No final de 2021 o Chile protagonizou o segundo turno de uma das eleições mais polarizadas em décadas, desde a eleição de Salvador Allende, em setembro de 1970.

Salvador Allende foi o primeiro presidente de esquerda no mundo que chegou ao poder por meio de eleições livres e democráticas.

O contexto internacional das eleições chilenas, de 1970, era o da chamada Guerra Fria e, como não poderia ser diferente, houve o envolvimento da CIA (Serviço Secreto dos Estados Unidos) e da KGB (Serviço Secreto da URSS). A União Soviética apoiou a Unidade Popular, a aliança partidária de esquerda, organizada para viabilizar a eleição de Salvador Allende à Presidência da República no Chile.

Já a CIA não financiou diretamente nenhum candidato e preferiu concentrar seus recursos em uma propaganda ideológica contra Allende e a esquerda. Estima-se que os EUA gastaram em torno de 425.000 dólares para disseminar uma campanha de “demonização” do candidato esquerdista, vinculando-o ao ateísmo e à repressão vigentes na União Soviética. Acreditavam que se conseguissem instalar um clima de pânico financeiro-patrimonial e de polarização política, garantiriam a vitória do candidato da direita, do Partido Nacional, Jorge Alessandri Rodríguez.

Jorge Alessandri. (Foto: Reprodução)

A estratégia da CIA não funcionou. Salvador Allende conquistou, no primeiro turno, uma vitória por margem muito apertada, apenas 36,6% dos votos contra 35,29% de Jorge Alessandri. Pela Constituição da época, o segundo turno foi decidido por membros do Congresso Nacional. Allende saiu vitorioso com o apoio de 78,46% do Congresso chileno.

A vitória de Allende e a aplicação de seu projeto, denominado “via chilena para o socialismo”, pautado na reforma agrária, nacionalização de bancos, de empresas estrangeiras instalados no país e das minas de cobre, não agradaram nem as elites locais e nem aos interesses econômicos e geoestratégicos dos EUA e do capital estrangeiro.

Como resultado, ocorreram fortes pressões internas e externas contra o governo de Allende. Os Estados Unidos utilizaram sua força para sabotar a economia chilena, com a desvalorização do cobre para desestabilizar os planos do governo esquerdista. Dessa forma, um golpe contra o governo Allende era apenas uma questão de tempo.

Setores da extrema-direita chilena, alinhados com os interesses do capital estrangeiro, apoiaram o Golpe Militar perpetrado pelo General Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973. Allende, isolado no Palácio de La Moneda, acabou morto. O Chile mergulhava, assim, em um período de violenta ditadura entre 1973 e 1990.

General Augusto Pinochet. (Foto: Reprodução)

O governo Pinochet implementou uma série de medidas neoliberais, guiadas pelos chamados “Chicago Boys”. Além disso, visando se perpetuar no poder, realizou um plebiscito e aprovou uma nova Constituição em 1980, que garantia sua permanência à frente do governo até 1988, quando haveria um novo plebiscito.

Apesar da modernização do Chile e dos avanços econômicos promovidos pelas medidas liberais, os efeitos colaterais foram a brusca redução dos benefícios sociais e o aumento das desigualdades socioeconômicas. Essas contradições foram minando o regime pinochetista.

No plebiscito de 1988, que pretendia aprovar a permanência do governo Pinochet, organizou-se como oposição uma aliança que reuniu 17 partidos políticos e conseguiu a vitória do ‘Não’, com 56% dos votos, contra a continuidade do ditador.

Surpreendentemente, apesar de todo o horror que marcou os 17 anos da ditadura pinochetista, na campanha eleitoral de 2021 observamos a crise do establishment e o crescimento da candidatura à presidência do ultradireitista José Antonio Kast, com um discurso que remete a elementos do nazismo e do pinochetismo em sua campanha. Seu discurso ultraconservador teve como principal lema: ordem, segurança e paz. Sua proposta era a de combater o crime, o tráfico de drogas e o terrorismo. Essas ideias tiveram grande efeito sobre parte da população que teme a desestabilização política e econômica no país. Com base nessas propostas, José Antônio Kast e o seu Partido Republicano, apoiado pela aliança “Frente Democrática Cristã”, ficaram em primeiro lugar no primeiro turno da eleição presidencial, com 27, 91% dos votos.

Do outro lado estava o adversário Gabriel Boric, candidato da esquerda pela coligação “Aprovo Dignidade”, que reúne a Frente Ampla e o Partido Comunista. No primeiro turno ficou em segundo lugar com 25,83% dos votos. Sua campanha presidencial baseou-se no discurso da “esperança” e na promessa de fortalecer um estado de bem-estar social no país. Sua maior crítica à democracia, que se organizou após a ditadura de Augusto Pinochet, é a de ter continuado com o modelo econômico liberal que deixou uma classe média e baixa endividada para pagar a educação, a saúde e a previdência privada. No Chile predomina um sistema educacional privado e de custo elevado. Durante as manifestações de outubro de 2019, Boric esteve à frente no processo de acordo político para convocar um plebiscito de reforma para a Constituição.

