O relatório Tendências globais em litígios climáticos: retrato de 2023 apontou que o Brasil é o quinto país com mais casos de litigância climática nos tribunais. O ranking conta com Estados Unidos (1590), Austrália (130), Reino Unido (102), Alemanha (59), Brasil (40) e Canadá (35). Carolina Garrido, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direito, Ambiente e Justiça no Antropoceno (JUMA), explicou que “a litigância climática é um movimento de levar a pauta climática para o judiciário”. 

“Aqui no Brasil ele é recente. É um movimento que teve origem nos Estados Unidos no fim da década de 80, mas de uma forma bem incipiente. Nos anos 2000 ele começou a crescer no mundo, principalmente a partir de 2015. E aqui no Brasil a partir de 2018 e 2019, muito relacionada aos retrocessos que a gente viu no governo passado, no âmbito do governo federal, com muitos retrocessos na agenda ambiental e climática”, contou.

Carolina Garrido é pesquisadora do JUMA, grupo de pesquisa vinculado à Coordenação de Direito Ambiental do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (NIMA-Jur). O grupo produz conhecimento sobre temas ligados à justiça climática, clima e licenciamento ambiental e litigância climática, a fim de contribuir para o combate à injustiça socioambiental e climática.

Litigância climática

Segundo Carolina Garrido, existem várias formas de ir ao judiciário e não só por conta de crimes. As condutas criminalizadas no Brasil estão tipificadas no Código Penal. Ele descreve que não há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal. Assim, não há lei que pune empresas ou indivíduos em relação às mudanças climáticas.

“O crime é através do direito penal, mas não tem nenhum tipo penal que criminalize alguma coisa relacionada às mudanças climáticas diretamente. Por exemplo, temos crimes relacionados aos desmatamentos que são crimes ambientais tipificados”, destacou. Mesmo assim, a litigância climática cada vez mais se consolida como uma tendência em tribunais de todo o mundo.

Para o JUMA, a pauta climática faz parte da pauta ambiental, que é mais ampla. Sendo assim, o termo litigância climática aparece nos tribunais como um “argumento climático”. O argumento surgiu dos compromissos climáticos internacionais assumidos pelos países em relação às emissões de gases que contribuem para o aquecimento global.

“A gente viu que a ausência da implementação das políticas públicas que asseguram o cumprimento dos compromissos climáticos existem através dos tratados internacionais. Mas também na nossa legislação interna, pois a gente tem uma política nacional de mudanças climáticas e diversos outros instrumentos. E, então, esse questionamento através do judiciário traz argumentos climáticos”, detalhou a pesquisadora. 

Argumento climático

Desmatamento no Cerrado
Desmatamento no Cerrado (Foto: Marcos Vergueiro/Secom-MT)

A litigância por causas ambientais no mundo já existe há 40 anos com casos judiciais se desenvolvendo desde a década de 80. No entanto, frisou Garrido, essa questão de se trazer também um argumento climático é a novidade. A pesquisadora argumentou que a litigância climática pode ser conceituada de várias formas.

“Há pessoas que entendem que ela não seria restrita só ao poder judiciário. Então poderiam ser ações administrativas ou outros tipos de ações extrajudiciais, desde que se tivesse mobilizando o Direito, para tentar buscar adereçar a questão climática”, contou. 

Outros especialistas acreditam que os casos indiretos que envolvem a questão climática também são considerados litigância climática. Carolina concorda com o argumento, mas destacou que ele torna o levantamento de dados no Brasil “muito complicado”. Esses casos envolveriam os desmatamentos, por exemplo.

A pesquisadora explicou que os casos indiretos são aqueles que a ação não menciona expressamente a questão climática. “Se for um caso que o resultado tenha influência marcante na política climática como um todo, ele pode ser considerado litigância climática de forma indireta”. Assim, os desmatamentos seriam considerados, mas no Brasil eles são crimes ambientais já tipificados. 

Juma

O JUMA classifica como litigância climática os casos em que a questão climática é central e os casos em que a questão climática aparece de uma forma mais contextual na ação. “A gente não considera os casos de litigância climática indireta para viabilizar a própria plataforma. Se a gente pensar no Brasil, qualquer caso de desmatamento poderia ser considerado um caso de litigância climática indireta. Porque obviamente influencia para a liberação de gases do efeito estufa e a perda de estoques de gás carbônico” disse. 

“Mas para focar como o argumento climático está sendo levado ao nosso judiciário a gente opta por trabalhar só com essa questão de casos que tratam explicitamente da questão climática. Mesmo que o tratamento seja contextual ou central”, completou. Então, o argumento climático se consolida porque não está direcionado apenas a penalidade prevista no Código Penal. 

