Aos nove anos vi a melancolia espalhada em Goiânia. Vi as pessoas andando de cabeça baixa e a revolta caminhar junto com as lágrimas. Era dia 17 de outubro de 1969 e, pelo menos, na Vila Operária (que teve o nome mudado para setor Centro Oeste, mas que para mim continua sendo Vila Operária) o clima era este.

Naquele dia o presidente, general Arthur da Costa e Silva, colocado no cargo pelo movimento militar que tomou o poder no Brasil, em 31 de março de 1964, com base num tal Ato Institucional nº 5 (AI 5), cassou o mandato do jovem prefeito de Goiânia, Iris Rezende Machado e a Vila Operária chorou por ele.

Havia um motivo. No bairro, 11 anos antes, na confluência da Rua 504 com a Rua J-1 (hoje Avenida Bernardo Sayão), Iris havia feito o primeiro comício da sua vida política, pedindo voto para vereador. Foi o mais votado do pleito e depois foi eleito deputado estadual, também como o mais votado do pleito e se elegeu prefeito, batendo José Ludovico de Almeida (o Juca Ludovico), que entre outras coisas era ex-governador do Estado.

Iris morava em Campinas. A Vila Operária fazia parte da sua base política e o povo o amava. Junto com a cassação veio a suspensão dos direitos políticos e Iris teve a carreira suspensa até 1982, sem nunca ter deixado a militância na resistência contra a ditadura imposta pelos militares e à favor da volta do Estado Democrático de Direito.

Quando a luta pela redemocratização do País venceu, ele se candidatou a governador, em 1982, e foi eleito com 67% dos votos. Depois desta façanha, foi governador do Estado por mais uma vez, senador da República, ministro da Agricultura, ministro da Justiça, e prefeito de Goiânia por mais três vezes.

Nesta terça-feira, dia 9 de novembro de 2021 estou vendo Goiânia vivendo o mesmo clima e Iris Rezende é o motivo outra vez. Só que desta vez não terá retorno… O político que iniciou a caminhada pela Vila Operária morreu, vítima de um Acidente Vascular Cerebral Hemorrágico (AVC), depois de três meses e três dias de luta para continuar vivendo. Deixa um legado sem igual para Goiás e, fundamentalmente, para Goiânia. Sendo, sem nenhuma dúvida, o maior político goiano de todos os tempos.

Naturalmente não foi unanimidade. Teve seus adversários e até conquistou inimigos. Mas como disse Wiston Churchill: “Você tem um inimigo? Bom, parabéns. Significa que você brigou por algo importante alguma vez na vida”. E Iris brigou muito. Quando encostado pelos militares, soube ser árvore solitária que crescia isolado e sem ter em que se apoiar e toda árvore que cresce assim, cresce forte.

Deixa uma história benevolente com sua trajetória, porque ele próprio a escreveu, com astúcia quando necessária, parcimônia quando preciso, autoridade quando era a saída e habilidade sempre tão grande que era capaz de prever o que aconteceria no futuro próximo ou distante, e conseguia explicar depois porque o previsto não aconteceu.

Inteligência fluente, dono de uma oratória irreparável, capaz de prender atenção da multidão por horas, Iris nunca perdeu o jeito do povo. Repetia várias vezes que seus pratos preferidos eram: farofa de ovo caipira com abobrinha batida e molho de frango caipira com quiabo e angu.

Retrucava quem criticava a fricção do “r”, no sotaque goiano. O “r” indica justamente a necessidade de fricção do vocábulo: “quem critica nosso falar não sabe o que é falar bonito. Não colocamos “i” no final das palavras, onde ele não existe (alusão ao sotaque carioca) e nem “i” antes do “n” nas sílabas nasalizadas de meio das palavras (crítica ao falar do paulista). Nosso falar é o mais belo e o mais correto da língua portuguesa”.

As manias das práticas tradicionais goianas eram vistas na administração pública, a maior delas, a adoção do Mutirão. Na zona rural, os vizinhos se juntam para realizar a capina da lavoura ou a roçagem do pasto. O dia de trabalho gratuito é compensado com uma festa animada por sanfoneiros, violeiros e cantadores.

No começo, os mutirões do Iris também eram assim, com a participação do povo na realização do serviço no bairro e ao final tinha um jantar, com mesa gigante montada numa das ruas, onde as panelas eram colocadas e as pessoas se serviam no prato de papel. Depois tinham sanfoneiros, violeiros, cantadores e, não raramente, roda de dança. Nos últimos, já não tinham o jantar e nem cantoria e danças.

Após a cassação, em 1969, viu que não tinha tempo para lamentações e ao invés de se recolher, como vários que só voltaram depois, quando a chapa esfriou, Iris preferiu advogar, contribuir e até sustentar a luta de quem precisava de recursos para empreender a resistência aos militares. Ele nunca perdeu tempo com lamentações. Nas campanhas derrotadas, voltava com maior motivação para a próxima eleição. Nos insucessos das gestões, refazia os conceitos e tocava em frente.

Tinha algumas manias: levantar antes das 5h da madrugada. Os assessores quase morriam de raiva. Fazer exercícios físicos, ler a bíblia e os poemas de Cora Coralina. Gostava de citar um dos versos nos seus discursos mais inflamados: “Nada que sentimos vale a pena se não tocamos as vidas das pessoas”.

As pessoas foram sempre o foco de Iris Rezende. Era o povo que norteava as obras que criaram a alcunha de tocador de obras, para o ex-prefeito. Na última entrevista ao Sistema Sagres de Comunicação, concedida ao repórter Samuel Straioto, no dia em que tomou a primeira dose da vacina contra Covid-19, já aposentado na política, Iris sacramentou seu ideal prático dos versos da poeta: “Não sei ficar distante do povo”.

A consideração foi feita em resposta ao questionamento do repórter do porquê, mesmo aposentado, ele continuava dando expediente diário no escritório político, localizado no setor Oeste, em Goiânia. Em 2010, quando deixou dois anos de mandatos a cumprir como prefeito, para não deixar o PMDB sem candidato a governador na disputa contra Marconi Perillo, num pleito de derrota prevista, Iris declarou que o seu passado não lhe dava o direito de ter medo do futuro e que para um homem da idade dele, o futuro era agora.

Já foi dito que a única coisa tão inevitável quanto a morte, é a vida. Iris viveu. Como todos, também chegou o dia da sua morte e, novamente, vi o clima melancólico sobre Goiânia, com a dor que tomou conta da maioria dos olhares. O temporal que caiu ao final da tarde, no momento do sepultamento, não tirou do povo a motivação para o último adeus, no Cemitério Santana, que fica na Vila Operária.

O corpo de Iris Rezende voltou justamente para o setor onde colocou o pé na estrada política, fazendo do coração o passeio dos ideais de exercer o dom de liderança com que nasceu. Goiânia, a que Iris sempre dizia que nunca o havia abandonado, guarda seu corpo, a história guarda sua grandiosidade. Os amigos guardam a saudade, o povo, a lamentação e a política espera para ver como será o Estado sem seu grande vulto.

Cora Coralina, lida, relida e citada por Iris Rezende, escreveu: “Não podemos acrescentar dias às nossas vidas, mas podemos acrescentar vida aos nossos dias”. Iris acrescentou vida em todos os seus momentos, sem perder a fé que gerou sempre a esperança, o amor que sustentou a luta e a confiança que o fez político até o dia fatídico em que o AVC o atingiu. Volta ao plano espiritual com a consciência tranquila do dever cumprido.

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