Não poderia ter uma informação mais lamentável para uma tarde de primavera do que a desta sexta-feira, dia 5 de novembro. Um acidente aéreo mata a cantora, instrumentista e compositora Marília Mendonça, uma das maiores consagrações artísticas brasileiras dos últimos tempos. Exemplo de mulher que soube arregaçar as mangas, acreditar em si mesma, enfrentar as dificuldades e vencer, Marília morre aos 26 anos e junto com ela o piloto e o copiloto da aeronave e dois membros do seu estafe.

Marília nasceu na cidade goiana de Cristianópolis, numa família pobre, no inverno de 1995, no dia 22 de julho. Na infância enfrentou a separação dos pais. A mãe se casou pela segunda vez – o padrasto foi aceito como pai, mas na adolescência veio uma segunda separação da mãe. Marília contava que as duas separações, com grande impacto nos seus sentimentos, influenciaram diretamente na temática das suas composições.

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O sucesso foi buscado na unha e dente, na raça. A música estava no sangue. A família era evangélica e quando o avô a viu cantando na igreja e soube que ela também já sabia tocar violão, aos 12 anos, ele a presenteou com o instrumento. Marília passou ser atração das igrejas de Cristianópolis e das cidades próximas.

Loirinha, magrela (a obesidade veio no final da adolescência), com voz possante já encantava. Embora agradasse os fiéis nas igrejas, pra si mesma preferia cantar pop rock. A família veio pra Goiânia. Ainda menina, com 14 anos iniciou as apresentações em bares com música ao vivo. Foi quando a canção sertaneja romântica entrou em sua vida e nunca mais saiu. Nos bares goianienses o que agrada é a música que tem o cheiro desta terra e o jeito do cerrado.

Onde cantava enchia a casa, mas o cachê era pequeno. A família abriu o próprio estabelecimento, o Cantinho da Viola. Era um espaço modesto, mas Marília lotava a casa. Os outros estabelecimentos tiveram que fazer propostas com cachês maiores para voltar a ver a casa cheia…. as coisas começavam a fluir, Marília tinha 13 anos e já compunha.

Na maioria das canções a presença da mulher traída, com o estímulo para dar a volta por cima. Nascia aí o neologismo “feminejo” – um movimento de resistência feminina ao sofrimento pelo amor não correspondido e de valorização do gênero. Veio à época dos clipes postados na internet e por eles várias duplas buscaram suas músicas que alavancaram muitas carreiras – a menina Marília tinha apenas 14 anos.

Não são todos que sabem, mas sucessos como É com Ela que Eu Estou (Cristiano Araújo), Minha Herança (João Neto e Frederico), Muito Gelo e Pouco Whisky (Wesley Safadão), Ser Humano ou um Anjo (Matheus e Cauan), Calma (Jorge e Matheus) e Flor e o Beija Flor (Henrique e Juliano) são composições dela. Na última, Juliano também participou da criação.

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Não escondia a preferência por Flor e Beija Flor, que depois de ser sucesso com Henrique e Juliano, teve o sucesso redobrado numa gravação da autora com a dupla. Ela tinha razão.

Flor e o Beija Flor coloca a mostra toda a sensibilidade poética que habitava a alma de Marília: “Esta é uma velha história de uma flor e um beija-flor//Que conheceram o amor numa noite fria de outono//E as folhas caídas no chão da estação que não tem cor//E a flor conhece o beija-flor e ele lhe apresenta o amor//E diz que o frio era uma fase ruim// Que ela era a flor mais linda do jardim//E a única que suportou//Merece conhecer o amor e todo seu calor” é a primeira estrofe da bela canção. A compositora se coloca como a flor e revela a saudade do beija-flor que reconheceu sua resistência ao frio do outono da vida e lhe trouxe o calor do amor que revigora e reoxigena a vida humana com o afeto: “Ai que saudade de um beija flor que me beijou//E depois voou pra longe demais, pra longe de nós//Saudade de um beija flor, lembrança de um antigo amor//O dia amanheceu tão lindo e eu durmo e acordo sorrindo”.