“A gente consegue ver atitudes ilegais ou antijurídicas ou que violem outro tipo de norma que não sejam do direito penal. Na verdade, a maioria das ações são questão civil ou administrativa, que são casos de licenciamento por responsabilidade civil ao dano ambiental. E, assim, argumenta se é uma questão climática “, detalhou. 

Tendência

Desmatamento-Jandaia
Imagens aéreas mostram a devastação em uma fazenda, no município de Jandaia. Equipes da Semad autuaram responsáveis por desmatamento ilegal. (Foto: Semad)

Carolina Garrido exemplificou que alguns casos de litigância climática questionam políticas públicas como a paralisação do Fundo do Clima, do Plano de Prevenção à Cultura do Desmatamento na Amazônia (PPCDAM) e do Fundo Amazônia que ocorreram na gestão federal encerrada em 2022. São então exemplos de como uma ação pode ser judicializada utilizando o argumento climático, mas que não necessariamente envolve uma questão penal.

O relatório com o retrato de 2023 publicado em 29 de junho, no Reino Unido, detalha o aumento dessas ações em tribunais de todo o mundo. O mapeamento divulgado é do  Instituto Grantham, da London School of Economics and Political Science, que realiza pesquisas sobre mudança climática e meio ambiente. O estudo foi liderado pelas pesquisadoras Catherine Higham e Joana Setzer, que é brasileira.

A tendência de aumento dos casos de litigância climática no Brasil estão associados à gestão do governo passado, apontou Garrido. A pesquisadora afirmou que o JUMA já trabalhava com plataformas internacionais, como a do próprio Grantham Institute da London School of Economic, do Reino Unido e do Sabin Center for Climate Change Law, da Universidade de Columbia, de Nova York. “Mas a gente viu uma dificuldade de alcançar as especificidades do Brasil”, apontou.

Plataforma brasileira

A pesquisadora contou que há uma dificuldade natural no mapeamento dos casos e que algo que se repete em todo o mundo. “É difícil porque eles dependem muito de relatores espalhados pelo mundo para falarem sobre a existência desses casos”. 

Os Estados Unidos possuem amplos dados porque tem sua base específica no Sabin Center e a Austrália também tem uma base de dados própria para contabilizar esses casos. Existe ainda a AIDA (Interamerican Association for Environmental Defense), que é uma organização da sociedade civil que levanta esses dados sobre a América Laina. Assim, o grupo de pesquisa percebeu que “tinha um vácuo para estudar o Brasil  especificamente” , contou Garrido.

“A nossa ideia foi ter um olhar específico para o Brasil. Então, para além da gente estar mais próximo da jurisdição e ficar sabendo dos casos muito mais fácil, tem a questão de produzir conhecimento sobre a litigância climática no Brasil a partir do nosso arcabouço jurídico ambiental que é muito robusto e às vezes não tem paralelos com jurisdições de outros países do mundo”, explicou. As especificidades ambientais do Brasil possuem uma série de classificações na base de dados do JUMA, como os biomas, por exemplo.

O grupo de pesquisa JUMA existe desde 2018, mas a Plataforma de Litigância Climática no Brasil foi lançada no ano passado e começou com 50 casos na base de dados. O relatório do Instituto Grantham contabilizou 40 processos, mas Carolina Garrido apontou a defasagem nos dados, pois a plataforma do JUMA já levantou 104 casos.

Aumento de casos

O JUMA contabilizou os processos retroativos do país, desde quando o clima ainda aparecia de uma forma mais incidental. “Mas antes de 2018, ainda no início dos anos 2000 já havia casos, então a gente mapeou desde lá atrás, até mais ou menos agosto do ano passado”, disse.

O aumento de casos, como já mencionado, está associado também à gestão do governo Bolsonaro. O relatório apontou que grandes empresas como a Shell e a FIFA estão entre as principais demandadas em processos ambientais pelo mundo. Mas também há destaques para governos, como Rússia e Suécia, que estão na lista de países alvos de ações judiciais. O aumento dos casos no Brasil se deu em grande parte pelo questionamento da política ambiental do governo anterior.

“O poder público é o mais demandado aqui no Brasil. Tem empresas e indivíduos por exemplo, mas apesar da tendência de que o setor privado seja mais demandado, especialmente por causa da mudança de governo, a gente vê que órgãos ambientais, o próprio poder legislativo e o poder executivo, tanto o federal quanto o estadual, eles são os principais demandados aqui no país, contou. Para Carolina Garrido, os muitos casos de litigância não refletem algo bom e nem ruim, pois o aumento ocorreu por questionamentos da ausência ou enfraquecimento das políticas ambientais.