No segundo turno houve uma virada e Gabriel Boric, valendo-se de um discurso mais moderado e conciliador, tornou-se o presidente mais jovem do Chile, elegendo-se com 56% dos votos.

Apesar da vitória do esquerdista Boric, não se pode negar que o desempenho eleitoral do ultradireitista Kast foi considerável e merece, no mínimo, o seguinte questionamento: Por que os movimentos de extrema direita vêm ganhando respaldo popular?

Bem, pode-se afirmar que o início do crescimento dos movimentos de extrema direita, no século XXI, parecem ter ganhado força a partir da crise econômica de 2008 e pela crise migratória impulsionada pela Primavera Árabe, destacadamente a “guerra sem-fim” na Síria, a partir de 2011. Desde então, a ultra direita vem galgando espaços na política de vários países pelo mundo. A atuação desses grupos políticos deu força às principais dicotomias da atualidade: globalistas x nacionalistas; negacionistas x evidências científicas; negacionistas x ambientalista; europeístas x eurocéticos.

Na esteira dessa espécie de, digamos, “cabo de guerra”, destaco, ao longo dos últimos 10 anos, resultados eleitorais considerados surpreendentes:

Na Hungria, desde 2010, prevalece a figura de Viktor Orbán, do partido de extrema direita União Cívica Húngara, que graças à aliança com o Partido Democrata-Cristão abocanharam dois terços do Parlamento nas eleições de 2018;

Na Polônia, o partido conservador de direita Lei e Justiça (PiS), liderado por Jaroslaw Aleksander Kaczynski, atua efetivamente desde 2005 e a contar de 2015 governa com maioria absoluta no Parlamento. Mateusz Morawiecki é o primeiro-ministro polonês desde 2017;

Na Áustria, entre 2017 e 2020, o poder esteve nas mãos de uma coalizão entre dois partidos do espectro da direita, o Partido Popular Austríaco (ÖVP) e o Partido da Liberdade da Áustria (FPO), que garantiu Sebastian Kurz como chanceler. Em 2020 houve o fracasso da aliança conservadora e o Partido Popular Austríaco (ÖVP) rompeu com a extrema direita. Com isso, aproximou-se do partido Alternativa Verde (Die Grünen) em uma aliança inédita no país. Em meio a denúncias de corrupção, Sebastian Kurz renunciou ao cargo em outubro de 2021;

Na Itália, em 2018, destacou-se A Liga do Norte, de Matteo Salvini, que fez composição com o partido que se proclama antissistema, o Movimento Cinco Estrelas (M5S), para governar a Itália sob a tutela do primeiro ministro, sem partido, Giuseppe Conte. Porém, essa coalizão de governo ruiu em agosto de 2019;

Nos EUA, a eleição de Donald Trump, em 2016, que, mesmo tendo sido eleito pelo Partido Republicano, alinhou-se aos ideais de grupos de extrema direita e de posições conspiracionistas. O momento mais dramático desse caráter extremado foi no início de 2021, quando manifestantes instigados pelas fake news e pelo discurso inflamado de Trump invadiram o Capitólio para protestar contra o resultado da eleição presidencial de 2020 e tentar impedir o Congresso de certificar a vitória de Joe Biden;

No Brasil, a polarização política de 2018 e a vitória da proposta ultra conservadora de Jair Bolsonaro originou uma espécie de sectarismo político denominado Bolsonarismo.

 Jair Bolsonaro. (Foto: Isac Nóbrega/PR)

Dessa forma, todos os casos citados e o desempenho da extrema direita nas eleições de 2021 no Chile demonstram que alguns fatores comuns favorecem a projeção desses movimentos em determinados momentos.

Destaco como características desse ressurgimento da extrema direita os seguintes aspectos:

  • a retórica contra a imigração e contra a integração globalizante;
  • o discurso sexista, xenófobo e belicista que flerta com concepções conservadoras atávicas nas mais variadas sociedades;
  • o ataque frontal às instituições, algumas já muito desgastadas;
  • o discurso anticorrupção;
  • a ideia de que uma disciplina militar pode salvar a organização social e estatal;
  • o discurso de combate ao fantasma do comunismo;
  • a identificação da esquerda como qualquer tipo de pensamento distinto do que defende;
  • a nostalgia e o passado idealizado.

É possível observar, que independente da classe social ou da formação acadêmica, há nesses adeptos uma espécie de escapismo, ou seja, inconformados com a situação que vivenciam, passam a negar a modernidade, a contestar as informações dos meios de comunicação tradicionais, negam os progressos científicos e passam a defender a volta de elementos nostálgicos de um passado idealizado, que redime até mesmo as ações mais cruéis de governos ditatoriais.

O fato é que a história nos mostra que esse tipo de ideologia não morre. Que o pensamento ultra conservador vive momentos de latência e, a depender das circunstâncias, emerge de forma nostálgica, fascinando inclusive indivíduos das novas gerações que sentem saudade de algo que jamais vivenciaram e, que muitas vezes, sequer existiu.

Norberto Salomão é advogado, historiador, mestre em Ciências da Religião, especialista em Mídia e Educação, professor de História e Geopolítica.

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