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O sorriso de Marília brilhou mais após o lançamento do álbum Marília Mendonça ao Vivo, em 2016. A canção Infiel explodiu imediatamente. Seu canal no Youtube foi o mais visitado do ano. Após Infiel as outras canções explodiram em sucesso e ela alcançou naquele ano a marca de segunda cantora mais tocada nas rádios brasileiras.

A partir daí, Marília nunca mais deixou de estar entre os artistas mais bem pagos e mais premiados da América do Sul. Também assumiu no curto espaço de tempo que lhe sobrava de vida, a condição de cantora mais ouvida do Brasil, entre 2017 e 2021.

Passou ser conhecida como a Rainha da Sofrência e a Patroa – mandava literalmente na tendência do gênero sertanejo romântico. Continuou compondo para as gravações próprias, para vários outros cantores e duplas, conquistou as mais importantes premiações musicais brasileiras. Marília Mendonça ao Vivo lhe rendeu triplo Disco de Platina, por ter vendido 240 mil cópias.

Casou em 2018, com o cantor Huff, teve o filho Léo, numa gravidez de risco. Quando soube do risco que sua vida corria com a gravidez, declarou:

-“Ou sobrevivemos os dois, ou morreremos juntinhos unidos pelo cordão umbilical e pelo amor”. Léo veio ao mundo no oitavo mês de gestação e apesar de prematuro, nasceu saudável – atualmente tem um ano e 10 meses de vida. Ainda no resguardo ela recebeu a notícia de que havia conquistado o Grammy Latino e foi para as redes sociais: “Estou sonhando…. estão zoando comigo. Não acredito” – foi a primeira postagem. “É muita felicidade para um ano só – ser mãe e ganhar o Grammy. Que mais posso pedir a Deus?” Deus lhe deu ainda mais.

Definitivamente se consagrou como à cantora mais ouvida no Youtube, no Brasil e jamais deixou de estar presente entre os 10 cantores mais ouvidos no mundo, na plataforma. Seu canal obteve 10 milhões de acesso, fora os 15 milhões de seguidores – os números atuais sofrem alteração todos os dias, sempre aumentando.

A voz grave que alcançava agudos inacreditáveis, o ritmo frenético, os versos de volta por cima no amor feminino não correspondido, não saiam do universo coletivo brasileiro. A Flor era queridinha dos beija-flores amantes da música sertaneja romântica.

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O sucesso jamais substituiu em Marília a figura simples, bem humorada, humanitária e de astral elevado. Também não tirou dela a irreverência da juventude. Ajudava várias instituições de assistência social, principalmente as voltadas para acolhimento de meninas grávidas ou drogadas. A única exigência era de que jamais fosse divulgada a ajuda.

Nunca se separou da mãe, amparando e protegendo a genitora, num amor declarado constantemente. Seu diretor de palco era um tio (que também morreu no acidente), nunca se esqueceu que João Neto e Frederico gravaram Minha Herança quando ela tinha 14 anos e nunca deixou de prestigiar Henrique e Juliano, por considerar que eles acreditarão nela desde o começo, a motivando deixar de ser apenas compositora para soltar a voz na estrada como cantora.

A gratidão era marca de Marília, que dava muito trabalho para a segurança nos shows por não recusar a aproximação dos fãs. Na maioria dos shows passava da hora de encerrar, atendendo o pedido dos presentes e repetindo interpretações solicitadas. A pandemia suspendeu as apresentações e shows. Vieram as lives. Marília fez a live mais assistida do mundo: 55 milhões de pessoas visualizaram, 3,31 milhões ao vivo, com quase 3 milhões de likes.

Nesta sexta-feira, quando o Brasil tem as cores e o encantos da flor, em plena primavera, com apenas 26 anos, a Flor mudou de jardim. Foi enfeitar o jardim do céu, onde o beija flor é Deus. Certamente será beijada por ele todos os dias, dizendo: “O dia amanheceu tão lindo e eu durmo e acordo sorrindo”.

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