“O negativo é que o boom da litigância climática foi questionando retrocessos, então a gente realmente teve essa necessidade de judicializar. Se a gente observar os dados fica muito claro que esses casos aumentam a partir de 2018, mas especialmente a partir de 2019 que a gente teve um governo antiambiental, em que diversos dos nossos instrumentos jurídicos para a proteção do meio ambiente e da estabilidade climática que já existiam ou deixaram de ser implementados ou foram sucateados”, afirmou.

Compromissos ambientais

Natureza
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A pesquisadora destacou a ação da sociedade civil no aumento de casos como um ponto positivo, o que ela chamou de “uma sofisticação da discussão em uma sociedade civil”, em que não apenas o Ministério Público propõe as ações, mas a sociedade também participa e entende os problemas que envolvem a questão climática e os seus impactos.

O avanço do tema então se dá na sociedade e no judiciário de forma conjunta. Carolina Garrido contou que os compromissos ambientais internacionais, como o Acordo de Paris, são um apoio para que o argumento climático seja utilizado como fator importante nas causas que tramitam nos tribunais e que, de alguma forma, impactam na questão climática. A pesquisadora explicou que o uso dos acordos climáticos, no entanto, depende de cada Estado implementá-lo. No caso do Brasil, o Acordo de Paris é utilizado como argumento climático válido em ações ambientais.

“Com o nosso arcabouço jurídico brasileiro a gente teria argumentos para exigir essa implementação com base no Acordo de Paris. Ele foi internalizado e passou a compor o nosso ordenamento jurídico brasileiro e, também, em decisão recente, o STF reconheceu o seu caráter supralegal”, disse.

“Então,na hierarquia de normas a gente teria a Constituição no topo; depois esses acordos de direitos humanos nos quais os tratados ambientais e o Acordo de Paris já foram reconhecidos compondo essa classe mais ampla de tratados que protegem os direitos humanos; e depois a gente teria todas as demais violações”, explicou a pesquisadora. Desta forma, o Acordo de Paris já é reconhecido pelo STF e está presente na hierarquia do judiciário brasileiro.

Política ambiental

Foto: Reprodução/Portal Notícia Sustentável

A internalização do Acordo de Paris como um de seus fundamentos judiciais faz com que o Brasil crie esforços para assegurar seu cumprimento. Por aqui, ele já é mencionado em diversos processos ambientais, disse Carolina.

“A gente tem o Acordo de Paris sendo mencionado em diversos casos como uma das principais normas para trazer o argumento climático. Para dizer que, por exemplo, a autorização dessa termelétrica não está de acordo com o que o Brasil se comprometeu a reduzir suas emissões na sua NDC. Então isso acontece em casos que trazem o Acordo de Paris para questionar uma questão específica ou uma política pública específica. Mas a gente também vê casos em que a própria NDC brasileira foi judicializada”, contou.

NDC é a sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada. Sendo assim, a NDC versa sobre o compromisso que cada país estabeleceu em relação às metas de redução de emissão de gases de efeito estufa. A NDC é proposta a partir do Acordo de Paris, que prevê que a cada cinco anos o compromisso de emissões seja renovado. A NDC brasileira de 2020 foi então judicializada.

“A gente teve no governo Bolsonaro a propositura de uma NDC lida como uma NDC menos ambiciosa, porque ele manteve a mesma meta. […] Então, o resultado foi chamado de pedalada climática, pois o Brasil teria a possibilidade de um compromisso mais fraco. Era uma meta que permitia a gente emitir mais”, explicou.

Ação popular

A judicialização desse caso ocorreu por meio de ação popular de jovens do movimento do Fridays For Future Brasil e do Engajamundo. O episódio é conhecido com o nome de Jovens contra a pedalada climática.

“A União Federal foi demandada porque a proposta da NDC violaria o Acordo de Paris, pois submeteu-se uma NDC menos ambiciosa do que o compromisso anterior. Esse caso não tem decisão definitiva, mas a gente tem decisões intermediárias afirmando que é possível a judicialização. E isso porque o Acordo de Paris é um tratado internacional, mas no seu aspecto interno ele é um ato do estado. Então ele pode ser verificado pelo judiciário”, disse.

Carolina Garrido ressaltou a “vitória muito importante” e afirmou que o caso da NDC está parado atualmente porque o atual governo comprometeu-se a submeter uma nova NDC, que está em diálogo.

“Ela está em diálogo para que solucione o retrocesso que aconteceu em relação a última NDC. Então atualmente está em fase de acordo, mas isso chegou a ser judicializado. E isso mostrou que o Acordo de Paris está sendo mobilizado como uma norma relevante para afirmar a necessidade do Brasil não deixar a sua política climática para trás ou não implementá-la”, finalizou.   

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 13 – Ação Global Contra a Mudança Climática e o ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Fortes.

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