiro.

Festa de Manuelzão

O festival, cuja 22ª edição ocorreu há duas semanas, acontece na semana do aniversário de Manuelzão, dia 6 de julho. A dança cigana, por exemplo, é uma das atrações da Semana Cultural Festa de Manuelzão, evento que homenageia a memória do vaqueiro símbolo da vila e ocorre há mais de 20 anos.

Apresentação de dança cigana no Armazém da Cultura, em Andrequicé (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

“Nossa oficina inclui não só a dança estilo cigana, mas a quadrilha e o gamba. Pegamos essas três danças e denominamos de Corpo de Baile, de forma que possamos levar nossa cultura para outros lugares”, conta a coordenadora da Samarra, Lidijane Gonçalves.

Todos os anos, dona Maria da Glória Borges dança o gamba. “É uma dança com o par, mas são quatro pessoas, fazendo então dois pares”, conta.

Um dos pares de dona Maria Borges é o Seu Salvino, cujas feições lembram e muito o vaqueiro Manuelzão. “Ele [Manuelzão] era uma pessoa que se falasse não ele já escrespava. Bebia seus goles, era boa pessoa demais, serviçal era sem defeito. Mas ele escrespava, se falava que não iria para algum lugar, não iria e acabou”, conta o fazendeiro.

Folia de reis

Tradicional festa católica que relembra a visita dos três reis magos ao menino Jesus, a Folia de Reis também integra a agenda da Festa de Manuelzão. A catira dos mascarados abrilhanta o festival. Grupos como o Clube do Cavalo de Morro da Garça, a 97 quilômetros de Andrequicé, se apresentam na Festa de Manuelzão, com o Hino de Reis.  

Adelson comanda o Hino de Reis na Folia de Reis de Andrequicé (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

“É uma tradição do começo do mundo, vem de geração para geração. Nós começamos na roça, na fazenda do meu pai, cantando a folia com o mestre antigo. Na época, meu irmão começou a jornada e eu era o mais jovem. Meu irmão fez 80 anos e parou de cantar a folia, e passou a jornada para mim que sou o irmão caçula”, conta o mestre de Folia de Reis, Adelson Fonseca de Souza.

Lida de vaqueiros

Assim é chamado o rodeio da Festa de Manuelzão, que acontece nos últimos dois dias do festival. O evento lota a pequena vila, e inspira jovens peões a seguirem com a tradição.

Lida de vaqueiros, o rodeio é uma das atrações mais aguardadas do Festival (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

“Nasci e fui criado dentro do rodeio. Meus pais tem os bois, tem a arena. Desde pequititinho convivo com o mundo do rodeio. Peão, portereiro, salva-vidas, a gente faz de tudo”, afirma Luciano Corrêa de Lima, de Patos de Minas-MG.

“Meu pai é peão, já tem 25 anos de rodeio. Eu vim pela inspiração dele. Já faz oito anos que venho nessa festa, esse é o primeiro ano de montaria. Espero que futuramente meus filhos venham por mim”, conta o jovem peão Roberto Ribeiro da Silva Júnior, de apenas 17 anos, de Lagoa Formosa.

Bordadeiras

A vila reserva a cultura de um Cerrado diferente, que parece ter parado no tempo. No entanto, o local segue escrevendo a própria história. As bordadeiras de Andrequicé, cuja estrutura pertence ao Memorial Manuelzão mantido pela Samarra, estampam em telas de diversos tamanhos a obra de Guimarães Rosa e as vivências de Manuelzão.

O tema da Festa de Manuelzão em 2023 foi refletir sobre importância da natureza na literatura Roseana. É esta a principal inspiração das bordadeiras. Só o painel que celebra a festa deste ano levou mais de um mês para ser confeccionada, manualmente.

Bordado de Márcia Alves Macedo (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

“Gosto mesmo é de bordar Cerrado e veredas. Gosto de fazer as frases de Guimarães Rosa, pois nosso trabalho é inspirado nele mesmo. Procuro bordar a natureza. As veredas, os pássaros, o Cerrado”, conta a bordadeira Maria dos Reis.

Maria dos Reis foi inspiração para Leidiane Mendes Pinheiro, a mais jovem das bordadeiras. “Ela me ensinou, me inspirou muito. Comecei a bordar flores, gosto muito também de bordar árvores. Guimarães traz isso para a gente, traz a natureza”, afirma.

Nascida em Montes Claros, Ana Lúcia Pereira de Sena mora há 17 anos em Andrequicé. “Meu primeiro bordado foi de borboletas, com a frase de Guimarães Rosa ‘Felicidade se acha em horinha de descuido’, e foi em horinha de descuido que aprendi a bordar”, relata.

Bordado tema da Festa de Manuelzão demorou mais de um mês para ser concluído (Foto: Johann Germano/Sagres Online)

Eliana Maria Amaral, cujo sonho é conhecer o cantor goiano Leonardo, começou a bordar vendo a prima bordadeira. “Aprendi a bordar com ela. O que mais gosto de bordar são pessoas, a simplicidade do lugar, é isso que mais me encanta aqui em Andrequicé. Meus bordados têm muitas árvores, como o ipê”, conta.

Para Márcia Alves Macedo, que também é empresária em Andrequicé, retratar o Cerrado, o sertão e suas nuances é imortalizar o bioma, retratado na obra de Guimarães Rosa. “Hoje a gente chora o Cerrado. Quando a gente vai bordar a nossa inspiração é imortalizar o Cerrado, a vereda. Se continuar como está, daqui a algum tempo vai ser bem escasso”, afirma. “Quem compra um bordado manual é peça única. A gente se apaixona, porque é peça exclusiva”, conclui.

Bordadeiras de Andrequicé homenageiam dona Iris de Oliveira Campos, bordadeira que faleceu recentemente (Foto: Johann Gemano/Sagres Online)

Este conteúdo está alinhado ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis

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